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3 NORMAS LINGUÍSTICAS

3.2 NORMAS E REGULAÇÃO LINGUÍSTICAS

3.2.2 Norma-padrão versus norma culta

Como se pode ver pelas discussões apresentadas, as nomenclaturas envolvendo norma são inúmeras e controversas, porque um mesmo termo pode se referir a sentidos diferentes de norma, assim como diferentes termos podem ter o mesmo sentido. Para evitar essa confusão terminológica, propomo-nos, nesta seção, apresentar algumas discussões a respeito do tema e marcar nossa posição neste trabalho.

Bagno (2001), juntamente com autores como Faraco (2008) e Mattos e Silva (2000, 2012), trata dos qualificadores que costumam acompanhar o termo norma. Em seus

argumentos, ele acaba contribuindo com os motivos para adotarmos norma culta: este seria o

qualificativo mais comum, de maior circulação em matérias jornalísticas, na internet, nas

gramáticas, nos manuais escolares (grifo nosso) e “nos textos científicos sobre língua” (p.

72). Dessa forma, se esse é um termo não apenas de conhecimento das pessoas em geral, mas também aceito pelos especialistas, por que não o adotar? Obviamente isso não invalida a discussão proposta pelo autor sobre seus sentidos, que seriam dois, a princípio.

O primeiro conceito de norma culta seria próprio do senso comum e teria ampla circulação, sendo tradicional e ideológico. Para provar tal ideia, o autor recorre a exemplos de diversos gramáticos consagrados no Brasil. Esse sentido atribuído à norma culta remete à tradição de estabelecer a literatura como parâmetro para a “melhor” forma de falar e de

ideal, baseada (supostamente) no uso dos grandes escritores (do passado, de preferência), um modelo abstrato (que não corresponde a nenhum conjunto total de usos da língua por parte de seus falantes de carne e osso” (BAGNO, 2001, p. 74).

O termo norma culta, nesse sentido, é usado, em geral, sem que se diferencie de outros

termos. Mesmo os gramáticos que o usam, fazem-no indiscriminadamente, alternando a forma

culta com diversas outras (formal, padrão, p. ex.), como mostra o autor. Ele também é

resultado da maneira preconceituosa com que se costuma ver as variedades linguísticas,

tomando como critérios adjetivos como “bonita” vs. “feia”; “certa” vs. “errada”; “elegante”

vs. “deselegante” e hoje, arriscamos dizer, termos aparentemente mais neutros, como

“adequada” vs. “inadequada”.

Sobre a segunda acepção do termo, Bagno (2001) afirma: “se refere à linguagem concretamente empregada pelos cidadãos que pertencem aos segmentos mais favorecidos da nossa população” (p. 74). Passa a ser, então, um termo técnico, com critérios “relativamente mais objetivos e de base empírica” (p. 75). Ele é estabelecido pelos estudiosos da linguagem que pretendem descrever a realidade linguística de uma comunidade.

Bagno (op. cit.) faz um quadro em que opõe as características desses dois conceitos. Destacamos, porém, apenas algumas das do segundo sentido da expressão norma culta, que é a de nosso interesse: descritiva, científica, heterogênea, socialmente variável, falada e escrita, sujeita a transformações ao longo do tempo. Reconhecemos as limitações de algumas delas, conforme o que vem sendo discutido.

Ainda que admitindo a diferença entre os dois conceitos, o autor também faz a crítica ao segundo sentido do termo em questão. Para ele, mesmo o termo técnico está impregnado de sua construção histórica, que é essencialmente ideológica. Além disso, ele defende que opomos culto a inculto, compreendendo este último como “rude”, “tosco”, “grosseiro”, “bronco”, “selvagem” etc. Esclarece, então, que uma pessoa considerada culta pertence, na

verdade, a uma “determinada forma de cultura” (BAGNO, op. cit., p. 77) que, por pertencer a

uma classe social privilegiada é também detentora de prestígio social.

Sua decisão de discutir tal problemática advém da percepção de que até os pesquisadores, incluindo a si mesmo em trabalhos anteriores, deixaram-se levar pelo que ele chama de “jogo ideológico”. Além disso, pessoas que carregariam o “estigma” de não serem consideradas cultas teriam cobrado dele outro posicionamento. Para que possamos continuar a utilizar o termo norma culta numa acepção técnica, precisamos defender que esse sentido pretende referir-se a um grupo específico de usuários da língua e que pessoas que não

pertencem a esse grupo fazem parte de uma outra cultura, que os linguistas (e outros estudiosos da língua) procuram não estigmatizar. Reconhecemos a complexidade da questão, mas preferimos, pelo menos por ora, usar o termo já consagrado nos estudos linguísticos.

Ainda na discussão dos dois termos e na intenção de propor uma alternativa, Bagno (op. cit.) apresenta o termo norma-padrão, assumida por linguistas como Lucchesi e Lobo (1988), Mattos e Silva (2004), Faraco (2008, 2012), Lucchesi (2015) como se referindo à primeira acepção apresentada do termo. É basicamente com essa diferença, nesses dois sentidos, que os usamos em nosso trabalho: norma-padrão e norma culta. Para melhor visualizar essas duas acepções, propomos um quadro em que elencamos algumas conceituações de diferentes teóricos.

QUADRO 4 – Diferenciação entre norma-padrão e norma culta feita por linguistas brasileiros.

NORMA-PADRÃO NORMA CULTA

“[C]ompreenderia os modelos apresentados e prescritos pelas gramáticas normativas.” (LUCCHESI & LOBO, 1988, p. 74).

Conforme adotado pelo projeto NURC:

“compreenderia os modelos comuns à fala das pessoas possuidoras da cultura do tipo formalizado, isto é, a cultura sistematizada e difundida pelo sistema de educação formal” (LUCCHESI & LOBO, 1988, p. 74).

“[...] preconizada pela tradição escolar e idealizada pelos estudos gramaticais no Brasil desde a segunda metade do século XIX.” (MATTOS E SILVA, 2004, p. 109).

“normas cultas (definindo-se como cultos

indivíduos de escolarização completa, ensino fundamental, ensino médio e ensino superior) plurais, como vem sendo demonstrado pelas análises sucessivas que se vêm publicando, a partir dos dados coletados desde inícios de 1970 pelo Projeto nacional e interinstitucional Norma Urbana Culta (NURC) [...].” (MATTOS E SILVA, 2004, p. 109).

“codificação relativamente abstrata, uma baliza extraída do uso real para servir de referência, em sociedades marcadas por acentuada dialetação, a projetos políticos de uniformização linguística.” (FARACO, 2008, p. 73).

Gramáticas e dicionários tomados como instrumentos padronizadores, com certa força coercitiva (idem).

“está diretamente correlacionada com a

escolarização, com o letramento, com a superação do analfabetismo funcional.” (FARACO, 2008, p. 69).

“designa o conjunto de fenômenos linguísticos que ocorrem habitualmente no uso dos falantes letrados em situações mais monitoradas de fala e escrita.” (FARACO, 2008, p. 71).

“[D]everia ser vista como uma norma subjetiva, resultante de um processo de seleção/idealização de uma forma de usar a língua que é prescrita pelas gramáticas normativas.” (LUCCHESI, 2015, p. 77). Sua imposição “tem funcionado como um poderoso instrumento ideológico para a manutenção da unidade nacional e para a legitimação da dominação política e da exploração econômica.” (LUCCHESI, 2015, p. 177).

“[S]eria propriamente uma norma objetiva,

referindo-se à forma como os indivíduos

plenamente escolarizados efetivamente usam a língua.”78 (LUCCHESI, 2015, p. 77).

“[...] a expressão ‘norma-padrão’ [...] costuma remeter a estruturas linguísticas que muitas vezes:

• obedecem a certas prescrições

desatualizadas, ligadas apenas à tradição gramatical normativa;

• se distanciam dos usos efetivos dos brasileiros de escolaridade superior completa, mesmo em situações de escrita formal e monitorada” (VIEIRA, 2017, p. 8).

“um termo técnico para designar formas linguísticas que existem numa determinada realidade social, classificada a partir de critérios relativamente objetivos e de base empírica” (VIEIRA, 2017, p. 11).

FONTE: elaboração própria.

78 Como o próprio Lucchesi admite, essa distinção pode ser um instrumento metodológico útil, mas tem implicações, como o fato de a norma prescrita não se inscrever apenas no plano do dever ser, mas também num plano ontológico, como já discutido.

Identificamos alguns termos-chave da norma-padrão – modelos prescritos; gramática normativa; tradição escolar; força coercitiva; idealização de uma forma linguística; instrumento ideológico; norma subjetiva; dominação política e da norma culta – modelos comuns a falantes; educação formal; plural; escolarização; situação monitorada; fala e escrita; norma objetiva. Por último, destaquemos a posição de Mattos e Silva (2004), que utiliza normas cultas e não seu correspondente no singular, sendo coerente com a ideia de variação em qualquer norma.

A seguir, apresentamos a noção de purismo que, a princípio, se confunde com a de padronização, mas que apresenta suas diferenças.