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3 NORMAS LINGUÍSTICAS

3.3 HISTÓRIA DA PADRONIZAÇÃO NA LÍNGUA PORTUGUESA

3.3.1 Padronização no português europeu

Segundo Faraco e Zilles (2017), o português é uma língua originada de “falares românicos” (variedades originadas do chamado latim vulgar) que se desenvolveram no noroeste da península ibérica, após a dissolução do Império Romano. Os falares românicos eram exclusivamente orais, pois a escrita se dava em latim. No século XIII, esta surgiu em Portugal sob o reinado de D. Afonso II (rei de 1211 a 1223), numa nova unidade política autônoma, que exigia a construção de uma ordem jurídica própria. No entanto, sua disseminação e consolidação ocorrem somente no reinado de D. Dinis (rei de 1279 a 1325), que criou a primeira universidade do reino (Estudo Geral), a fim de formar especialistas em leis. Nas palavras de Faraco e Zilles (op. cit., p. 126): “Foi [...] só no reinado de D. Dinis que, nas últimas décadas do século XIII, se consolidou o uso sistemático da língua românica na documentação da Chancelaria Real portuguesa”.

Esse fato é relevante, segundo os autores, por ter ampliado as funções sociais da língua vernácula, levando a um desenvolvimento da língua românica na modalidade escrita. Apesar disso, essa modalidade da língua portuguesa ainda foi alternada com o latim escrito por séculos, pois que o ensino ocorreu em latim até fins do século XVIII. Outro exemplo citado é o do receituário médico, escrito em português somente no século XVII, ainda que desde o final do século XV (1498) houvesse determinação para tal. Esse último caso comprova a tese de Shohamy (2006) de que muitas políticas linguísticas não passam de intenções que nem sempre se realizam na prática dos usuários de uma língua.

Quanto ao nome português, o primeiro registro de que se tem notícia ocorreu nas

primeiras décadas do século XV. Anteriormente, tem-se registro de “nossa linguagem” para designar a língua, conforme mostrado por Faraco e Zilles, no Prólogo da obra Leal Conselheiro, de 1438, de D. Duarte (rei de 1433 a 1438). Há, segundo os autores, outros

termos genéricos para designar os falares românicos na Idade Média: vulgar, nosso vulgar, romanço/romance, linguagem, nossa linguagem.

Finalmente:

Nos finais do século XV, a imprensa chegou a Portugal, criando condições para uma relativa vulgarização do livro e o incremento da atividade literária, difundindo assim a norma modelar (a norma culta escrita).

Por outro lado, a partir de meados do século XV, a língua portuguesa, na esteira da expansão marítima de Portugal, saiu de suas fronteiras europeias e se tornou uma língua internacional. Essa expansão teve várias consequências (FARACO; ZILLES, 2017, p. 133).

Naquele momento, destacou-se o gênero “elogios”, escritos com a intenção de exaltar as línguas vernáculas frente ao latim ou a outras línguas mais prestigiadas externamente à época, tal como o francês. Em português, houve pelo menos dois “elogios” no século XVII: o

primeiro escrito por João de Barros (Dialogo em louvor da nossa linguagem, de 1540), e o

segundo por Pero de Magalhães Gândavo (Dialogo em defensam da lingua, de 1574). No caso

deste último, pretendia sobrepor a LP sobre o castelhano, visto que esta era uma segunda língua para os portugueses eruditos. Com essa atitude, Gândavo fazia parte de um grupo que praticava uma espécie de “patriotismo” linguístico.

Os autores destacam, no século XVI, a importância da gramatização – a instrumentação das línguas por meio de gramáticas, dicionários e ortografias (AUROUX, 1992) – para a fixação da norma-padrão nas diferentes nações que se consolidavam como Estados Modernos. Em Portugal, segundo Vieira (2018), as duas primeiras gramáticas a

contribuir com esse processo de gramatização são de Fernão de Oliveira (Grammatica da

lingoagem portuguesa, de 1536) e de João de Barros (Grammatica da lingua portuguesa, de

1540).

Embora comumente se possa associar a ideia de gramática a seu caráter prescritivo, Faraco e Zilles (op. cit.) relatam que seu surgimento no processo de gramatização europeia cumpria mais uma função descritiva, pois gramáticas não eram utilizadas na escola, já que nesse ambiente, em Portugal, até o século XVIII, só se falava e estudava em latim. Apenas no século XIX e início do XX, numa reação aos chamados galicismos (momento em que o francês/a cultura francesa era mais prestigiado/a no mundo ocidental), bem como os “erros” dos próprios letrados, é que elas passam a prescrever usos, quase sempre com base no preceito de Quintiliano: conforme os autores consagrados. Para Rajagopalan (2011, p. 125), porém, ter um falante ideal em mente já configura uma norma: “Ter em mente alguém ou algum grupo no lugar da figura de falante ideal é outra forma de postular uma norma em matéria de uso

linguístico”. Assim, o caráter prescritivista está presente mesmo nas primeiras gramáticas, na medida em que selecionam uma variedade para descrever.

Essa é uma ideia também defendida por Vieira (2018, p. 112), na abordagem feita a respeito das duas primeiras gramáticas portuguesas. Para ele, embora Fernão de Oliveira (1536) procurasse descrever os usos linguísticos do português, ele “lhes atribui juízos de valor”, explicitando os “bons” ou “maus” usos, razão por que não seria João de Barros (1940) o primeiro gramático da língua portuguesa, conforme alguns especialistas defendem. No entanto, a obra deste se diferencia da de Oliveira especialmente por seu caráter didático e sua persecução ao modelo latino, o que a tornou a precursora de toda a tradição fixada nas gramáticas vindouras.

Quanto ao uso de português no sistema escolar de Portugal, incluíram-no, pela primeira vez, na disciplina de Latim na escola básica, em 1770. As primeiras gramáticas (século XVI), portanto, não foram produzidas para a escola, ainda que tivessem finalidade didática, a partir de Barros (1940). Seus autores, em geral, eram preceptores dos filhos da nobreza e suas gramáticas serviam de apoio pedagógico. Essa realidade, como vimos, se estende até o século XVIII.

Como já relatado, até o século XVIII, ensinava-se o latim nas escolas para um seleto grupo, filhos da nobreza de Portugal. Na segunda metade desse século, porém, Marquês de Pombal implanta políticas que favoreceram um novo segmento social, uma “alta classe média urbana” que passou a frequentar os liceus criados nos anos iniciais do século XIX e que posteriormente foi responsável pela ideia de degeneração da língua. Como consequência, os autores de gramáticas para as escolas secundárias passaram a condenar certos usos e prescrever outros de forma bem mais intensa, pois, segundo Faraco e Zilles (op. cit.), até aquele momento as gramáticas continham leves prescrições.

Foi nesse momento que a gramática inseriu os “vícios de linguagem” – “solecismos e barbarismos”, “não passando nunca de listas aleatórias, fragmentárias e repetitivas” (FARACO E ZILLES, op. cit., p. 153), que perduram, provavelmente por força da tradição,

nos LDP mais recentes do nosso corpus, embora pretendam seguir as orientações dos PCN.

Como se pode ver, o purismo linguístico não teve início na escola, mas encontrou nesta um forte aliado da tradição conservadora, padronizadora, inclusive mantendo o critério de antiguidade para selecionar o “bem falar”, distinguindo-o das formas “erradas”. Enfim, o século XVIII foi um marco para a consolidação do discurso purista, em Portugal, com efeitos

diretos na visão de língua que se tem ainda hoje no Brasil, especialmente nas escolas e nos meios de comunicação.

Com o passar do tempo, percebeu-se a variabilidade da língua em todas as circunstâncias, mesmo entre os autores clássicos da Antiguidade, e que tanto a norma culta quanto a norma-padrão são variáveis. É fácil comprovar isso se recorrermos a diferentes gramáticas a respeito de determinados conteúdos gramaticais. Uma das formas de negar essa variabilidade foi criar regras e considerar erros alguns usos dos autores consagrados.

A história da padronização do português no Brasil ocorre por consequência de políticas do império português, que deixou o País na sua dependência quanto a qualquer impressão de documentos até a chegada da família real em terras brasileiras. A partir do século XIX, porém, surgem disputas sobre a língua brasileira. Na seção seguinte, detemo-nos nessa história.