• Nenhum resultado encontrado

3 NORMAS LINGUÍSTICAS

3.2 NORMAS E REGULAÇÃO LINGUÍSTICAS

3.2.3 O purismo e as normas brasileiras

Embora seja evidente a relação estreita entre padronização e purismo linguístico, eles não são exatamente a mesma coisa, pois se para existir padronização é necessário que haja também a noção de purismo, o contrário não é verdadeiro. Segundo os estudos de Leite (2006), que o tem como objetivo principal, é possível perceber que este último é um conceito mais amplo. O purismo seria, então, a defesa de uma norma impulsionada pelo conservadorismo do usuário da língua. Como veremos adiante, essa norma não se restringe a uma única variedade da língua, mas a qualquer uma delas. Nesse contexto, entram em conflito

duas forças: a tradição vs. a inovação.

Na escola, o problema da “imperfeição da aprendizagem da língua” seria mais

evidente, no âmbito da aprendizagem da norma culta, a respeito da qual “se constrói a metalinguagem preservadora de uma tradição linguística. Essa metalinguagem revela a luta da tradição contra a renovação na língua” (LEITE, 2006, p. 15). Por esse motivo, o trabalho da autora consiste em “estudar o purismo como um fato linguístico de conservação, por meio da metalinguagem” (op. cit., p. 16).

Em seu trabalho, interessam-nos especialmente a fundamentação do purismo em si e alguns fatos linguísticos, como a colocação de pronomes, que servem para compreender a fixação de uma norma linguística no Brasil, onde o purismo linguístico estaria muito relacionado com a força da tradição. Isso porque não haveria, entre nós, uma política purista oficial, como há na França, por exemplo. Apesar disso, ele se revela na imprensa e nos meios de comunicação em geral.

O purismo existe sempre que um determinado grupo elege uma forma de falar como a melhor, dentre outras. Entendendo o purismo como a tentativa de preservação de um uso, Leite (op. cit.) não o relaciona apenas à língua culta, mas a qualquer variedade. Como exemplo de nossa realidade, podemos citar grupos sociais cujos membros são analfabetos, ou quase, mas que tentam impor inúmeras regras sobre os usos da língua: não dizer “palavrão”; falar de uma determinada forma por ser menina; evitar termos como “câncer” ou “diabo” (tabus); tratar por “finado” quem morreu; tratar por “comadre/compadre” os padrinhos de seus filhos e assim por diante. Como se pode ver, todos esses comportamentos linguísticos indicam a exigência de determinados usos da língua e qualquer pessoa que conhece(u) os sertões nordestinos, reconhece essas práticas, algumas das quais talvez em desuso.

No entanto, a compreensão de purismo, em geral, é outra, como se pode ver em Mattos e Silva (2000, p. 40), por exemplo:

Não desconhecem os prescritivistas a variação, mas defendem que só há uma forma correta de dizer. É esta fidelidade que leva ao “purismo”, o fantasma reacionário que perseguiu tantas gerações e produziu curiosa atividade linguística, de larga audiência e até hoje solicitada, os “consultórios gramaticais”.

Purismo, nesse sentido, está diretamente relacionado com os sujeitos que detêm algum poder sobre a prescrição de formas de falar de prestígio social. Rey (2001) também trata o purismo nessa perspectiva, pois este faria parte de uma “atitude normativa ativa”, que “apaga as condições e as implicações sociais de seus julgamentos, para remeter sua causa a um conceito abstrato da ‘língua’ e da ‘palavra’.” (REY, op. cit., p. 136). Haveria, então, um artifício em se fazer acreditar na possibilidade de que todos pudessem usar uma determinada forma linguística, sendo-se mais rigoroso com os burgueses cultos, mas esperando que falantes menos privilegiados os imitem. Purismo, nessa ótica, assume um tom pejorativo:

Purismo, com efeito, qualifica uma atitude normativa permanente que repousa num modelo unitário e fortemente seletivo da língua e não tolera nenhum desvio em relação a esse modelo predefinido, quaisquer que sejam as condições objetivas da vida linguística da comunidade (REY, 2001, p. 137).

Dessa forma, não seria purista a parcela mais ampla da sociedade, mas apenas aqueles que detêm um certo poder de legislar sobre o discurso, invalidando algumas variações. Essa é uma diferença fundamental, pois, na visão de Rey (2001), o purismo existe devido à negação da mudança histórica. Ademais, o autor trata de purismo considerando o ponto de vista dos franceses e se vê claramente a diferença da nossa realidade. A nosso ver, não temos puristas

com características semelhantes aos da França: aquele que vê no camponês ou no escritor regionalista os melhores exemplos de falantes de uma língua, como o autor diz ocorrer lá.

No entanto, pelo menos uma afirmação parece bem aplicável ao purismo linguístico (nesse sentido pejorativo) entre nós e tomando por puristas os defensores de uma norma- padrão idealizada: “o purista acumula listas de infâmia, um museu de horrores” (REY, 2001, p. 140). Isso é facilmente comprovável em muitos contextos em que o purismo, nesse sentido, se dá. Também, apesar dessa diferença, concordamos com Rey que é preciso estudar as condições objetivas (linguísticas e sócio-históricas) em que ocorre o discurso purista. Parece-nos possível pôr em foco esse discurso que porventura esteja Parece-nos MP/LDP, reconhecível por

meio das ideologiasque se revelam nestes.

Quanto à norma, Leite (op. cit.) afirma que esta não é “algo rígido em oposição a algo espontâneo” (p. 38), pois ela se faz da espontaneidade que se repete até certo ponto, quando é substituída por outra norma. Destaca, ainda, dois pontos básicos da complexidade da norma:

1o) as normas existem na mesma proporção dos usos; e 2o) a norma é temporária, mas é

impositiva e resiste à troca. Ela então caracteriza os puristas como sendo aqueles que não aceitam novidades na norma, pois estão habituados a um uso tradicional. Ocorre-nos que todos nós teríamos algo de puristas, desde que seja difícil imaginar pessoas sem nenhuma resistência às mudanças na língua. Essa ideia parece coerente com a da autora, para quem o purismo não tem, necessariamente, uma acepção negativa.

Leite (op. cit.) trata então de duas acepções do purismo. A primeira delas, mais conhecida, diz respeito ao “cuidado excessivo com a língua literária que vigorou em algum ponto do passado” (p. 42). Ela tem origem demarcada na Grécia antiga, a partir da retórica. No entanto, esse conceito se ampliou, passando a considerar não só os textos literários, mas qualquer comportamento linguístico. A autora propõe, então, uma classificação: purismo

discursivo metalinguístico e purismo discursivo, stricto sensu. Esse último aponta para as

escolhas linguísticas (lexicais e sintáticas) do falante e isso exige uma análise subjetiva do fenômeno. A autora, por esse motivo, prefere utilizá-lo apenas de forma complementar. Ela se detém no purismo metalinguístico, propondo três critérios básicos para sua análise:

1. O histórico ortodoxo: a pureza da língua está no passado; em relação ao Brasil, o

passado literário é português, da fase antiga até o Romantismo.

2. O nacionalista: procura-se valorizar a língua em uso e, aparentemente, rejeitar o

3. E o histórico heterodoxo: o passado da língua é usado por quem conhece a norma culta, causando violência simbólica pela linguagem. Nesse caso, o preconceito pode estar até nas altas camadas da sociedade, contra aqueles que não dominam tal norma.

Na análise da polêmica entre Rui Barbosa e Ernesto Carneiro Ribeiro sobre a redação do Projeto do Código Civil, no início do século XX, Leite (op. cit.) trata da colocação pronominal, que é um tema bastante discutido entre os contendores. Estes acabam discutindo

o significado gramatical da palavra atração, que até hoje é utilizada para justificar a próclise

em alguns casos. Leite defende que seu uso não é facilmente justificável, pois alguns tentam explicar esse caso por razões fonéticas e outros, morfossintáticas, sem que qualquer uma das explicações seja definitiva. Na discussão, ambos acabam admitindo que o fenômeno da atração é apenas uma convenção, mas, por força da tradição, se obrigam a falar de tal.

No capítulo em que trata do “Purismo heterodoxo e a norma brasileira”, Leite retoma a chegada da Linguística e da Sociolinguística no Brasil e seus impactos no ensino da língua. Esta última chega a nossas terras e academias na mesma década em que se amplia o acesso à escola pública, em 1970, coincidindo com a produção dos primeiros MP como demanda de uma leva de professores com pouquíssima formação escolar. A entrada dessas ciências na universidade ou a mudança de atitude dos professores com relação às variações linguísticas não ocorreram, porém, de forma repentina, pois, apesar de Mattoso Câmara já divulgar a Linguística desde a década de 1930, ela só passa a ser disciplina obrigatória nos cursos de Letras em 1962, pelo Conselho Federal de Educação.

Acrescentamos a esse panorama descrito por Leite o fato de a Linguística (para ficar só nela) também não chegar aos futuros professores de línguas uniformemente. Exemplificamos com nosso programa no curso de Letras com habilitação dupla (português e inglês), na Universidade Estadual do Ceará, campus do interior, no início da década de 1990. Naquele momento, as disciplinas principais da habilitação em português eram Língua Portuguesa I, II, III etc. De Linguística, havia uma única disciplina, em que se estudava o Curso de Linguística Geral. Na habilitação em língua inglesa, havia Linguística Aplicada, em que se via a fonética de uma variedade do inglês.

Apesar desse retardo na chegada das novas teorias e de suas implicações nos cursos de Letras nos rincões do Brasil, nos anos 1980, as teorias da variação linguística traziam ao Brasil a discussão em torno das variedades faladas pelas classes populares, levando, aos poucos, a mudanças de postura dos professores de língua portuguesa. Nesse contexto, a autora defende que a chegada de outras normas linguísticas à escola, o esgotamento da prescrição

por meio do acesso de pessoas pertencentes a uma outra classe social e, consequentemente, a uma outra cultura, geraram a sensação de crise no ensino de língua. Essa mudança, no entanto, só se intensificou com a introdução dos PCN nas escolas. Esse documento trazia muitas concepções novas e acabou forçando o professor a utilizá-las, a fim de acompanhar as novas teorias, e, de alguma forma, elas reverberaram nas salas de aula.

Apesar de entendermos a crítica de Geraldi (2018) às políticas oficiais impostas pelos governos neoliberais dos anos 1990, precisamos admitir que, por serem oficiais, chegaram às escolas com muito maior alcance do que as discussões dos anos 1960-1990, mais restritas a espaços de cursos promovidos por governos estaduais ou municipais e aos ambientes acadêmicos. Infelizmente, no Brasil, o aumento da oferta esteve sempre atrelado a uma queda na qualidade. Talvez seja essa a crítica mais procedente de Geraldi (op. cit.). Ganhamos com a ampliação no número de licenciandos e professores com acesso às novas teorias, mas perdemos no aprofundamento delas, pois, na forma como foram implantadas, demorou-se a compreendê-las, a fim de utilizá-las adequadamente, seja elaborando suas aulas conforme seus pressupostos, seja contrapondo por meio da compreensão crítica delas. Os PCN, porém, começam a dar lugar a uma nova política sem que os professores os tenham compreendido de modo aprofundado.

Na visão de Leite (2006), a falta de conhecimento quanto ao conceito de norma

linguística e sua relação com as comunidades linguísticas causou insegurança aos professores

no tratamento da variação linguística do aluno. Essa falta, a nosso ver, é mais ampla e passa pela ausência ainda constante da área de PL nos cursos de Letras.

Por ser a padronização uma questão central em nosso trabalho, resgatamos, na seção seguinte, um pouco de sua história em Portugal e no Brasil.