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O título parcial deste capítulo é uma frase de Thomas Kuhn ([1962] 2003) a respeito de como ocorrem as mudanças no campo da ciência, no qual são comuns a regularidade e a estabilidade, garantidas a partir de certos parâmetros, até que surjam novas descobertas –ou revoluções científicas– impulsionando reorientações, novas perspectivas, novos paradigmas. Nesse entremeio, até que o novo se estabeleça, há a desestabilidade, a desordem, o caos.

Imagino que essa tenha sido a inspiração para o título da obra de Britto (1997): A

sombra do caos: ensino de língua x tradição gramatical, na qual, a partir de sua

experiência como ex-professor de Português e sob a influência de sua formação nos estudos linguísticos, faz uma crítica ao fato do ensino de língua resumir-se a ou confundir- se com ensino de gramática normativa. Dentre suas principais teses, destacam-se: i) ninguém fala a norma culta, pois há vários níveis, registros e variedades de fala e não há qualquer modalidade que unifique essa diversidade; ii) esse conceito é atrelado à língua escrita, a qual historicamente é usada como instrumento para dominação cultural das classes desprivilegiadas; iii) portanto, é um equívoco da escola pretender ensinar a língua

padrão a partir da gramática normativa; iv) a escola deve garantir que todos aprendam a

língua escrita e suas inúmeras possibilidades de discurso. Essas teses vêm na esteira dos estudos linguísticos, elaborados e difundidos aos professores em exercício, sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, momento em que a Linguística passa a dirigir parte de seus estudos às questões do ofício didático-pedagógico (cf MANINI, 2009).

Esse período marca a virada pragmático-discursiva nos estudos da linguagem, tendo como principais objetivos: os textos completos e não somente fragmentos ou frases isoladas para o ensino de língua, as diferentes vozes, os diferentes efeitos de sentido, as variações linguísticas, a língua oral, os diversos gêneros textuais/discursivos e tudo mais que mostre a língua em uso e possibilite as manifestações do sujeito da/na linguagem. O ensino da gramática tradicional em sua perspectiva normativo-prescritiva era dado como o principal empecilho à aprendizagem da língua materna por ser a frente prioritariamente trabalhada nas aulas de Português e por boa parte dos alunos sair do Ensino Médio apresentando grandes dificuldades em leitura e produção escrita. O texto na sala de aula (GERALDI, 1984) surge como o principal instrumento para a almejada revolução na prática didática do ensino de Português.

É fato que esse instrumento se estabelece, ampliando sobremaneira as possibilidades do ensino de Português, conforme atestam propostas, referenciais e diretrizes curriculares, materiais didáticos, cursos para formação de professores e formas de avaliação em processos seletivos que passam a ter a redação como critério eliminatório. Paralelamente a isso, destaca-se uma profusão de discursos sobre como ensinar gramática, gerando interpretações equivocadas a ponto de se supor não ser mais necessário trabalhar essa frente de ensino ou até mesmo não se sistematizarem regras sobre o funcionamento da língua quando, na verdade, o que se propõe é uma mudança de paradigma: deve-se, sim, ensinar a gramática, mas não apenas sob a metodologia transmissivo-prescritiva e nem considerando apenas a gramática tradicional. O texto na

sala de aula sugere uma prática que articule as atividades de leitura e escrita às atividades

gramaticais, mostrando a gramática contextualizada.

Como mostrado em Manini (2009), os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa30, divulgados em 1998, e o PNLD, que a partir de 1996 passa a avaliar

30Que propõem uma metodologia de ensino (partir de atividades de uso da língua oral e escrita, ir para

contínua e sistematicamente os materiais que serão adquiridos pelo governo federal e distribuídos a alunos da Educação Básica, são documentos recentes que revozeiam os principais estudos sobre ensino de língua materna realizados no âmbito acadêmico. Entendemos tais documentos como políticas públicas voltadas para a educação linguística que indicam o que se espera da prática didática. A expectativa é a de uma articulação entre: leitura, escrita, oralidade e análise linguística, sendo que esta última engloba conhecimentos gramaticais (fonética, fonologia, ortografia, morfologia, sintaxe, semântica) e conhecimentos sociolinguísticos, textuais e discursivos, caracterizando-se, portanto, como um eixo de ensino ao qual não cabe denominar como gramática e apontando para a necessidade de uma distinção entre a visão cristalizada do ensino dessa frente e a prática de análise linguística ou os conhecimentos linguísticos, ao estilo da distinção feita entre os termos redação e produção de texto escrito.

O que passa a ocorrer nas salas de aula de Português é difícil precisar. Há as propostas oficiais que indicam uma base mínima a ser trabalhada. Junto a isso, há as especificidades das diferentes formações, interpretações, modos de acessar propostas curriculares e materiais didáticos, além das crenças que perpassam o gesto de ensinar, dos diferentes projetos de cada escola e de cada professor. Há também relatos de docentes dizendo que trabalham de acordo com práticas mais renovadas quando pouco o fazem. É como se houvesse uma espécie de vergonha em dizer que realizam o tradicional. De qualquer modo, entendo que atualmente há uma ampliação das possibilidades: não só, mas também o tradicional aliado às perspectivas dos estudos linguísticos, do texto como unidade, da aula como um acontecimento, um processo dialógico, um lugar de interlocução professor-alunos via objetos de conhecimento. Arrisco dizer que essa ampliação configura-se como uma nova ordem que aos poucos foi sendo estabelecida, ao menos é como entendo que produzo meu modo de ensinar, o qual vem descrito a seguir.

baseada declaradamente nas obras de Geraldi: “Essa organização articula propostas de João Wanderley Geraldi para o ensino de Língua Portuguesa, apresentadas em ‘Unidades básicas para o ensino de Português’ (in O texto na sala de aula) e em ‘Construção de um novo modo de ensinar/aprender a Língua Portuguesa’ (in Linguagem e ensino: exercícios de militância e divulgação)” (BRASIL - MEC/SEF, 1998, p. 35).