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O título parcial deste capítulo remete à peça de teatro criada pelo grupo Lume (http://www.youtube.com/watch?v=UrHvD2U49ug) que, baseando-se em depoimentos reais de antigos trabalhadores da fábrica de chapéus Cury de Campinas, conta a fantasia de três ex-chapeleiros e um jovem aprendiz que se reúnem com o objetivo de criar o

chapéu perfeito. Essa busca é entrecortada por depoimentos recolhidos de trabalhadores

aposentados e que ganham voz nas narrativas dos personagens em cena. A cada história contada, um chapéu vai sendo confeccionado. O resultado final de cada produção sempre acaba por agradar uns e desagradar outros, de modo que mantêm o já feito, mas envolvem- se numa nova, animada e dedicada busca pelo chapéu perfeito; assim seguem até o final do espetáculo.

O paralelo dessa narrativa com o fazer desta tese (em especial deste capítulo, que busca delimitar objeto, fundamentação teórica e método) se dá por tomarmos a pesquisa como uma busca intensa, que demanda esforço, dedicação, refeituras, desajustes, onde se manifestam diferentes vozes, diferentes pontos de vista, diferentes apreciações valorativas (muitas vezes experimentadas pela própria pesquisadora) sobre um mesmo objeto e onde o sentido de acabado, conforme Bakhtin (2003), é dado pelo tratamento exaustivo dado ao tema e por uma finalização que abre possibilidades para atitudes responsivas dos interlocutores. Essa finalização é formal e temporária, pois o querer-dizer do locutor-pesquisador é amplo, não se esgota em um trabalho científico; por outro lado, há as especificidades do gênero em que se inscreve e é necessário delimitar, circunscrever, controlar objetos e perguntas de pesquisa.

O fazer dos chapeleiros acima mencionado nos remete à definição de Bourdieu (1987), com a qual concordamos, da pesquisa como uma elaboração artesanal, um ofício nem um pouco místico, pois demanda esforço, minúcia e exige uma postura realista, racional. Um ofício no qual o temor e a angústia se fazem presentes, no qual se correm riscos, o pesquisador se expõe e deve evitar a armadilha do objeto pré-construído, pois o objeto de estudo se constrói no percurso de uma pesquisa; é ele quem demanda teorias e métodos para sua análise e compreensão. Conforme o autor:

A divisão “teoria”/ “metodologia” constitui em oposição epistemológica uma oposição constitutiva da divisão social do trabalho científico num dado momento (como a oposição entre professores e investigadores de gabinetes de estudos). Penso que se deve recusar completamente essa divisão em duas instâncias separadas, pois estou convencido de que não se pode reencontrar o concreto combinando duas abstrações.

Com efeito, as opções técnicas mais “empíricas” são inseparáveis das opções mais “teóricas” de construção do objeto (BOURDIEU, 1987, p. 24).

Essa ideia de que “o caminho se faz ao caminhar” vem como contraponto ao

modus operandi da perspectiva sistêmica/formalista/positivista de se fazer pesquisa nas

Ciências Humanas, cujos resultados apontam para uma aparente linearidade,

tranquilidade, facilidade, garantindo ao pesquisador o controle da situação e seu status.

Laymert Garcia dos Santos, em Desregulagens (1981) –obra fascinante, instigante, envolvente, cujo foco é a implantação de um projeto educacional no Rio Grande do Norte envolvendo o ITA, a NASA, o INPE e profissionais da Educação no desenvolvimento de sistemas de satélites que viabilizariam a divulgação de tele aulas a fim de formar professores e alunos, a qual acaba “abalando as estruturas” (no sentido dado por Thomas Kuhn, 2003) e tematizando, entre tantas outras coisas, o fazer científico, a ideia de desenvolvimento à época do regime militar no Brasil, nossa organização como nação e as imensas desigualdades que grassam a sociedade brasileira e que são desconsideradas pelo modelo de escola e projetos educacionais aqui implantados– faz uma severa crítica a esse tipo de pesquisa bem-sucedida demais para ser verdadeira, “onde um certo sujeito constrói um certo objeto a partir de um certo quadro teórico e de fatos observáveis, tenta situar os pontos cardeais, os núcleos” (SANTOS, 1981, p. 16). Segundo o autor, que é do campo da Sociologia, o motor de uma pesquisa são as hesitações, a inquietação, a dificuldade, sobretudo em se tratando de pensar a complexidade de temas sociais.

Nesse mesmo sentido, Bourdieu (1987, p.18) afirma que “nada é mais universal e universalizável que as dificuldades. Cada um achará uma certa consolação no fato de descobrir que grande número das dificuldades imputadas em especial à sua falta de habilidade ou à sua incompetência, são universalmente partilhadas”. Sua crítica dirige-se também à prática do que define como homo academicus, aquele que gosta do trabalho

acabado, sem que sejam mostrados os percalços do processo de pesquisa e que se coloca

num pedestal, seja por fazer parte do universo universitário, seja pelo tema que estuda. É procurando subverter esse processo que Bourdieu (1987) propõe um modus

operandi (ou uma pedagogia de pesquisa, como ele chama) que inverta o modo de

abordar o objeto e, portanto, inverta o processo de pesquisa: em vez de partir do teórico para o concreto, o ponto de partida devem ser situações práticas. Sua intenção é desvencilhar-se da teoria pura e trazer o foco para a prática. Entretanto, nessa “ruptura epistemológica”, o pesquisador não pode desconsiderar totalmente o que se produziu antes e nem prescindir dos chamados “instrumentos da tradição douta”, caso contrário não passará de um simples amador que não conseguiu romper com o senso comum e “construir um objeto científico é romper com o senso comum” (BOURDIEU, 1987, p. 34).

Em Esboço para uma autoanálise (2004, p. 72-73), Bourdieu afirma que, para combater a ortodoxia nas Ciências Sociais, era necessário o empenho em investigações empíricas teoricamente inspiradas; sobre o campo contra o qual se insurge, diz: “a recusa da definição cientista da sociologia me levou a interessar-me pelos mundos sociais mais diversos”. Por isso, defende que, em vez da tradicional rigidez científico-positivista, deve se fazer presente, em íntima relação com o objeto de pesquisa, o rigor teórico e metodológico. “E o sacrifício que o método rigoroso exige é ainda maior...” (BOURDIEU, 1987, p. 48).

Sob tal método, o pesquisador deve assumir uma postura reflexiva que o leve a considerar sua história com o campo de pesquisa, bem como a história dos sujeitos que compõem o campo; essa prática é também denominada como sócio análise e deve ser constante, pois permite ao pesquisador uma tomada de consciência que pode ajudá-lo a controlar suas atitudes menos favoráveis. A ideia do autor é a de que o sujeito é o que é, para o bem e para o mal, em função de suas características sociais, escolares ou sexuais, mas, uma vez que tem consciência do que seja, é mais fácil controlar-se, isto é, controlar suas pulsões.

Além disso, deve pensar relacionalmente, o que significa colocar os rótulos em suspensão, esquecer-se de definições apriorísticas para se pesquisar, tais como: “os negros”, “a escola”, “os jovens” e pensar os sujeitos de pesquisa em termos de agentes

sociais que trazem suas histórias, seu capital econômico, seus costumes, inter-

relacionam-se e, por isso, possibilitam a combinação de diferentes ferramentas para analisar os dados gerados. Em “Efeitos de lugar” (BOURDIEU, 2008, p. 160), o autor aprofunda essa definição quando afirma que “o espaço social se retraduz no espaço físico” e isso é marcado por práticas valoradas na relação do indivíduo com o todo. A relação é dada como uma categoria fundante e não como uma circunstância empírica, por isso deve estar sempre presente.

Por fim, no trabalho sob o método rigoroso, Bourdieu (1987, p.52) postula que, em vez de o pesquisador realizar a observação participante, colocando-se como um observador imparcial do contexto de pesquisa, sendo “ao mesmo tempo onipresente e ausente”, deve realizar a objetivação participante, a qual implica dar-se conta do lugar da pesquisa, do seu lugar na pesquisa, dos modos como a desenvolve e, portanto, das circunstâncias objetivas e subjetivas que permeiam tal prática.

Entretanto, como o homem que faz a pesquisa é movido pelo interesse, o que cria uma linha tênue entre a construção do objeto e a armadilha do objeto pré-construído, é necessário precaver-se para não sucumbir à parcialidade. Conforme Bourdieu (1987, p. 58), o sujeito pesquisador deve renunciar

à tentação de se servir da ciência para intervir no objeto, para se estar em estado de operar uma objetivação que não seja a simples visão redutora e parcial que se pode ter, no interior do jogo, de outro jogador, mas sim a visão global que se tem de um jogo passível de ser apreendido como tal porque se saiu dele.

É necessário, portanto, objetivar-se e objetivar os objetos, os dados, as categorias de análise. Tais procedimentos levariam ao “cume da arte sociológica”.

Em Esboço para uma autoanálise, obra que personifica o exercício da objetivação participante uma vez que, através da auto-objetivação, o autor procura explicar, compreender, aprofundar e sistematizar seu fazer científico, Bourdieu (2004, p. 50) critica o objetivismo distanciado, dizendo:

[eu] iria descobrir muito rapidamente que a etnologia, ou, pelo menos, a maneira específica de a conceber encarnada por Lévi- Strauss e que a sua metáfora do “olhar distanciado” sintetiza, permite também, de maneira bastante paradoxal, manter à

distância o mundo social e mesmo “denegá-lo”, no sentido de Freud, e, deste modo, estetizá-lo.

Sua defesa é a de uma reflexividade permanente e prática, que se constitua em objetivação científica.

Procuramos nos orientar por esses conceitos para desenvolver esta pesquisa; arriscado será dizer que nos valemos do método rigoroso para desenvolvê-la, mesmo porque estamos na tentativa de romper com a rigidez de definir um método. Por isso, apropriamo-nos também de outros conceitos e orientações sobre o fazer pesquisa em Ciências Humanas, os quais vêm apresentados a seguir. A nosso ver, são conceitos e concepções teóricas que se aproximam em vários aspectos, ajudando-nos a compor este discurso, afinal, conforme Bakhtin (2003, p. 307), as Ciências Humanas “são pensamentos sobre pensamentos, vivências das vivências, palavras sobre palavras, textos sobre textos”. E mais:

A interpretação como correlacionamento com outros textos e reapreciação em um novo contexto (no meu, no atual, no futuro). [...] O texto só tem vida contando com outro texto (contexto). Só no ponto de contato de textos eclode a luz que ilumina retrospectiva e prospectivamente, iniciando dado texto no diálogo (BAKHTIN, 2003, p. 401).