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Capítulo 2. Três faces da intervenção bem-sucedida

2. O cuidar como redução de danos: uma estratégia para o acolhimento das queixas

3.2. Entitlement e complementariedade dos sexos

Em resumo, todas essas queixas remetem a algo inaceitável para os participantes: a possibilidade de uma mulher ter interesses pessoais independentes e/ou antagônicos aos interesses de um homem. A emergência das mulheres como sujeitos éticos e sociais é barrada; nas conversas entre homens, as relações entre homens e mulheres são representadas e normatizadas na direção contrária à autonomia feminina. Muitos relatos e queixas dos participantes denunciam o modo como os atos das mulheres ferem certo equilíbrio nas relações sociais, ruptura cuja responsabilidade atribuem às mulheres.

O episódio seguinte é particularmente ilustrativo dessa ideia de um equilíbrio perdido por causa da emancipação feminina. Um dia um participante do grupo me pediu para explicar minha compreensão da violência contra as mulheres no Brasil. Eu falei então que eu tinha a impressão que os locais onde se observa a mais alta taxa de feminicídios são locais onde as mulheres começam a quebrar os padrões tradicionais da feminilidade e conquistar sua independência em relação aos homens, mas estes últimos ainda não estão preparados para isso e reagem como se fossem ofendidos. Um dos participantes presentes veio depois falar comigo para me explicar que minha visão do problema era, segundo ele, ainda muito incompleta. Como eu o questionava a respeito do que ele entendia como uma lacuna, ele expôs sua compreensão do problema da criminalidade no Brasil. Segundo ele, o divórcio é um direito legítimo das mulheres, mas teríamos que pensar melhor nas consequências, pois as mulheres não conseguiriam criar os filhos sem os pais depois de divorciadas. Por isso cada vez mais jovens se tornariam criminosos.

Na perspectiva deste homem, os direitos das mulheres, independente de serem reconhecidos como legítimos, comprometem o conjunto da ordem social. A maioria dos participantes não vai tão longe, mas menciona a quebra da ordem no âmbito das famílias e dos casais. O equilíbrio rompido é evocado como “harmonia” ou “sinergia no casal” ou na “família” onde todos desejariam o bem comum e, por isso, se comprometeriam a executar seus respectivos papéis de gênero (sem considerar o caráter desigual, irrealista, ou ainda, violento, desses papéis). Por isso identifico como tema subjacente a ideia de

complementariedade dos sexos, enfatizando a interdependência entre homens e mulheres

remete à releitura por Gayle Rubin da teoria das necessidades segundo Marx: existe um “‘elemento histórico e cultural’ que determina que uma ‘esposa’ encontre-se entre as necessidades de um trabalhador” (59).

Porém, como também mostra Rubin, nem Marx consegue nomear explicitamente essa necessidade masculina, como se ela permanecesse inconsciente, invisível. O trabalho que consiste em ser a mulher da qual os homens precisam permanece invisível enquanto trabalho (aparecendo, no máximo, como um lazer, um prazer, uma mania ou uma obsessão das mulheres). Ser aquela mulher é, precisamente, compreendida como um ser, não como um tornar-se (113), fruto de um trabalho que pode fracassar ou até ser abortado, sabotado. Uma das mais importantes e difíceis tarefas das teóricas feministas desde Beauvoir é questionar a ideia segundo a qual as mulheres são mulheres.

Mulheres somos, não é uma qualificação entre outras, é a nossa definição social. Loucas acreditamos que é apenas um traço físico, uma “diferença” – e que a partir deste “dado” múltiplas possibilidades nos seriam abertas. Ora, não é um dado, é um fabricado, ao qual, em cada instante, nos é significado que devemos nos ater. Não é o início de um processo (um “começo”, como acreditamos), é o fim dele, é uma cerca. (60)

O problema para os homens é que constroem projetos baseados naquele ser

mulher, sem levar em consideração sua natureza contingente, socialmente construída no

âmbito de relações de poder, as quais são sujeitas a transformações. Muitos participantes evocam a ruptura de suas expectativas a respeito do que um relacionamento heterossexual ou uma família “deveriam” ser: como deveriam funcionar as relações entre homens e mulheres de acordo com certa “ordem das coisas”. Essa ordem pode ser indexada à religião ou à natureza humana, ou apenas ser compreendida como o “sonho” de uma pessoa em particular, seu próprio ideal, preferência ou projeto pessoal de felicidade conjugal e familiar. Mesmo individualizados, o enraizamento desses projetos na cultura permite que os homens confiem neles. Sentem-se desamparados ou indignados quando não se realizam. O que os homens expressam entre si no registro da queixa pode, no contexto da relação conjugal, expressar-se sob a forma de violência contra as mulheres.

Em uma ocasião, eu cheguei a questionar um participante do grupo que estava se queixando da conduta da sua companheira: eu queria compreender por que ele continuava

morando com essa pessoa, embora ela, de acordo com os seus próprios dizeres, não o tratava bem (ela sempre reclamava dele, nunca o apoiava ou lhe mostrava carinho). O homem respondeu que ele tinha começado a morar junto com ela apenas uma semana depois de conhecê-la; logo depois, ela tinha engravidado: a situação começou então a piorar, ou seja, ele começou então a conhecer a “verdadeira” personalidade da companheira (em alguma ocasião, outro homem disse no grupo que “só se conhece uma mulher na hora da separação”). Eu declarei então que isso me parecia refletir uma tendência de vários homens em confiar em mulheres praticamente desconhecidas, como se toda mulher amada e/ou amorosa (um amor baseado em critérios não relacionais) fosse necessariamente uma boa companheira para eles, ou como se um conhecimento exterior, objetivo, e não relacional, bastasse para escolher uma parceira. Me pareceu que tínhamos, como homens, uma tendência em “acreditar na infinita bondade das mulheres”, ou de algumas delas. Em resposta, quatro outros participantes revelaram que eles, também, tinham ido morar com suas companheiras apenas uma semana depois de conhecê-las, apoiando a minha interpretação.

Encontramos no estudo de Maria Eveline Cascardo Ramos (23) outras testemunhas convergentes a respeito da frequência desta situação em casais afetados por violências domésticas: um ou ambos os cônjuges se relaciona com o outro com base em “sonhos” que não procura compartilhar com o outro. Compreendemos que isto ilustra a força da crença na “complementariedade dos sexos”: qualquer mulher pode “completar” qualquer homem, como se, por “serem” mulher e homem, essa fosse sua “função” – mais do que um dever, uma natureza, um destino inscrito nos corpos desde o formato das genitálias. O caráter mútuo desta adequação sem processo nem conflito não se sustenta na prática, e a sua assimetria já se percebe nas entrelinhas do discurso: a cobrança pela concretização da felicidade do casal costuma ser atribuída apenas às mulheres (37).

As conversas dentro do grupo, no entanto, fornecem repetidamente diversos contraexemplos a essa crença até então implícita, o que permite torná-la visível e criticá- la, como mostraremos na continuação. Uma aprendizagem que se destaca dessas conversas é a aparente dificuldade ou impossibilidade para os homens de controlar a conduta das mulheres. As experiências compartilhadas sugerem que ser “bom marido”, bom namorado, etc. – ou seja, respeitar os padrões da moral masculina – é considerado por eles como um esforço ou um sacrifício deles, que deveria ser suficiente garantir, em

troca, por parte de uma mulher, o desempenho requisitado. Entretanto, os homens se queixam de que as mulheres tendem a quebrar essas expectativas dos homens a seu respeito. Apesar dessa constatação recorrente, as representações culturais da “complementariedade dos sexos” agem como um obstáculo para a reflexão: os relatos dos participantes apontam para o caráter incompreensível para eles das resistências das mulheres em “colaborar” com os seus projetos de felicidade familiais e conjugais. Tal incompreensão foi expressa por um participante (aproximadamente 40 anos, branco, profissional liberal na área da saúde) na forma da “desilusão” que lhe inspira sua experiência conjugal (descreveremos a cena mais detalhadamente na continuação); em outra ocasião, um participante (aproximadamente 30 anos, branco, da área de artes), afirmou sua própria incompreensão nos seguintes termos: “Me digam se eu sou louco, porque eu fiz tudo certo, e no final deu tudo errado”.