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Ponto de partida da reflexão: o apagamento da feminilidade em um abrigo para

Capítulo 2. Três faces da intervenção bem-sucedida

1. Ponto de partida da reflexão: o apagamento da feminilidade em um abrigo para

O trabalho que constitui o objeto desta pesquisa é estritamente masculino: realizado por e para homens. Paradoxalmente, encontramos as chaves para sua análise em um estudo de caso tratando de um trabalho inteiramente realizado por e para mulheres. Naquele estudo, intitulado “Trabalhadoras sociais em uma casa abrigo de mulheres

espancadasi: como permanecer mulher sem ser feminista?”, Liliana Saranovic (125)

mostrou que o simples fato de “permanecer mulher” se torna problemático para as trabalhadoras da casa abrigo em questão, mas também para ela, mobilizada “em qualidade de mediadora, com o objetivo de fomentar discussões acerca do trabalho”. Por isso, compreender a dimensão intersubjetiva deste trabalho permite pensar a feminilidade e, além disso, a identidade de gênero, como fruto de um trabalho subjetivo, que pode falhar, e não como um dado preexistente e estável.

No campo, Saranovic encontra muita dificuldade para elaborar a situação com a qual se depara. Constantemente ela deve lutar contra “a resistência da [sua] própria subjetividade”. Reflexivamente, ela atribui seu “emaranhamento” ao confronto das trabalhadoras – e o seu próprio confronto – à “arbitrariedade” e à violência das “relações

sociais de sexo”j, na forma de uma constatação inevitável e perturbadora: “Eu sou uma

mulher... como as mulheres espancadas. A razão pela qual as mulheres espancadas o são é que elas são, como eu, mulheres”.

Ser identificada a uma mulher espancada é uma experiência dolorida e desestabilizadora. Eu me dei conta disso no dia em que uma residente me perguntou: “Você é a nova residente?” Na mesma noite, eu confessei para mim mesma que essa pergunta tinha produzido em mim o efeito de uma bofetada. Eu não tinha nenhuma vontade de ser comparável a uma mulher espancada e, espontaneamente, nenhuma vontade de refletir sobre a razão pela qual isso me era tão desagradável! Será que a mesma coisa acontecia com as trabalhadoras sociais? (125)

A experiência direta ou indireta dessa semelhança deveria – de acordo com a autora – dar lugar a um posicionamento ético solidário entre mulheres. No entanto, a

i Mantemos o termo de “mulheres espancadas” (tradução do francês “femmes battues”) pois

transmite o imaginário social vigente no contexto. Essa expressão distinta da terminologia hoje consagrada (“mulheres em situação de violência”) reflete também a data de publicação do artigo (2001), anterior à institucionalização da luta contra a violência contra as mulheres, que ocorreu na França a partir de 2003 (104).

j A noção de “relações sociais de sexo” se deve em particular a Christine Delphy (116). No

feminismo materialista francês, ela coexiste com a noção de gênero (126). Enquanto o gênero refere ao sistema como conjunto, a expressão “relações sociais de sexo” dá destaque à dinâmica de poder que produz as categorias “homem” e “mulher” em cada contexto socio-histórico. São essas relações sociais que produzem a “sexagem” da sociedade, do pensamento e dos corpos. Nessa perspectiva, essas categorias sociais (masculino/feminino, homem/mulher) são construídas para consolidar (legitimar, enraizar, objetivar, estabilizar) relações sociais de poder, e não preexistem a essas relações.

equipe atual parece ter perdido a base feminista que caracterizava “a antiga equipe” fundadora da casa abrigo.

A identificação ao grupo mulheres não sendo mais sustentada pela militância, o lema “somos todas mulheres violentadas” só pode ser ouvido agora no sentido literal, assim como eu mesma o recebi em plena face quando uma residente me perguntou se eu era “a nova residente”. O que fazer com tal identificação negativa? (125)

As antigas militantes feministas foram substituídas por trabalhadoras sociais em resposta à evolução do público atendido. Cada vez mais, as mulheres acolhidas no abrigo são socialmente distantes das mulheres que as acolhem. Mais pobres, mais estrangeiras: essas diferenças sociais parecem ter posto em xeque a antiga solidariedade entre mulheres e justificaram uma abordagem mais “profissional” do trabalho. Saranovic mostra que por falta de uma mediação feminista na relação das trabalhadoras às mulheres acolhidas, a identidade feminina se torna tão angustiante quanto a própria violência, e como tal, ela é negada. A consciência política, mas também o hábito de zombar e rir de si mesmo, características da “antiga equipe”, tinham esse papel mediador; porém, no discurso da equipe atual, tais características são assimiladas a uma falta de “profissionalismo”.

O “profissionalismo” adquire aqui o estatuto de uma “ideologia defensiva de

ofício” (120) k : ele reforça a legitimidade da diferença de status entre mulheres. Além

disso, as mulheres que se identificam como “profissionais” conseguem até se diferenciar da identidade feminina que as une às mulheres acolhidas. As trabalhadoras conseguem negar a sua própria inscrição nas relações sociais de sexo: chamam-se entre si de “os profissionais”; exibem seu desafeto e aberto desprezo a respeito de tudo que relembra a feminilidade – o coquetismo, a sedução – e de todas as tarefas tradicionalmente femininas: higiene, manutenção da ordem, escuta empática, cuidado com as crianças... O feminismo da “antiga equipe” representava a atitude inversa, consistindo em afirmar “somos todas mulheres violentadas”, assumindo a identificação no plano político.

k Tal ideologia defensiva “emerge em situações extremas de sofrimento onde não há mais espaço

de discussão para remanejar a relação à organização do trabalho de um lado, onde a renúncia dos agentes a qualquer ação de melhoria se traduz pela aparição de uma prática dominante de denúncia e pelo esforço desesperado para manter a coesão dos agentes entre si por referência ao inimigo comum” (120).

Naquele contexto particular, a autora sugere que o pertencimento a um coletivo feminista era o que tornava suportável, para as trabalhadoras, sua identificação com a feminilidade. O problema do profissionalismo como ideologia defensiva é que acaba deteriorando o sentido do trabalho, pois a diferenciação que ele consolida dificulta tanto a relação entre as trabalhadoras como sua relação com as mulheres acolhidas. Essas últimas são, muitas vezes, culpadas pela violência que sofrem, “a ponto que algumas residentes se queixam... de se sentir melhor junto ao seu marido do que na casa abrigo!” (125). Quando, apesar disso, um encontro empático acontece, as emoções soterradas saem jorrando, provocando choros dos quais “os profissionais” não sabem o que fazer e que procuram esconder.

No entanto, essa estratégia defensiva das trabalhadoras representa apenas uma negação da sua implicação no problema – a violência dos homens contra as mulheres, e contra qualquer mulher – mas não resolve este problema. A violência dos homens continua constituindo uma ameaça cotidiana inclusive para a segurança das trabalhadoras. Nisso a ideologia defensiva se torna claramente patológica: a negação do perigo encoraja um grave “relaxamento que caracteriza a relação com a segurança no centro de acolhimento”, onde “se pode entrar sem nenhum controle” (125). Deste modo, este trabalho deixa um “resto”, um impensado considerável: o medo negado dos homens violentos. “Como se defender contra sombras? Contra uma ameaça que não tem rosto? E que não é nem evocada no imaginário coletivo?” (125). A única parte do enigma que continua acessível à consciência das trabalhadoras é “o entorpecimento do corpo e da inteligência – nos termos de uma delas, a sensação de afundar-se nas emoções” (125).

Ampliando o alcance das análises de Saranovic, convém questionar o modo como a equipe da casa abrigo foi se adaptando à evolução do público atendido, que passou a acolher cada vez mais mulheres em situações de extrema precariedade, acentuando a diferença entre elas e as mulheres que as atendem. As pesquisas sociológicas francesas, assim como as brasileiras, não confirmam a ideia segundo a qual a violência doméstica contra mulheres seria exercida apenas contra mulheres particularmente desfavorecidas (90,127). Entretanto, entrou em jogo uma dinâmica de diferenciação ou distinção entre grupos sociais: mulheres com menor vulnerabilidade social, e sem compreensão feminista das relações sociais entre homens e mulheres, passaram a negar todo e qualquer ponto

comum com as mulheres mais vulneráveis que atendiam, e isso implicou negar, em particular, sua própria vulnerabilidade, enquanto mulheres, à mesma violência de gênero que afetava o público atendido.

Este fenômeno observado no âmbito de uma prática profissional particular tem implicações para compreender o contexto ampliado das relações sociais entre homens e mulheres. Sugerimos que o caráter relativamente indiscriminado e aparentemente arbitrário da violência inerente às relações sociais de sexo é tão angustiante que a maioria dentre nós – homens e mulheres – aprende a evitar essa informação ao longo da socialização. A cultura, e em particular a separação entre público e privado, contribui particularmente para facilitar essa esquiva ou omissão, como atesta o ditado “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Ademais, a ideia segundo a qual uma mulher é, de algum modo, individualmente “responsável” pela violência que sofre, não se encontra apenas na equipe descrita por Saranovic: pelo contrário, ela é muito presente em nossas culturas (59,128). Apoiando-se nessas ideias veiculadas pela cultura, as mulheres conseguem tolerar a angústia, persuadindo-se que a violência só atinge mulheres muito diferentes delas ou que provocaram ativamente o ocorrido. Entretanto, o trabalho em contato com mulheres violentadas propicia encontros empáticos que põem em xeque essas defesas: isso faz surgir nas trabalhadoras angústias até então não elaboradas, apenas evitadas ou contidas pela cultura.

Neste âmbito, o feminismo representa um esforço para dar sentido – um sentido político – àquele “resto” ou inconsciente cultural levantado pelo trabalho das mulheres junto a outras mulheres. A análise de Saranovic sugere, embora através de um contraexemplo, de que modo a crítica feminista poderia contribuir de modo crucial para a integridade psíquica das trabalhadoras confrontadas por seu trabalho à arbitrária violência das relações sociais atravessadas pelo gênero.