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Os dados produzidos foram analisados por contraste com um modelo teórico desenvolvido especificamente para dar conta das questões levantadas durante o processo de pesquisa e que articula perspectivas e conceitos que incluímos abaixo. Como acontece tipicamente com o método etnográfico, a elaboração do quadro teórico de referência constituiu um processo paralelo ao processo de produção de dados empíricos: a progressiva compreensão do processo de trabalho estudado destacou lacunas nas referências teóricas mobilizadas pelo pesquisador para auxiliar sua tentativa de dar sentido às suas observações. Aqui apresentamos uma síntese do produto deste processo de teorização situado, ou seja, enraizado numa relação com o campo. Mais adiante, em cada capítulo, esses conceitos serão mobilizados e aprofundados no âmbito da discussão dos resultados, a fim de destacar suas contribuições para os objetivos da pesquisa.

O quadro da vulnerabilidade e dos direitos humanos em saúde tem sido muito produtivo para integrar diferentes saberes numa compreensão dinâmica do processo saúde-doença. Esse quadro ajuda a pensar a produção da violência nas três dimensões em que tem sido discutida: social, individual, e programática. Ao longo da resposta à

pandemia da aids, onde a violência entre parceiros sempre foi uma questão tanto no campo da prevenção como do cuidado, a elaboração e difusão deste referencial teórico ajudou a desenvolver um diálogo produtivo com o plano das práticas, buscando sua “maior sensibilidade às necessidades”, e norteando políticas de saúde “mais democráticas e efetivas para diversos segmentos sociais, especialmente aqueles marginalizados e discriminados socialmente” (58). Nessa abordagem, compreende-se que aqueles que sofrem mais frequentemente violação ou negligência de direitos - porque vivem em contextos de maior vulnerabilidade social, propícios a experiências como a violência - quase sempre terão também menos acesso a serviços de qualidade e, então, maior vulnerabilidade programática a agravos de saúde resultantes dessa violência.

A análise da vulnerabilidade tem como especificidade a compreensão de cada fenômeno através do seu atravessamento por três dimensões inextricavelmente ligadas: a) individual concebida “como intersubjetividade, isto é, como identidade pessoal permanentemente construída nas interações eu-outro”; b) social concebida como “contextos de interação, isto é, como os espaços de experiência concreta da intersubjetividade, atravessados por normatividades e poderes sociais baseados na organização política, estrutura econômica, tradições culturais, crenças religiosas, relações de gênero, relações raciais, relações geracionais, etc;” c) programática concebida “como formas institucionalizadas de interação, isto é, como conjunto de políticas, serviços e ações organizadas e disponibilizadas”. (58)

A preocupação e objeto de interesse neste estudo é a vulnerabilidade das mulheres à violência perpetrada por homens em condição de parceiros íntimos, designada, na continuação, como “violência contra mulheres”, para enfatizar o fato de que essa violência será compreendida como constitutiva da identidade feminina definida no âmbito de relações sociais atravessadas pela desigualdade de gênero. O caráter constitutivo da violência na identidade feminina é analizado por diversas autoras feministas, entre as quais destacamos: Gayle Rubin, que propõe uma leitura feminista da noção psicanalítica de complexo de castração, enquanto violência simbólica fundamental na aquisição da identidade social feminina (59); e Colette Guillaumin, que compreende a identidade feminina como o contrário de um “dado”, ou seja, como um verdadeiro projeto existencial imposto a cada pessoa socialmente identificada com o gênero feminino:

“Mulher somos, isto não é um qualificativo entre outros, é nossa definição social. Loucas quem achamos que é apenas um traço físico, uma ‘diferença’ – e que a partir deste ‘dado’ múltiplas possibilidades nos

seriam abertas. Ora, não é um dado, é um fabricado ao qual nos significam em permanência de nos ater. Não é o início de um processo (um ‘começo’, como acreditamos), é o seu fim, é um encerramento.” (60) Adotamos assim uma compreensão da violência contra mulheres convergente com a definição da violência proposta por M. F. Terra a partir de sua leitura de Chauí – “ação que converte as diferenças em desigualdades e objetifica o sujeito, tornando impossível a comunicação” (61) –, ou ainda, com a definição ampliada da violência de gênero proposta por V. M. Busin:

“(...) a violência de gênero é uma violência simbólica que atinge qualquer pessoa que (...) seja vista como inferior, desigual, desqualificada, excluída, objetificada ou desumanizada por não seguir os scripts culturais de gênero em que foi socializada. Como qualquer violência simbólica, a violência de gênero dá base e legitima outras violências, por isso proponho também que qualquer violência física ou econômica, bem como psicológica ou sexual que se dê por causa das relações desiguais de gênero seja também denominada violência de gênero.” (62)

A mitigação dessa violência contra mulheres determina a primeira condição do sucesso prático da intervenção estudada, sendo o ponto de partida para sua compreensão empírica. Partindo disso, ampliamos a definição, procurando também a possibilidade, para a intervenção estudada, de contemplar os projetos de felicidade dos homens. Adotamos este ponto de partida para o diálogo a fim de evitar a perda de vista dos projetos de felicidade das mulheres, facilitada pela inscrição cultural da desigualdade de gênero. Procurou-se assim ampliar a compreensão do sucesso prático em direção a um diálogo com os homens autores de violência contra mulheres. Compreender essa possibilidade de ampliação se tornou o centro articulador de nossa investigação e interpretação do processo de trabalho do grupo reflexivo para homens autores de violência contra mulheres. Uma estrita realização bem sucedida dos projetos de felicidade das mulheres que denunciaram esses homens, ou pelo menos, dos técnicos que pretendem representar os interesses dessas mulheres, sem prescindir de um diálogo com os homens autores de violência, representaria, por contraste, um êxito técnico desvinculado da busca pelo sucesso prático (51).

Entretanto, o diálogo é problemático. Projetos de felicidade não são produções naturais ou intrasubjetivas, são produções intersubjetivas dos homens, socialmente e culturalmente enraizadas em padrões de masculinidade que sustentam a violência de gênero. Essa compreensão foi inspirada por um segundo conjunto de estudos, na linha dos estudos de Connell (63) que descrevem a difusão internacional de certos padrões de masculinidade que contribuem para a legitimação de relações de poder na globalização do sistema econômico. Procuram compreender as relações de poder que constroem e organizam a pluralidade das identidades masculinas observáveis em cada contexto, tomando inicialmente como contexto de análise o capitalismo transnacional. O conceito de masculinidade hegemônica (8) permite formular uma crítica produtiva ao modo como o trabalho junto a homens autores de violência contra mulheres se insere em um contexto social e programático que negligencia ou aumenta os efeitos da violência contra a mulher. Este conceito nasce de uma aproximação entre a compreensão de Gramsci do papel da cultura na manutenção do poder do Estado e uma compreensão tipicamente feminista das relações de gênero como manutenção do poder dos homens sobre as mulheres.

Usos posteriores do conceito ampliaram a análise do poder que, inicialmente, era estritamente econômica. Schrock e Padavic por exemplo, propõem que “os significados e práticas da masculinidade que são localmente hegemônicos são apresentações de si que provocam consistentemente a deferência dos outros” (35). Assim adaptaram o conceito para compreender a produtividade das interações no âmbito de uma intervenção junto a homens autores de violência contra mulheres. Por sua vez, Cowburn (13) propôs a noção de “discurso hegemônico” para analisar, numa perspectiva foucaultiana, os efeitos de poder e as formas de vida masculinas produzidas pelos discursos sobre os homens autores de violência sexual.

No modelo teórico proposto aqui, o uso do conceito de masculinidade hegemônica foi também influenciado pela minha sensibilização à desigualdade racial e pós-colonial (64). Considerando a importância dessas duas questões para compreender as políticas feministas no contexto brasileiro, usei como ponto de partida a fórmula proposta por Spivak (no contexto da colonização da Índia pelos ingleses) segundo a qual “homens brancos salvam mulheres marrons de homens marrons” (1). Tal compreensão permitiu dar sentido ao modo como as demandas feministas foram parcialmente absorvidas, traduzidas ou traídas, pelo Estado brasileiro no processo histórico que levou à adoção da

lei Maria da Penha e ao estágio atual da sua implementação (27); ilustra o modo como jogos de poder entre homens podem implicar, de modo instrumental, a “proteção” de certas mulheres, segundo modalidades que não contemplam, nem procuram contemplar, a integralidade das necessidades das mulheres tais como levantadas pelos movimentos feministas. Deste modo, o conceito de masculinidade hegemônica ajuda a pensar inclusive a dimensão programática da violência contra mulheres, ou seja, permite compreender as lacunas dos programas que se propõem a atendê-las, tal como o processo de trabalho que é objeto da presente pesquisa.

Em síntese, adotar o conceito de masculinidade hegemônica como conceito central à analise significou perguntar-se como certos ideais de masculinidade contribuem – atuando na vida social e cotidiana das pessoas, na sua trajetória individual e intersubjetiva e nas interações programáticas – para a manutenção de certas relações de poder em um dado contexto. Por isso, qualificarei aqui de masculinidade hegemônica uma configuração particular de relações de poder entre homens e sobre mulheres, que se contrapõe às condições necessárias para o sucesso prático do trabalho estudado e, deste modo, contribui neste contexto para a manutenção da desigualdade de gênero.

Um resultado inesperado desta pesquisa, entretanto, trouxe a necessidade de aprofundar outra questão: a questão da construção social da feminilidade. As queixas dos homens no âmbito do grupo dizem respeito a expectativas culturais da “boa feminilidade”, cujo desrespeito apareceu como legitimador do recurso à violência (39). Deste modo, nossos resultados sugerem que as masculinidades dos participantes se constroem com base em certa compreensão da feminilidade. Mais exatamente, os “projetos de felicidade” que norteiam a vida desses homens, embora diversos entre si, têm em comum sua dependência em relação à “mulher” como ser prototípico, ou ainda, às “mulheres” enquanto categoria supostamente uniforme de seres humanos cuja vocação seria atender e responder às necessidades dos outros, a começar com as necessidades deles. Quando as mulheres reais com quem se relacionam não se conformam aos ideais do cuidado feminino – por diversos motivos incluindo os ganhos de poder conferidos por diversas mudanças sociais, inclusive a Lei Maria da Penha –, os homens se encontram frustrados em seus projetos de felicidade, os quais são em grande parte associados a suas masculinidades: namorar, casar, ser pai, juntar um patrimônio...

O problema, para esses homens, é o fato de que essas representações da feminilidade são preponderantes na cultura. O frequente sucesso da sua violenta imposição às mulheres (59,65) impede os homens de compreender que são representações ideológicas, parciais da realidade. Ser mulher significa ser forçada a cuidar das necessidades dos outros – enquanto parceira sexual mãe, esposa, mas também no mercado do trabalho formal. São as implicações subjetivas deste trabalho de cuidado que não são acessíveis à consciência dos homens, configurando o que Tronto chama de “indiferença dos privilegiados” (66).

“Eufemizada pelo senso comum, pela psicanálise, (...) e até mesmo pela reflexão feminista, o ódio das mulheres àqueles que dependem de seu trabalho está demasiadamente ausente das teorias e dos debates sobre a ética da devoção, enquanto subsiste um déficit de descrição das atividades de cuidado às pessoas” escreve Pascale Molinier (65). Quando os homens são confrontados às manifestações deste ódio e outras resistências ou rupturas em relação às suas expectativas, falam disso como se fosse um surgimento incompreensível de agressividade, “loucura” ou “maldade”, e parecem se recusar a compreender o ponto de vista das mulheres, ou ainda, parecem não conseguir desnaturalizar os cuidados femininos. Se a situação persistir, recorrem a diversas formas de violência. Levar os homens à reflexão crítica a respeito do caráter irrealista das suas expectativas em relação às mulheres aparece como uma necessidade para a intervenção.

Finalmente, como o objeto deste estudo foi um processo de trabalho, mobilizei no modelo uma teoria do trabalho sensível à especificidade das situações que exigem análise de gênero, entre outros marcadores da desigualdade social. Tratava-se, ainda, de “superar um déficit de descrição das atividades de cuidado às pessoas”: inspirado por Pascale Molinier (47,57), utilizei sua perspectiva sobre psicodinâmica do trabalho, que procura compreender os desdobramentos subjetivos do encontro de pessoas individuais, com suas condições subjetivas particulares – como a questão do corpo vivido, “um corpo que é um Eu” – com uma situação de trabalho, que os leva a enfrentar realidades independentes de, e preexistentes à sua própria subjetividade. As expectativas de gênero fazem parte das situações de trabalho que enfrentamos, pois também são determinadas em grande parte anteriormente e independentemente de nós. A psicodinâmica do trabalho permite assim conceber a interação (convergência, interferência?) entre as expectativas de gênero e as exigências do trabalho – no presente caso, refiro-me tanto o trabalho dos facilitadores

como ao trabalho do pesquisador –, e seus desdobramentos no plano da intersubjetividade. Toda situação de trabalho produz efeitos sobre a identidade das pessoas envolvidas, e em particular sobre sua identidade de gênero, consolidando ou contrariando sua resposta às expectativas culturais de feminilidade ou de masculinidade (67). Compreender esses fenômenos é essencial para estudar o sucesso de um trabalho consistindo em interagir com homens autores de violência contra mulheres: precisamos compreender quais identidades de gênero este trabalho produz ou reproduz, e como as pessoas envolvidas – tanto trabalhadores como participantes e, entre eles, o pesquisador enquanto observador-participante – lidam com as eventuais contradições com as normas sociais que este trabalho pode produzir.