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Para além do individual: colocando a masculinidade heterossexual em

Capítulo 2. Três faces da intervenção bem-sucedida

2. O cuidar como redução de danos: uma estratégia para o acolhimento das queixas

3.4. Para além do individual: colocando a masculinidade heterossexual em

Essa aproximação entre as experiências dos participantes, inclusive convidados e observadores que não se consideram como autores de violência, é perturbadora: este é exatamente o marcador da produtividade do grupo. Essas histórias que “se parecem com as nossas” levam muitos homens a questionar com angústia suas próprias experiências de relacionamentos afetivos com mulheres, porque as histórias contadas contradizem as representações sociais da vida conjugal e da feminilidade baseadas no pressuposto da “complementariedade dos sexos”, que orientam os relacionamentos desses homens.

Evocam aspectos sofridos e mal elaborados das suas experiências conjugais, e abrem um caminho para que sejam compartilhadas.

As semelhanças que unem esses relatos conduzem rapidamente os participantes a mudarem o modo como compreendem suas experiências conjugais, em particular aquelas que “não deram certo”. Inicialmente, essas experiências, que não correspondem às expectativas culturais, são compreendidas como anomalias, e explicadas como se fossem a consequência de defeitos e fracassos individuais dos protagonistas. Porém, confrontados a múltiplos casos convergentes, os participantes não podem mais considerar suas experiências pessoais como anomalias, e passam a considerar sua normalidade, no sentido estatístico do termo. Participar do grupo possibilita que esses homens ampliem sua consciência sobre o caráter irrealista das suas expectativas, não apenas em relação a alguma mulher em particular, e sim em relação à “mulher” como ser prototípico, ou ainda, às “mulheres” enquanto categoria supostamente uniforme de seres humanos cuja vocação seria atender e responder às necessidades dos outros, a começar com as necessidades deles. Em outros termos, a participação ao grupo reflexivo confronta os homens (heterossexuais) ao fato, já atestado em suas experiências, de que qualquer projeto de vida que pressuponha a colaboração incondicional de uma mulher é um projeto arriscado, pois as condições sociais atuais dão às mulheres o poder de não colaborar como esperado.

Essa ampliação de consciência proporciona uma reação emocional que um dos facilitadores chama de “crise”: ao desconfiarem do caráter enganoso dos scripts culturais do amor e da compreensão mútua entre homens e mulheres, os homens começam a incentivar-se reciprocamente a “ficar ligeiro”, de modo a reagir rapidamente e “cair fora” em casos de divergências íntimas, ou ainda, “se precaver” inclusive contra as promessas de reconciliação oriundas das mulheres. Observa-se a mesma promoção, pelos pares, do autocuidado ou cuidado mútuo entre homens já descrito em relação à justiça. Sendo assim alertados e apoiados pelos pares, esses homens rompem mais facilmente os ciclos de violência: as repetidas experiências infelizes relatadas por outros participantes em situações semelhantes – cujos conflitos domésticos também se transformaram em processos criminais – os conduzem a apostar menos em reconciliações inesperadas e a ficar mais preocupados pelos conflitos pendentes nos seus próprios relacionamentos.

Vimos que alguns participantes chegam a desistir da própria conjugalidade heterossexual, considerando impossível, no contexto atual de emancipação feminina, que

alguma relação com uma mulher responda às suas expectativas. Alguns participantes chegam a proclamar “Agora, só com garota de programa!” o que significa que só confiam na possibilidade de alguma relação heterossexual corresponder às suas expectativas se for no âmbito de relações tarifadas, sujeitas a um contrato predefinido, e de curto prazo. Reconhecem que não dispõem do poder necessário para impor a conduta desejada às mulheres no âmbito de um relacionamento conjugal. No entanto, os facilitadores costumam retrucar que cedo ou tarde, os homens tentarão novamente relacionar-se com uma mulher – o que se verifica com regularidade. Simplesmente evitar qualquer envolvimento afetivo com mulheres apenas adia o enfrentamento do problema: é uma estratégia parecida com a promoção da abstinência sexual, pouco efetiva para proteger- se do HIV em comparação com a promoção do uso do preservativo; ou ainda, compara- se à promoção da abstinência de álcool ou outras drogas, estratégia que não permite, por si só, compreender e transformar as situações psicossociais que tornam problemático o consumo de certos produtos para certas pessoas.

A segunda implicação das expressões tais como “agora, só com garota de programa!”, se ignorarmos seu caráter pouco realista, é a seguinte: refletem o distanciamento dos locutores em relação à “moral familiar” que lhes serve inicialmente de estratégia defensiva: em outros termos, as críticas da “boa feminilidade” e da “complementariedade dos sexos” acabam desencadeando críticas à moralidade masculina dominante. Essas críticas se encontram também no discurso de Hélder, quando ele afirma que o “bom marido” nada é além de “aquele banana que dá o cartão de crédito pra mulher ilimitado, que serve o café na cama, que não questiona”. Tornar-se mais críticos em relação a este ideal da masculinidade heterossexual – reconhecendo que não garante a felicidade conjugal que promete – permite que os participantes rompam mais facilmente os relacionamentos que não os satisfazem, em vez de “engolir sapos” até não aguentar e recorrer à violência.

Essa crítica à “moral familiar”, que representa a masculinidade dominante no contexto da intervenção, também contém uma possibilidade de crítica da desigualdade de gênero: impede que uma ideologia do “respeito” entre homens e mulheres seja aceita como “solução” para a violência. De acordo com Mário,

É que tem uma idealização do que é ser homem. É como se houvesse um projeto ideal de homem na sociedade. Assim como existe um projeto de

ideal de mulher. Então, quando fala que este homem que passou por aqui, ele foi trabalhado, discutido, não é que ele vai sair daqui mais educado, mais agradável. Não. Ele vai sair com questões mais ácidas, mais conflitantes do que ele veio, para ele perceber o que é ser homem nessa sociedade. Será que ser homem é aquela pessoa que respeita? O que é esse respeito? Quem dá o limite desse respeito? Se nós estamos numa sociedade patriarcal, então esse respeito já está balizado pela sociedade patriarcal. Eu vou melhorar, vou dar a maquiagem? Quando a gente conduz um grupo de homens, é para que haja uma crítica deste modelo de ser homem.

Em outros termos, o grupo procura facilitar uma des-idealização das relações de gênero, a começar com as expectativas dos homens em relação às mulheres. As conversas no grupo partem das experiências não conformes ao ideal que cada participante carrega consigo, providenciando o espaço, o diálogo e os recursos teóricos necessários para refletir sobre suas múltiplas implicações.

A partir dessa compreensão ampliada do contexto no qual são envolvidos, os homens conseguem refletir diferentemente a respeito das suas necessidades pessoais. Em particular, os homens se afastam da ideia segundo a qual as mulheres são inofensivas e passam a reconhecer que são capazes de causar danos em suas vidas, usando a Lei a seu favor e contra eles: por isso, é preciso preocupar-se a respeito delas quando se mostram descontentes com o relacionamento. Reconhecendo essa necessidade, os homens começam a incentivar-se a evitar ou romper relacionamentos susceptíveis de levá-los a cometer (novamente) violência contra mulheres, ou ainda, a “se dar mal” mesmo que seja injusto na sua própria compreensão.

Como consequência das conversas no grupo, embora os participantes ainda atribuam às suas (ex) parceiras a responsabilidade moral pelos conflitos e suas consequências, eles começam a atribuir-se a responsabilidade prática de não permanecerem em situações onde, cedo ou tarde, poderiam ser tentados de recorrer à violência, o que os levaria à prisão, ou ser prejudicados de outras maneiras. Essa atitude cautelosa adquirida em relação às mulheres se distingue da promoção do autocontrole emocional promovido por diversas intervenções descritas na literatura. Em vez de ensinar os homens as competências necessárias para que ignorem as “provocações” das mulheres – com a finalidade de preservar os relacionamentos apesar do descontentamento mútuo

–, essa intervenção permite que os homens parem de ignorar o ocorrido e reflitam a respeito, o que pode significar, inclusive, terminar qualquer relacionamento se perceberem que caminha rumo à violência, sinônima de Lei Maria da Penha e outros possíveis fins indesejados. De acordo com Vicente, seu objetivo é lutar contra a tendência dos homens em se tornar “panelas de pressão” que acumulam as frustrações sem reagir até “explodir”. Vicente considera preferível que os homens reajam cedo aos conflitos, de modo a não “acumular pressão”. Entretanto, isso exige adquirir um conhecimento ampliado das situações que levam à violência masculina, a fim de identificá-las mais rapidamente: é este conhecimento que o grupo traz.

Deste modo, inverte-se o sentido da aprendizagem: em vez de serem os homens supostamente “não violentos” os que ensinam, e os “violentos” os que aprendem, são os relatos dos homens “violentos” que servem de base para aprendizagens que interessam até homens que se consideram “não violentos”. Em efeito, ao ouvirem relatos de conflitos particularmente agravados e violentos, homens com experiências menos violentas também passam a se questionar sobre sua possível violência: alguns podem perceber que são insuficientemente precavidos contra a possibilidade de envolver-se, no futuro, em situações comparáveis àquelas relatadas pelos homens identificados como autores de violência.

Assim as conversas no grupo permitem compreender a questão da violência masculina para além do plano meramente individual (certos homens “seriam” violentos e outros não?) para recolocá-la em um plano interpessoal e atravessado pelo contexto social; as conversas entre homens os levam a compreender que existem situações psicossociais nas quais “qualquer homem” poderia tornar-se violento: por isso elas devem ser narradas, compartilhadas entre homens, para poderem ser compreendidas, antecipadas e evitadas pelos próprios homens, através de intervenções programáticas específicas tais como essa. Essa constatação é a base do sentimento de gratidão que caracteriza as conversas produtivas dentro do grupo: até homens que, como o pesquisador, não se consideram capazes de violência, acabam reconhecendo a pertinência das aprendizagens realizadas para a conduta de suas próprias vidas; ou seja, essas aprendizagens podem lhes “economizar” a reprodução dos “erros” dos outros homens, além de ajudá-los a compreender e evitar os seus próprios “erros”.

Na medida em que a compreensão da violência masculina se desloca, saindo de um âmbito estritamente individual rumo a uma percepção mais complexa baseada em situações psicossociais, (situações que poderiam afetar a “qualquer homem”), os participantes do grupo começam, então, a perceber que são intimamente afetados pelo contexto ampliado das relações sociais de gênero: manifestam sua curiosidade quando os facilitadores propõem análises sociais e históricas dessas relações. Por exemplo, Vicente utiliza a própria diversidade dos participantes como argumento que lhe permite observar: “Está vendo? Todos vocês são muito diferentes, mas todos vocês vieram da mesma formação, tiveram a mesma formação de gênero”.

Análises sociais e históricas ajudam os homens a compreender os ganhos de poder das mulheres na sociedade, que eles já consideram como sendo a causa comum por trás das suas desventuras individuais. A Lei Maria da Penha, ao facilitar o acesso das mulheres à justiça, representa apenas o aspecto mais saliente desses ganhos de poder das mulheres. Outros aspectos abundantemente discutidos no grupo dizem respeito aos direitos outorgados às mulheres em caso de separação ou divórcio, tal como a divisão igualitária dos bens adquiridos durante o relacionamento, ou ainda, a suposta preferência dos juízes pelas mulheres na atribuição da guarda das crianças. Também é discutida a “promiscuidade” que é o modo como muitos homens compreendem as recentes mudanças sociais que afetam a sexualidade feminina, representando uma ameaça do ponto de vista dos homens que valorizam relações conjugais e familiares baseadas na “fidelidade”.

Enfim, os facilitadores costumam trazer à tona o assunto do trabalho. Explicam que as expectativas da sociedade em relação à identidade feminina mudaram recentemente: antigamente esperava-se da mulher “ideal” uma realização de si no âmbito doméstico e familiar, através do casamento e da maternidade; mas desde algumas décadas, sobretudo no contexto urbano, espera-se também dessas mulheres que se realizem através de uma carreira profissional, ou pelo menos que contribuam financeiramente para o sustento da família em vez de delegar integralmente essa responsabilidade aos homens. Essa dupla exigência tem algo contraditório, porém a contradição é impensada, o que coloca as mulheres em situações impossíveis e explica, de acordo com Vicente, as cobranças insolúveis que podem fazer aos homens, exigindo por um lado mais proteção, e por outro lado, mais independência.

Deste modo, desenha-se nas conversas do grupo a compreensão de uma mudança social geral, indo muito além dos problemas colocados pela Lei Maria da Penha, e questionando diretamente as definições essencialistas da feminilidade, e indiretamente, o “papel do homem”: confrontados à mudança que afeta as mulheres, os homens reconhecem seu despreparo emocional, jurídico, prático, e podem medir a necessidade de adaptar suas representações e condutas para não serem mais “vítimas” dessa mudança. Percebemos que o discurso segundo o qual os homens autores de violência seriam “vítimas” das mulheres, em vez de ser confrontado como se fosse absurdo, adquire um sentido ampliado (entretanto, percebemos também que não há, no contexto do grupo, superação do antagonismo entre homens e mulheres: discutiremos este ponto na continuação). No entanto, essas análises sociais e históricas não são incorporadas e sim co-construídas pelo grupo, na medida em que os saberes acadêmicos trazidos pelos facilitadores dialogam com os saberes práticos trazidos pelos participantes: para haver este diálogo, os saberes teóricos e acadêmicos devem complementar e consolidar os saberes práticos, sem desqualificar ou substituí-los.

4. E a empatia com as mulheres? Compreendendo o principal limite da