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Capítulo 2. Três faces da intervenção bem-sucedida

2. O cuidar como redução de danos: uma estratégia para o acolhimento das queixas

2.2. A politização das queixas

Além disso, os facilitadores ajudam os participantes a pensar nas implicações da sua experiência com a polícia e a justiça em termos de relações de gênero. Por exemplo, mostram para eles que o modo como suas queixas contra as mulheres são menosprezadas pela polícia diz algo sobre a representação social da masculinidade: um homem que seria “vítima” de uma mulher, não sendo capaz de lhe impor o devido “respeito” ou de “resolver” a questão no âmbito privado, ainda seria um homem? Ainda mereceria respeito e apoio dos poderes públicos? O desprezo dos policiais, quando se recusam a registrar a queixa de um homem contra sua companheira, reflete a inconformidade dessas queixas com os padrões da masculinidade hegemônica. Os portadores dessas queixas se sentem isolados e rejeitados, o que, de acordo com os facilitadores, favorece sua opção pela violência interpessoal.

Deste modo, os facilitadores mostram para os participantes que existe, no modo como a Lei Maria da Penha está sendo aplicada, certo viés de gênero que consiste em reproduzir o estereótipo segundo o qual um “homem de verdade” não se queixa de mulheres, e a violência exercida por uma mulher contra um homem não pode ser compreendida como tal. Em outras palavras, parece haver uma crença segundo a qual “acreditar” na desigualdade de gênero implicaria “desacreditar” na capacidade de uma mulher recorrer à violência contra um homem, o que acaba promovendo representações enviesadas das relações de gênero (falaremos mais disso na secção a seguir).

Sendo professor universitário, Vicente até chegou a orientar pesquisas sobre este assunto e, em particular, do modo como ele é tratado pela imprensa: observou que os artigos que tratam do assassinato de um homem por uma mulher tendem a ser publicados em jornais locais, de difusão mais restrita do que os artigos que tratam de assassinatos de

mulheres por homens. A consequência deste viés de gênero seria encorajar os homens, cujas queixas não são atendidas pelas instituições, a “se fazer justiça” sozinhos – ou seja, a recorrer à violência interpessoal. Ao politizar o problema do não-atendimento das demandas dos homens, os facilitadores ainda participam do mesmo esforço de redução de danos: um conflito politizado é preferível a uma violência direta contra as mulheres.

Entretanto, é difícil imaginar que as delegacias da mulher passem a registrar também queixas de homens contra mulheres, ou que sejam criadas “delegacias do homem”, como sugerem alguns participantes, ou ainda, como falou um dia um participante do grupo: uma “Lei João da Lapa” simétrica à Lei Maria da Penha. O princípio da Lei Maria da Penha enquanto ação afirmativa é justamente romper com uma situação de falsa isonomia – na qual, teoricamente, tanto os homens quanto as mulheres teriam acesso à justiça –, e dar preferência às queixas das mulheres, compensando assim a desigualdade de fato. Isso também é discutido pelos facilitadores dentro do grupo. Vicente por exemplo propôs, para descrever a aparente “injustiça da justiça”, a imagem de uma vara torta, que precisa ser torcida no sentido oposto para ser, afinal, endireitada. Assim, os facilitadores aceitam a ideia que a Lei Maria da Penha precisaria ser melhorada para atender “também” as queixas dos homens contra as mulheres, embora não se engajem publicamente para defender este projeto. Deixam aos principais interessados – os participantes mais reivindicativos – a responsabilidade de sustentar politicamente suas reivindicações, assumindo por sua parte uma postura mais neutra, a postura de meros “facilitadores” do processo de politização das queixas.

Essa politização não poderia ser considerada perigosa do ponto de vista da equidade de gênero? Para avaliar este risco, convém mencionar que os homens que manifestam seu desejo de engajar-se numa reação política contra a Lei Maria da Penha, ou pela sua reforma, são poucos e são tratados como minoritários por seus pares no âmbito do grupo. Durante a minha presença no grupo, encontrei no total aproximadamente cinquenta homens, e apenas um deles agiu de acordo com suas intenções declaradas, e começou a escrever uma futura carta aberta ou abaixo-assinado. Porém, seu projeto acabou não se concretizando, por falta de apoio dos seus pares. Vicente, que estava presente no grupo como facilitador naquele momento, acolheu favoravelmente a ideia, porém, quando foi solicitado para ajudar, respondeu para o autor da iniciativa que, na sua opinião, os outros membros do grupo não eram tão interessados quanto ele naquele

projeto, e de fato, o resto do grupo se absteve de responder. Assim, parece que a ideia de politizar as reivindicações dos homens emerge regularmente no grupo, e encontra certo apoio, mas não vai adiante. Como compreendê-lo?

Podemos compreender este fenômeno de politização abortada como um possível efeito positivo do grupo. Muitos homens recorrem ao discurso da “vitimização” com o intuito de utilizar e subverter o próprio discurso da instituição judiciária. No entanto, suponho que muitos desses homens não teriam em mãos os elementos de prova necessários para sustentar seu discurso na prática, abrindo uma denúncia contra as mulheres, ou ainda, iniciando um protesto político caso sua denúncia for rejeitada sem motivo válido. Mesmo entre os homens que disporiam das provas necessárias para agir em justiça contra as mulheres ou para denunciar a assimetria da atuação da polícia e da justiça, poucos aceitariam se expor pessoalmente, posicionando-se publicamente em ruptura com a masculinidade hegemônica: prefeririam ser condenados “injustamente” do que correr o risco de ser identificados como “homens que apanham de suas mulheres” ou ainda como “chorões” que se queixam do modo como a polícia e a justiça os trataram, em vez de “assumir suas responsabilidades”. Sustentar publicamente essas críticas exige que renunciem à identificação a certos padrões de masculinidade. Por contraste, os homens, no âmbito do grupo, se encontram envolvidos num movimento contrário consistindo a reivindicar seu pertencimento à normalidade e moralidade masculina: homem não se queixa, mesmo injustiçado. Por isso, quando o grupo, com apoio dos facilitadores, leva a sério o discurso da vitimização masculina, e encoraja os homens a judicializar e politizar suas queixas, o que ocorre provavelmente em muitos casos é que os participantes desistem de suas queixas, na medida em que são confrontados aos possíveis custos dessas estratégias.

Em síntese, e paradoxalmente, para reduzir a dominância do discurso da queixa no âmbito do grupo, parece mais produtivo levá-lo a sério do que confrontá-lo (a mesma interpretação se repetirá na secção a seguir). Diferentemente de muitas intervenções documentadas na literatura, na intervenção aqui estudada os facilitadores encorajam os participantes a expressar suas insatisfações e críticas em relação à Lei, e os ajudam a ir atrás do reconhecimento dos seus direitos quando afirmam que foram de algum modo injustiçados. Um primeiro efeito dessas conversas pode ser compreendido em termos de redução de danos: enquanto os participantes vislumbram uma possibilidade de serem

entendidos pelas vias da legalidade, ou se isso não for possível, pelas vias da reivindicação política, eles são menos tentados de recorrer à violência interpessoal. Um segundo efeito é a renúncia às queixas, na medida em que os homens compreendem as implicações de uma ação institucional ou política, e em particular, porque não assumem as possíveis repercussões de tal postura (afirmar ser vítima de uma mulher) sobre sua identidade masculina.

Isso pode ser considerado como um efeito positivo para a intervenção, na medida em que permite evitar que as discussões relativas à justiça se mantenham como único tópico nas conversas: inicialmente, os homens podem considerar que seu único problema diz respeito à atuação da justiça; queixam-se de que “ninguém quer ouvi-los”, ou ainda, que se a justiça não se metesse em sua vida privada, não haveria problema nenhum; porém, o grupo leva a maioria dos participantes a perceber que essa posição de vítima institucional envolve custos, inclusive em termos de masculinidade, que muitos deles não desejam assumir. Isso leva esses participantes a mudar de assunto e a abordar mais facilmente os problemas inerentes à sua vida conjugal e familiar, e não apenas à sua situação jurídica.

3. “Falar mal das mulheres” pode ser produtivo?

O terceiro efeito do processo de trabalho do grupo que consideramos como um sucesso prático consiste em uma reflexão coletiva a respeito das queixas que os participantes expressam espontaneamente em relação às mulheres que os denunciaram – aquilo que Hélder chamou a sua tendência em “falar mal das mulheres”.

Quando os participantes ouvem os relatos dos seus pares, constata-se que a eventual violência cometida pelo locutor não é a questão que mobiliza sua atenção. De novo, poderíamos interpretar isso como um desvio do assunto. Um exemplo é a seguinte declaração de um participante: “Eu sei que perdi o controle, sei que fiz uma coisa errada. Mas é preciso saber também o que ela fez. Não venham me dizer que ela é uma coitadinha”. Nessa frase, a segunda parte é a que recebe a ênfase. Para o locutor como para seus interlocutores no grupo, o mais interessante é a constatação de que houve, por

parte de quase todas as mulheres, uma conduta reprovável ou inadmissível: por isso, o uso de violência se torna compreensível ou até aceitável dentro da moral vigente, independentemente de ser assumido ou negado pelo narrador. Não recorrer à violência, no entanto, aumenta o mérito do homem, porém recorrer à violência não o desqualifica moralmente, porque pode-se invocar um contexto considerado excepcional. Nesta secção, mostraremos que tudo acontece como se a regra “homem de verdade não bate em mulher” só valesse para mulheres que se comportariam de acordo com as expectativas dos homens. Essa aceitação da violência pelo grupo poderia ser confrontada diretamente pelos facilitadores. Entretanto, geralmente ela é implícita e acompanhada de uma rejeição explícita da violência pelos participantes. Os facilitadores não precisam, portanto, afirmar que a violência estaria “errada”: os participantes já reproduzem essas fórmulas sem muita consequência prática. Os facilitadores recorrem então à mesma estratégia de facilitação baseada na politização das queixas já evocada na secção precedente. A seguir, descreverei o processo e a produtividade dessa estratégia.