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O ENTRE-LUGAR – A LÍNGUA/OS SINAIS

No documento Cultura surda e educação escolar kaingang (páginas 42-46)

3 IDENTIDADE CULTURAL E LINGUAGEM

3.3 O ENTRE-LUGAR – A LÍNGUA/OS SINAIS

[...] que é o “inter” – fio cortante da tradução e da negociação, o “entre- lugar” – que carrega o fardo do significado da cultura. Ele permite que se comece a vislumbrar as histórias nacionais, antinacionalistas, do “povo”. E, ao explorar esse Terceiro Espaço, temos a possibilidade de evitar a política da polaridade e emergir como os outros de nós mesmos (BHABHA, 2005, p.69).

Este perceber e esta apresentação para o pesquisador muitas vezes não ficam claros. Havia alguns pontos relevantes, nos quais estava toda a desenvoltura e a legitimidade dos dados. Primeiro – entender a cultura e se os sinais nasciam “a partir de”. Focar o olhar nos

surdos, na comunicação e nessa trama que os identificava e constituía ao mesmo tempo os sinais/a LSB e o ser surdo. O entre-lugar será discutido com base nos escritos de Bhabha e com a ajuda de outros pesquisadores para a compreensão, como Souza (2004).

A questão teórica desafia a pessoa do pesquisador o tempo todo: constar na escrita e constatar nos fatos, numa chamada para a compreensão que não é meramente intelectual. É uma vida, um processo dinâmico de muitas vidas, de muitos espaços e lugares que ao mesmo tempo estão se contemplando e se constituindo.

Segundo Souza (2004), Bhabha chama teoricamente para a compreensão de um terceiro espaço, que está no que muitos talvez chamem de diferenças:

Bhabha atenta para o espaço entre o ver e o interpretar, chamando-o terceiro espaço - o interstício entre significante e significado do qual, considerando o contexto sócio histórico e ideológico do usuário da linguagem (o lócus da enunciação), se pode ter visibilidade do hibridismo (SOUZA, 2004, p. 118). Este processo não é individual – nem que isto fosse possível –, mas é o ser eu sem deixar de ter um pouco de você. O que me constitui e me inscreve na história étnico-racial, são estas ambivalências, sob a lógica que existo.

O terceiro espaço envolve diferentes dimensões e diferentes contradições; isto pode se dar através das Línguas, onde existe uma lógica que as liga, ao mesmo tempo em que as diferencia, funde e entrelaça. Aparece neste contexto uma nova articulação destas nos sujeitos que a interpelam: um espaço no qual é permitido negociar e criar.

Neste espaço estão presentes as relações ambivalentes, como ser Índio Kaingang e ser Surdo. Há muitas referências culturais e nestas, deve-se lidar com todas as vantagens, desvantagens, preconceitos e conceitos estabelecidos.

Neste Entre-Lugar está a possibilidade de re-estabelecer, re-definir o que ora talvez estivesse estabelecido. No processo investigativo da pesquisa, pode-se dizer que os sujeitos encontravam-se inconscientes de sua condição de ser - ser Índio, ser Surdo. O ser Índio em muitos momentos aparece de forma mais convincente; o ser Surdo na cultura indígena requer em primeiro plano pensar nas Línguas, nas linguagens.

Este pensamento não passa despercebido, esta identificação é relevante. O “Entre” é visto, aqui, por um procedimento que deriva da seguinte lógica defendida por Rajagopalan (2002): “[...] a prática lingüística se distingue pelos tropeços, acasos, imprevisibilidades e singularidades – atributos que desafiam o próprio desejo de domar, de enfim, teorizar o objeto de estudo, no caso, a práxis” (p. 24).

Nesta prática encontra-se a dimensão de uma nova construção. Não são os surdos adultos, marginalizados e ignorados, como muitos que ainda resistem vivos, no sentido de sobreviverem na aldeia. O conceito presente destes é fortemente impregnado nas famílias. Há, contudo, um novo conceito se estabelecendo na escola, instituição que nos tempos atuais é referência para remodelar estes conceitos e reinventar o jeito destas práticas.

Rajagopalan (2002) faz um comentário pertinente em relação a essas práticas que se dão pela língua, na língua, com a língua:

[...] A facilidade com que costumamos falar de Línguas tende a ofuscar o fato elementar de que tais entes inexistem no mundo real, mas são verdadeiros constructos criados em resposta a certas demandas históricas. Os enunciados concretos dos demais atores; eventos que não podem ser negligenciadas pela organização em qualquer ação (p. 28).

A prática que se refere a um “Entre” aparece com muita força e significado na Língua de Sinais – LSB – e nos Sinais Kaingang - SKA. São os sinais que os surdos Kaingang conseguem deslanchar, criar e fazer desta sua própria Língua. Embora ainda não estudada linguisticamente, os surdos fazem dela sua comunicação e, sendo assim, sua diferenciação enquanto cultura. Bhabha (2005) aponta que “[...] temos a possibilidade de evitar a política da polaridade e emergir como os outros de nós mesmos” (p. 69).

O emergir de ser este outro, ou esta outra Língua/Sinais, gera apropriação cuja construção Bhabha procura enfatizar: a construção do significado pela interpretação (ou ressignificação, conseqüente da subjetividade atribuída à existência de espaços intersticiais), negando a falsa idéia de transparência, homogeneidade e considerando a necessidade de historicizar e contextualizar o momento da enunciação (BHABHA, 2005).

O surdo Kaingang pesquisado nos apresentou os Sinais, mostrou parte do processo de construção de sua Identidade, possibilitou encontrar este “ENTRE” que Bhabha aponta como o terceiro espaço. Neste contexto, os surdos não ficaram somente com a LSB como uma Língua única e verdadeira, mas, com base nela, eles conseguiram fazer o entrelaçamento e surgir um novo jeito de sinalizar. Isto será mostrado no decorrer dos registros.

Os registros apresentados foram narrados de forma explicativa no momento de criação - fusão/entrelaçamento com a LSB. O exemplo disso são os sinais de mãe, pai, avó, avô, filho, filha, morte, sentar, família entre outros. O mais importante é que o indivíduo, ao refletir em/na linguagem, seja capaz de reconhecer a sua própria historicidade e re-conhecer os seus próprios desvios (OLIVEIRA, 2007).

Se a princípio não havia uma “visível” comunicação, aos poucos foram sendo apresentadas, mostradas com fervor, como a dizer “Estamos aqui!”. Os sinais que até então eram representados diferentemente da LSB, agora apareciam entrelaçados a esta Língua que também se tornou tão significativa no processo de identificação escolar.

Os Sinais e a LSB, entrelaçados, explicitam que de fato o hibridar-se ocorreu, não somente através da comunicação, mas nesta relação de identificação cultural. O Surdo–Índio, que até então não sabia a LSB, quando do contato, da aquisição e assimilação, passou a ressignificar este jeito de se comunicar, passando-o a sua própria linguagem.

O Entre–Lugar, olhado a partir da LSB e dos Sinais na aldeia, possibilitou uma nova dimensão dos sinais na comunicação. Sendo assim, para sinalizar mulher/homem (gênero), é feito o empréstimo na LSB para definir o gênero, se este for a avó ou o avô, mais o sinal de avós relevante para eles na aldeia. O mesmo acontece com os sinais mãe e pai e outros.

A pesquisa buscou olhar estes sinais entendendo o que estava entre a LSB e os Sinais, isto é, o Terceiro Espaço enfocado por Bhabha: o sinal, a LSB e o porquê destes sinais junto aos dois. Um novo nascia, e poder-se-ia dizer que era um terceiro, não na ordem numérica e de valor, mas como um novo, que se tornava “Entre”.

No documento Cultura surda e educação escolar kaingang (páginas 42-46)