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Pelos próprios surdos Kaingang

No documento Cultura surda e educação escolar kaingang (páginas 132-134)

6 ENUNCIAÇÃO DA DIFERENÇA OU O “OLHAR” NA CULTURA

6.2 A REPRESENTAÇÃO DOS SURDOS NOS DIFERENTES AGENTES DA ESCOLA

6.2.5 Pelos próprios surdos Kaingang

São oito, os estudantes surdos na escola. Na aldeia e fora da escola há mais uns quatro adultos identificados como surdos. Durante a aplicação do Projeto de docência “Minha Identidade”, a intenção era, como diz Bhabha (2005), fazer a “reinscrição” deles como sujeitos “surdos-índios”. Por isso, muitas vezes, havia avanços e recuos nos conteúdos, de forma que os conceitos realmente fossem assimilados na vida deles, não somente nos cadernos. Há a fala de um menino que entrou este ano para a turma e se identifica como surdo, apesar de apresentar uma surdez leve ou moderada. Consegue oralizar e aceita a sua realidade, é muito tranqüilo em relação ao fato de ser surdo. Este menino lê e escreve pequenos textos.

Souu Kaue Ronaldo, gosudo gosto. Gostodmora na aldeia. Qeuro cer polislcia reporper. O texto dele: Sou Kaue Ronaldo, gosto de ser surdo. Gosto (ser índio) Gosto de morar na aldeia. Quero ser Policial repórter (KAUE, 2007).

Esse estudante é chamado de repórter, pelas professoras, porque ele é muito atento ao que acontece na aldeia. Sabe de tudo, quer saber o que ainda não sabe, pergunta muito e tem o olhar muito vivo, curioso e atento.

A outra estudante é Tainara, que diz:

Gosto de ser surda. Sou também Índia. Moro num lugar que tem pessoas índios morando. Queria também ser ouvinte, falar. Mas sei LSB, sei os Sinais Kaingang na aldeia-SKA. Tá bom. Gosto. Sou menina. Idade 11 anos. Gosto estudar. Ano que vem 5ª série, junto muito estudantes. Tá bom. Só! (TAINARA, 2007).

Essa estudante apresenta bom entendimento na LSB, assim como nos sinais feitos na aldeia. É simpática, alegre, gosta de combinar roupas, calçados e bolsas. Estuda com prazer, tem amigos na escola e está sempre atenta nos acontecimentos. Identifica-se como

surda e como Índia. Já foi em Fonoaudióloga, tentou falar e quis ser ouvinte, mas ficou revoltada por não ouvir e não falar. Agora aceita ser surda e é partícipe com suas opiniões e comentários nas aulas e na escola.

O estudante Maicon não quis tentar escrever. Oralmente, suas respostas foram: Sou Maicon, moro na aldeia, moro com a família, eu sou Índio, sou surdo. 11 anos. Menino. Quando as perguntas foram para a colega, Tainara, Maicon ficou olhando e praticamente repetiu o que ela dizia, mas, para confirmar se ele tinha entendido, fiz para ele, em sinais, “Sou menina, tenho 11 anos” Maicon riu dizendo “Não, sou menino e igual Tainara 11 anos.” Estas são algumas situações de sala de aula, que fazem acreditar na escola, na LSB e na própria razão de viver.

Maicon é menino de poucas palavras. Às vezes se isola, é arredio com os acontecimentos, finge em sala de aula não estar interessado nas explicações, porém percebe-se que ele está atento e não demonstra. Na triagem inicial, em 2003, apresentava diagnóstico de deficiência mental. Era incomunicável com os estranhos. Escondia-se embaixo das camas, no mato, atrás da mãe. Começou a vir à aula com muita resistência e era difícil ele permanecer na sala. Atualmente, o estudante já está melhor, mas ainda falta ele se expor mais, participar, querer aprender e acreditar em si mesmo para escrever, ler, fazer as atividades propostas. É um estudante que faz pensar e rever estratégias visando a obter seu maior envolvimento.

Depois foi a vez do estudante Juscelei, que tem apresentado muitos problemas na escola e na aldeia. Quando perguntado sobre ele ser surdo, desconversou, gesticulou com a mão sinalizando não, rindo e virando de costas para mim. Tentou-se estabelecer uma conversa com ele, revisando o nome, o sinal, onde mora, quem mora na casa dele, a escola, a professora Sonimara e esta pesquisadora como professora deles. Repetindo-se as perguntas: “Você é surdo?” Ele respondeu que sim. “Você é Índio Kaingang?” Ele respondeu que sim. Quando perguntado se ele era índio e surdo, Juscelei maravilhosamente nos surpreendeu: sinalizou surdo com os dedos indicador e o médio em cima da orelha e em seguida os mesmos dedos tremulando em frente à boca, significando Kaingang. Esse momento foi, de fato, mágico! Nascia assim o sinal de Surdo Kaingang.

Já disseram que aquele estudante difícil, aquele estudante que às vezes não dá a resposta que queremos, pode ser o estudante que mais nos surpreenderá e que fará com que continuemos a nos dedicar a nossa profissão - ser professora.

Os estudantes Silvana e Amarildo, cujos depoimentos estão citados na representação na turma de 6ª série, assumem-se como surdos e demonstram satisfação por usar a LSB e os SKA em sala de aula.

A Estudante Marcione está afastada da turma desde junho de 2007, pois a família mudou de residência e comunidade. A menina estuda em outra escola indígena, junto com os ouvintes, pois nessa escola não há o número de estudantes surdos (04) exigidos, segundo a proposta do Estado de SC, para abrir a turma.

Na aldeia há alguns surdos adultos, com os quais conversamos, para saber como se sentem sendo surdos. Nos relatos, um senhor disse que gosta muito de morar lá na aldeia, reconhece que é Índio e Surdo, mas que não quer estudar e aprender LSB.

Outra surda adulta foi a senhora já citada anteriormente, cuja entrevista foi feita com a cunhada. Ela não demonstra ter noção de tempo e lugar. Sinaliza que anda, anda, vai. Mostra o mato, as casas. Enfim, não sabe. Percebe-se tristeza no olhar e no seu jeito de ser. Mesmo sorrindo ela aparenta ser infeliz, abandonada.

Refletindo sobre o que vimos, ouvimos e acompanhamos no processo de escolarização de estudantes e não-estudantes, mas surdos e índios, a análise confirma que sem a LSB na vida deles, não seria possível esse olhar dos ouvintes. O olhar que olha e vê. Vê o surdo Kaingang, a Língua de sinais como sendo uma forma de comunicar e aprender com as mãos. Respeita o surdo porque ele vai à aula, aprende, é inteligente. Não o vê como “Mudo”, ou o deficiente mental e também aquele que não consegue “se virar sozinho” na vida. Os surdos ainda são vistos como pessoas especiais, mas não na conotação de deficiente; parece ser num gesto carinhoso e de diferenciação sim, mas o diferente devido à LSB, assim como se refere ao “especial” pela Língua.

No documento Cultura surda e educação escolar kaingang (páginas 132-134)