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Entre os Afectos e a Cientificidade: uma Luta Permanente

Do Idealizado à Realidade: Construção e Reconstrução da Identidade Profissional

1. Dimensões Pessoais e Sociais em Interacção com as Identidades Profissionais das Educadoras de Infância

1.1. Entre os Afectos e a Cientificidade: uma Luta Permanente

As categorias que as entrevistadas utilizam para descrever as situações vividas aparecem normalmente expressas sob a forma de sentimentos e emoções. Nestas formas de expressão, os afectos surgem como uma das características fundamentais das suas vivências profissionais. Desde a opção pelo curso, à frequência da escola de formação, às suas experiências de trabalho, os afectos são uma constante nos seus discursos. Como dizia uma das entrevistadas, esta é, aliás, uma

E D U C A D O R A S D E I N F Â N C I A : Identidades Profissionais e m R e / c o n s t r u ç ã o

(...) dimensão muito presente na educação de infância, porque nós tratamos bem aqueks de quem gostamos.... (Luísa, Anexo II).

Conforme analisámos, os afectos pelas crianças (cf. cap. Ill), constituíram em todos os casos argumentos de luta nos seus locais de trabalho, ou seja, o bem-estar das crianças, a educação de qualidade, as relações interpessoais equilibradas eram formas de reflexo desses mesmos afectos. Além disso, os afectos medeiam ainda toda a relação de qualidade, aspecto sempre muito valorizado pelos próprios pais das crianças, como refere a entrevistada Luísa:

(...) esta forma de tratar os filhos, ou seja, o objecto da vida de alguém serem os filhos deles... é coisa muito importante... eram queridos, eram valorizados e portanto sentiam-nos aliadas deles... (Luísa,

Anexo II).

A mesma educadora concretiza esta posição, dando-nos conta de situações vivificadas:

(...) havia uma senhora que tinha dois filhos mongolóides... e uma das coisas que ela nos disse é que nunca ninguém tinha beijado as crianças, excepto os familiares... e nós não falíamos nada forçado neste sentido... (Luísa, Anexo II).

Efectivamente, pudemos verificar que os afectos não só caracterizam esta profissão, como a têm norteado ao longo de todos os seus anos de existência (cf. cap.I), embora, actualmente, a forma como se enfatizam, ao nível do discurso, não tenha o mesmo sentido de outrora. Aparecem frequentemente como forma de oposição ou complementaridade ao discurso da cientificidade.

Neste sentido, Vilhena (1993) diz-nos que, se durante muito tempo as educadoras teceram um património de afectos e intuições precisas, também foram percebendo que só amor não basta e que necessitariam de meios instrumentais e conceptuais que regulassem a sua intervenção. A julgar pelas nossas entrevistas, talvez por este facto se assista, hoje, a discursos em que as categorias utilizadas para descrever uma situação vivida se manifestem na dicotomia dos afectos e da cientificidade:

(...) se me virem só como uma profissional que toma conta, estou mal... O educador que é visto como valori^ador do currículo... ê mal visto...; o educador que é apenas visto como gestor de afectos é mal visto... A gestão dos afectos está ao mesmo nível da valorização do currículo formal (Luísa, Anexo

EDUCADORAS DE INFÂNCIA: Identidades Profissionais em Re/construção

Neste discurso estão presentes todas os sentidos atribuídos à profissão e com os quais as nossas entrevistadas não estão de acordo; pelo contrário, defendem uma fusão das designações propostas. Dizem ainda necessitar de meios instrumentais e conceptuais que regulem a intervenção e não podem, como afirmam, estar sujeitas à intuição e à espontaneidade dos afectos:

(...) nós não podemos improvisar um programa de trabalho, um plano... Isso obriga a que haja estudo, que haja reflexão... Eu tenho que escrever para uma simples sessão de expressão plástica..., tenho que perceber que cores é que os meninos já sabem, que pincéis vou usar..., tenho que fa^er propostas às

crianças..., tenho que provocar as crianças..., tenho que lhesfa^er propostas que as façam avançar, que as façam evoluir... (Luísa, Anexo II).

As educadoras têm consciência do valor do seu trabalho, no entanto fazem questão de apelar à cientificidade como via de um melhor reconhecimento, isto é, fazem questão de provar aos outros que os conhecimentos julgados intuitivos, enraizados nas aptidões femininas, têm suportes científicos válidos:

(...) desde que comecei a trabalhar, até agora, a profissão evoluiu imenso. Dá-me um gotço especial martelar a cabeça das pessoas a di%er que as educadoras não "tomam conta de meninos"... Se calhar é pela minha personalidade... gosto de desafios. Mas é mal vista, é vista por baixo... Não sei explicar, as pessoas acham muito bonito, ê a primeira palavra que utilizam..., mas a seguir di^em:... mas épreciso

ter muita paciência para tomar contar de meninos!... E eu adoro di^er às pessoas que ser bonito ê, mas que não se precisa de ter muita paciência... As pessoas ficam de boca aberta e eu explico- Ihes...(Helena, Anexo II).

As entrevistadas revelam o desejo de construir para si novas identidades de futuro — identidades visadas —, rejeitando identidades herdadas, a que se liga frequentemente a ideia de mera guarda. Combatem fortemente este aspecto, pois consideram (...) que a sociedade, de um modo geral continua a ver a educadora como um armazém que toma conta de meninos... (Ibidem).

As orientações curriculares surgiram como um argumento forte para estas profissionais, pois, como dizem, (...) são um belíssimo escudo (Luísa, Anexo II), na medida em que as defendem das representações de "tomadoras de conta" e lhes legitimam o tão desejado estatuto de profissionais que se regem por argumentos científicos válidos.

Salientamos, no entanto, o descontentamento que estas educadoras têm sentido, face às recentes transformações que a implementação da componente de apoio à família, e que no seu entender podem, tendo em conta a forma desorganizada do processo, conduzir a um desmoronar da verdadeira intencionalidade da educação pré-escolar. Esta medida pode eventualmente contribuir, mais uma vez, para que se continue a oscilar entre um

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papel de guarda e um papel educativo reconhecido. Fa2endo com que se questione novamente a dicotomia e/ou complementaridade das dimensões dos afectos e da cientificidade.

Encontrar um equilíbrio entre a dimensão dos afectos e a dimensão cientifica é, assim, uma das apostas e um dos caminhos possíveis que estas educadoras prevêem para conquistarem a identidade profissional desejada.