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Entrecruzando olhares: Os estudos da linguagem e o Direito

2.3 A CARACTERIZAÇÃO DO GÊNERO EM ESTUDO

2.4.1 Entrecruzando olhares: Os estudos da linguagem e o Direito

“Nem advogados nem linguistas têm o monopólio da verdade, e ambos podem aprender um com o outro, e beneficiar-se pela chance de examinar as pressuposições sobre a linguagem de cada um” (HUTTON apud ALVES, 2003, p. 88).

Alves (2003) afirma não existir, ainda, no Brasil, uma linha de pesquisa consolidada que faça a relação Direito/Linguística, ficando as discussões em torno do discurso jurídico tematizadas por e entre linguistas, enquanto que as investigações sobre a linguagem se dão no âmbito da hermenêutica jurídica, que a concebe como unívoca e, portanto, estática. A autora

ressalta que a interpretação jurídica consagra o logicismo e concebe o silogismo como cânone. Logo, faz-se necessário enxergar a linguagem sob uma nova perspectiva e promover uma investigação acerca da concepção de língua adotada por professores no decorrer da graduação em Direito – por exemplo, que disciplinas orientam as questões que envolvem a língua/linguagem? –, a fim de resolver problemas decorrentes do ensino jurídico manifestados na prática forense.

Entende-se haver uma resistência apresentada pelo domínio jurídico para a entrada de novos conceitos advindos de outra área do conhecimento, como, por exemplo, a Linguística Forense, no âmbito do processo judicial. É possível que essa dificuldade tenha suas raízes fincadas, ainda, na concepção positivista empreendida por Kelsen (2000) na tentativa de criar uma “teoria pura do Direito” e, embora o discurso positivista já tenha sido superado, alguns operadores do Direito, atuantes nas cortes, nos tempos modernos, ainda se apresentam impregnados por tal pensamento. Como afirma Bourdieu (2007, p. 208), citando J. Bonnecase49:

A ciência jurídica tal como a concebem os juristas e, sobretudo, os historiadores do direito, que identificam a história do direito com a história do desenvolvimento interno dos seus conceitos e dos seus métodos, apreende o direito como um sistema fechado e autônomo, cujo desenvolvimento só pode ser compreendido segundo sua dinâmica interna ( BOURDIEU, 2007, p. 208).

Dessa maneira, Bourdieu (2007) entende que o positivismo, no seu tempo, assentou-se na tentativa de os juristas construírem doutrinas e regras, tendo, por si próprias, seu próprio fundamento, objetivando a independência das pressões sociais nas suas decisões.

O referido autor ainda assevera que Kelsen, ao limitar o conhecimento científico- jurídico ao estudo das legislações positivas, numa tentativa de fundamentação autônoma da ciência jurídica, garantindo neutralidade e objetividade, excluindo toda sorte de dado histórico, psicológico ou social, assemelha-se ao que propôs Suassure para a linguística – a teoria pura da língua, a língua na sua imanência, com exclusão de qualquer referência histórico-social, geográfica, que levasse em consideração o funcionamento da língua e suas transformações.

As normas jurídicas não são estanques, nem algo independente dos agentes sociais, mas reflexos dos seus movimentos. As normas jurídicas não se sustentam independentes das pressões sociais. Paralelamente, afirmamos que o mesmo acontece em relação à língua, pois

49BONNECASE, J. La pensée juridique française, de 1804 à l’heure presente, les variations et les traits essentiels, 2 vols., Bordéus: Delmas, 1933.

não se pode pensar língua para sempre, à parte dos usuários, de forma descontextualizada, fora de sua dinamicidade.

Logicamente, a atuação estatal de magistrados e tribunais do poder judiciário, em sua função específica de estabelecer versões oficiais acerca dos fatos que lhes são trazidos a examinar, busca a almejada neutralidade e impessoalidade, passível de ser detectada, inclusive pelo conjunto de características sintáticas alojadas na linguagem jurídica, como atesta Bourdieu (2007, p. 215-216):

A maior parte dos processos linguísticos característicos da linguagem jurídica concorrem com efeito para produzir dois efeitos maiores. O efeito da neutralização é obtido por um conjunto de características sintáticas tais como o predomínio das construções passivas e das frases impessoais, próprias para marcar a impessoalidade do enunciado normativo e para constituir o enunciador em sujeito universal, ao mesmo tempo imparcial e objetivo. O efeito da universalização é obtido por meio de vários processos convergentes: o recurso sistemático ao indicativo para enunciar normas, o emprego, próprio da retórica da atestação oficial e do auto, de verbos atestivos na terceira pessoa do singular do presente ou do passado composto que exprimem o aspecto realizado (“aceita”, “confessa”, “compromete-se”, “declarou”, etc); o uso de indefinidos (“todo condenado”) e do presente intemporal – ou do futuro jurídico – próprios para exprimirem a generalidade e a omnitemporalidade da regra do direito: a referência a valores transubjetivos que pressupõem a existência de um consenso ético (por exemplo, “como bom pai de família”); o recurso a formas lapidares e a formas fixas, deixando pouco lugar às variações individuais.

Assim, observamos que, pelo distanciamento dos seus destinatários, o Direito busca exercer o controle social, não importando apenas em uma questão de eliminar todos os elementos metafísicos da ciência, como pregava Karl Popper.

Ademais, o Direito faz uso de um discurso baseado na forma, objetivando não apenas limitar a atuação dos agentes sociais, mas a própria interpretação das normas jurídicas. Nesse aspecto, urge a manifestação do poder da linguagem para que efetivamente se tenha a adesão dos jurisdicionados, ou seja, daqueles que de fato suportarão o peso de tais regras, que reconhecerão a validade das normas jurídicas, suas instituições e princípios. A maneira impessoal e neutra como se apresenta a linguagem jurídica gera uma perda do discernimento por parte dos jurisdicionados que não os torna aptos a produzir questionamentos ou discordâncias e ainda leva-os à crença de que a natureza da norma posta coincide com a forma que ela apresenta-se redigida.

A interpretação dos eventos jurídicos encontra-se assentada pela leitura que se faz da junção da norma ao caso concreto, pelo que se pode extrair de um determinado enunciado cristalizado na legislação, atravessada ainda pela livre apreciação do magistrado sobre o fato posto, o que Mello Neto (2009) denomina de “poder de enunciação fática”, mas esse poder

deve apresentar-se fundamentado em fontes seguras. Dessa maneira, a fala da testemunha especializada traz segurança ao texto decisório e, nesse aspecto, o linguista forense oferece subsídios técnicos, sustentados em anos de experimentação, de pesquisa, de trabalho árduo com a linguagem, bem como balizas seguras, apontando o caminho da justa decisão.

Para Bourdieu (2007), a leitura, no texto religioso, filosófico, literário, ou jurídico, é uma maneira de apropriação da força simbólica.

[...] por mais que os juristas possam opor-se a respeito de textos cujo sentido nunca se impõe de maneira absolutamente imperativa, eles permanecem inseridos num corpo fortemente integrado de instâncias hierarquizadas que estão à altura de resolver os conflitos entre os intérpretes e as interpretações. E a concorrência entre os intérpretes está limitada pelo fato de as decisões judiciais só poderem distinguir- se de simples atos de força políticos na medida em que se apresentam como resultado necessário de uma interpretação regulada de textos unanimemente reconhecidos: como a Igreja e a Escola, a Justiça organiza segundo uma estrita hierarquia não só as instâncias judiciais e os seus poderes, portanto, as suas decisões e as interpretações em que elas se apoiam, mas também as normas e as fontes que conferem a sua autoridade a essas decisões (BOURDIEU, 2007, p. 213-214). É mister o entendimento de que ao se submeter ao processo judicial o jurisdicionado transfere para o magistrado a interpretação adequada dos eventos e renuncia a possibilidade de resolução do conflito de forma individual, assim como é necessária a compreensão de que o Direito, sob pena de ser cravado pela insegurança jurídica, não pode admitir a livre interpretação de suas normas pelos jurisdicionados, já que sua função é pôr termo às disputas. Dessa maneira, o monopólio de interpretação dos fatos encontra-se nas mãos do Estado-Juiz, que, em regra, não delega a terceiros os atos de sua jurisdição, seu dever e direito de dizer.

Nesse sentido, Campello (s/d)50 afirma que no intuito de limitar o exercício da interpretação, evitando múltiplas leituras, o Direito estabelece: “a) o espaço em que este debate se realizará; b) os atores legitimados para validamente realizar a interpretação das normas; e c) a sua duração, sendo última a palavra do Estado-Juiz sobre o tema debatido”.

Ora, mais uma vez tornam-se pertinente as palavras de Bourdieu (2007, p. 229):

O campo judicial é o espaço social organizado no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflito direto entre partes diretamente interessadas no debate juridicamente regulado entre profissionais que atuam por procuração e que tem de comum o conhecer e o reconhecer da regra do jogo jurídico, quer dizer as leis escritas e não escritas do campo – mesmo quando se trata daquelas que é preciso

50 CAMPELLO, André E. B. B. O poder simbólico do direito: uma introdução ao estudo do direito pela obra de Pierre Bourdieu. Disponível em: <http://www.revistapraedicatio.inf.br> Acesso em: 23 jun. 2011.

conhecer para vencer a letra da lei (em Kafka, o advogado é tão inquietante como o juiz).

É nesse contexto, nesse campo judicial, que se travam os debates envolvendo linguistas forenses, enquanto testemunhas especialistas em linguagem, operadores do Direito e pessoas comuns. De acordo com Coulthard (2004a, p. 160), os problemas enfrentados por linguistas, quando servem como peritos em tribunais, parecem consistir nos seguintes pontos:

Depois de ter feito a análise e ter chegado a uma conclusão, o/a linguista confronta- se com dois problemas interacionais: em primeiro lugar, como ele/ela pode melhor transmitir, num relatório para uma audiência leiga, os dados linguísticos descobertos, e em segundo lugar, se chamado/a para testemunhar pessoalmente no tribunal, como lidar com as regras interacionais que envolvem advogados fazendo perguntas ao perito, aparentemente em nome do tribunal, enquanto que as respostas têm que ser diretamente endereçadas ao juiz e/ou ao júri (e não ao advogado). Ainda mais difícil é a questão do interrogatório do advogado de acusação. Durante esse interrogatório, o perito, que jurou obedecer à máxima Griceana de qualidade (não

mentir), confronta-se com um/a advogado/a não constrito pela mesma regra, e que

aparentemente pode dizer o que “acredita ser falso” e aludir a fatos não totalmente fundamentados por evidência.

Todos os peritos enfrentam estes problemas de comunicação, mas o/a linguista tem um problema adicional e único – todas as pessoas envolvidas numa ação jurídica se acham “peritos” em linguagem. É na verdade extremamente difícil chamar um/a linguística para testemunhar sobre o significado de palavras para um júri, porque os tribunais estão interessados principalmente em dois tipos de significados: o técnico ou o significado legalmente definido, como, por exemplo, o significado da palavra “escurecer” num estatuto que diz: “Os portões do parque serão fechados ao escurecer”. Neste caso, “escurecer” significa especificamente “30 minutos depois do pôr do sol”. Este é um significado do senso comum, que o júri, sendo um corpo representativo do homem comum, atribui à palavra.