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9 a Quinta da princesa é um bairro

4.13. Entrevista C5 — Filomena

Perfil sumário

Filomena tem 52 anos e é natural da cidade da Praia. É divorciada e reside no Laranjeiro com os três filhos. É empregada doméstica, trabalhando em casas particulares em Almada e no Laranjeiro. É católica e não se interessa por política. Filomena não sabe ler nem escrever.

a história de Filomena

Portugal foi o primeiro destino imigratório de Filomena e a decisão de imigrar foi sua. Filomena estava satisfeita com a vida e com o trabalho em Cabo Verde mas um desgosto amoroso incentivou -a a afastar -se do país. Tinha uma irmã em Portugal, o que facilitou a decisão: “Tinha cá uma irmã e, pronto, queria vir para aqui e vim, só por isso”. Em Cabo Verde trabalhava desde os nove anos. Antes de vir para Portugal trabalhava num hotel como empregada de mesa.

Filomena chegou a Portugal sozinha, no ano de 1977, há 31 anos atrás em relação ao momento da entrevista. Não se recorda da data, se era Verão ou Inverno, apenas que era de noite. Contou com a ajuda da irmã e foi viver com ela para Portalegre. Para além da irmã, tinha outros familiares em Portugal: primas e um irmão a viver no Porto. Nesses tempos do pós 25 de Abril, a sua nacionalidade era portuguesa e não necessitou, pois, de qualquer documento de entrada.

Depois de uma estada inicial de três, quatro meses em Portalegre, foi viver para Lisboa, para casa de uma prima. Não foi difícil arranjar trabalho. O seu primeiro emprego como empregada doméstica foi na zona do Rossio, na casa da senhora D. Margarida, de quem ficou até hoje amiga. Em seguida, arranjou marido e teve que deixar esse emprego por- que saía muito tarde. Foi, então, morar para Algés e passou a trabalhar em Algés e, mais tarde, compraram casa no Feijó (concelho de Almada). Entretanto, Filomena divorciou -se, o ex -marido contraiu dívidas e Filomena ainda está a pagá -las. Teve que vender a casa do Feijó e arrendar uma outra.

Nunca sentiu preconceito no local de trabalho.

Sempre que é possível, Filomena envia dinheiro para a mãe, que está em Cabo Verde. Sente -se integrada na sociedade portuguesa: “Eu por mim acho que estou bem, não há pro‑

blemas. Não senti dificuldades em viver aqui. Eu estou como se estivesse em Cabo Verde”.

Em termos de hábitos culturais, Filomena gosta muito de danças cabo -verdianas. No dia seguinte ao da entrevista, ia para o Monte da Caparica dançar para festejar a chegada de uma tia. Quando há funerais, fazem o “chorar” e a comemoração do sétimo dia, assim como quando uma criança completa os sete dias de vida: “Também há o dia 7.º, é quando uma criança tem sete dias de nascida, e festejamos, porque a criança tem sete dias e festeja -se. Ao sétimo dia temos que rezar, pôr a tesoura debaixo do travesseiro, agulha, que é para cortar os maus -olhados”. Não pertence a nenhum grupo que só inclua cabo -verdianos; de resto, tem poucos amigos cabo -verdianos. Também tem amigos portugueses, como a primeira patroa do Rossio, e mantem igualmente amizades com outras famílias portuguesas. Gostaria de ter uma casa sua na sua terra, terra a que já foi quatro vezes de férias. Comunica com os familiares por telefone — mãe, afilhada, irmãos e outros familiares. Em termos de tempos livres, gosta de ver televisão, de dançar nas festas e de visitar as primas. A relação com os portugueses é boa: “É boa. Não tenho razão de queixa. Não me fizeram

nada, não me fizeram mal”. Não tem razão de queixa dos portugueses e considera -os

simpáticos, mas também os acha menos solidários nos momentos difíceis. A relação com os portugueses não se modificou ao longo do tempo.

Se fosse hoje, provavelmente não teria vindo para Portugal. Recorda o passado com sau- dade, saudade que ao ouvir música de Cabo Verde mais se intensifica: “Quando eu ouço

ontem estava em casa da Bia [uma amiga] e pôs um CD que trouxe de Cabo Verde, esta música é do Fogo…esta música chama ‑se Alice. Mas quando eu ponho esta música a tocar, se tenho fome fico logo cheia…Identifico ‑me com a música, gosto de mornas. A comida nem por isso, mas quando ouço a música…”. Continua a falar crioulo com a neta

e com os amigos: “Eu falo mal o português. Eu falo mais o crioulo. Eu sinto ‑me mais à

vontade, porque se eu falar só o português sinto ‑me mais à vontade, porque só falando português parece que sou portuguesa, assim tenho que falar o crioulo”.

Símbolos como a bandeira e o hino não são importantes, e Filomena refere que nem conhece a cor da bandeira do seu país. Recordar o país intensifica a saudade e a sen- sação de que deveria estar lá. Quando se reformar, Filomena tenciona regressar a Cabo Verde. Não tenciona imigrar para qualquer outro país. Considera que Portugal pode ser um espaço de oportunidades para os filhos. Considera que a imigração não a mudou em nada e sente -se cabo -verdiana.

afirmações mais significativas

[…] Não me lembro quando cheguei, só sei que foi…já tenho 31 anos cá. Não me lembro se vim no Verão ou no Inverno. Só sei que cheguei de noite.

[…] Vim depois do 25 de Abril, mas como naquela altura ainda era portuguesa, porque nós éramos todos portugueses. Quando foi o 25 de Abril estava em Cabo Verde. O Paulo [o filho mais velho] ainda era bebezinho. Não era preciso nem visto nem era preciso documento nenhum.

[…] Olhe…eu nem sei. Cá uma pessoa…ganha ‑se mais do que lá [Cabo Verde]. Lá ganha ‑se pouco. Prontos, estou bem, mas não vejo nada em que eu estou melhor. Não vejo, o único problema em Cabo Verde é que se ganha pouco. Mas não sei se estou melhor ou pior.

[…] Dançamos muito, e, quando morre alguém, a gente choramos por aquele que está com a dor de ter perdido a pessoa, porque nós pensamos nos nossos, por exemplo a nossa

mãe que está longe e também as famílias e o que aconteceu àquela pessoa também nos pode acontecer.

[…] Acho os portugueses um bocado diferentes de nós. Porque nós convivemos mais, cumprimentamos mais e…ajudamos, porque se acontecer alguma coisa, se morreu alguém, a gente vai lá àquela casa, se está suja, limpamos, varremos a casa e é assim. E quando vêm outras pessoas está tudo arrumadinho e limpinho. E ficamos lá a acompanhar aquelas pessoas e damos ‑lhe força.

[…] Ainda ontem estava em casa da Bia [uma amiga] e pôs um CD que trouxe de Cabo Verde, esta música é do Fogo…esta música chama ‑se Alice. Mas quando eu ponho esta música a tocar, se tenho fome fico logo cheia…Identifico ‑me com a música, gosto de mornas.

4.14. Entrevista C6 — alcinda

Perfil sumário

Alcinda tem 40 anos e é natural de São Nicolau. É solteira e vive em união de facto há vinte e quatro anos. Reside no Laranjeiro (Almada) com dois filhos e com o companheiro. É empregada doméstica, trabalhando em casas particulares em Lisboa. É Testemunha de Jeová e tem o 4.º ano de escolaridade.

a história de alcinda

Portugal foi o primeiro destino imigratório de Alcinda, apesar de ter posteriormente imigrado para Espanha, onde viveu nove anos, e voltado depois para Portugal: “Quando estou fora

de Portugal, na outra Europa, mesmo sendo cabo ‑verdianos temos saudades de Portugal. Sentimos Portugal como se fosse a nossa terra. Agora que vivemos aqui desejamos ir a Cabo Verde. Quando estamos fora de Portugal, no circuito da Europa, desejamos sempre viver em Portugal porque é como se fosse a nossa terra”. Apesar desta proximidade que

sente em relação a Portugal, Alcinda gostou de viver em Espanha, gostou dos espanhóis e do seu trabalho como empregada doméstica e cozinheira.

A decisão de imigrar foi sua. Queria poder proporcionar uma vida melhor à sua filha, de seis anos (Alcinda tinha sido mãe aos dezasseis anos). A filha ficou em Cabo Verde com a avó e Alcinda só pôde ir buscá -la cinco anos depois, quando a menina tinha 11 anos. Na decisão contou com o apoio do companheiro.

Quando chegou a Portugal, Alcinda viveu inicialmente na casa da irmã em Algés. O com- panheiro já estava em Portugal desde há um ano atrás e vivia em casa da irmã dele, no Laranjeiro. As casas eram muito pequenas e o casal não tinha possibilidade de viver junto. Mais tarde arrendaram uma casa no Laranjeiro.

Alcinda contou com uma verdadeira rede de apoio em Portugal: o companheiro, os irmãos, os primos e outros familiares. Depois de Alcinda, mais nenhum familiar veio para Portugal. Alcinda chegou a Portugal de avião, sozinha, a 29 de Julho de 1988, há 20 anos atrás, em relação ao momento da entrevista. Tinha um visto de turismo.

Não demorou nenhum tempo a arranjar trabalho, pois já tinha um trabalho assegurado. No seu primeiro emprego, como empregada doméstica, contou com a ajuda da outra empregada da casa em que trabalhava.

Nunca sentiu preconceito no local de trabalho. Considera que a situação melhorou em relação à que tinha. No primeiro emprego em que estava como interna, não foi fácil tratar das três crianças que tinham uma mentalidade má. A filha mais velha já não vive com Alcinda, o do meio tem o tempo ocupado com a escola, ATL e explicações e o mais novo fica na ama. O pai está sempre fora, pelo que pouco cuida dos filhos. O dinheiro ganho é em parte aplicado a ajudar o sobrinho que está a tirar o curso de Direito, inicialmente em Cabo Verde e actualmente no Brasil.

Em resultado da imigração teve lugar alguma mudança de papéis e o marido passou a ajudar um pouco em casa.

Alcinda considera -se integrada na sociedade portuguesa, referindo os deveres, os descontos e a rotina semelhante à de qualquer português.

Em termos de hábitos culturais assiste à RTP -África e a programas na rádio. Em certas situações fala crioulo com a filha, que estava em Cabo Verde. Quanto à culinária fazem cachupa, entre outros pratos típicos de Cabo Verde.

Alcinda relaciona -se, essencialmente, com cabo -verdianos. Para além dos familiares e dos amigos, que são maioritariamente cabo -verdianos, frequenta a associação cabo -verdiana em Lisboa. Na associação convivem, dançam e ouvem música cabo -verdiana. Também tem amigas portuguesas com quem toma chá. Se pudesse mudar alguma coisa, aumentava o tamanho do peito.

Alcinda já foi a Cabo Verde duas vezes de férias. Comunica com os familiares por telefone — mãe, irmãs e outros familiares.

Em termos de tempos livres faz ginástica no Miratejo, limpa a casa e passeia.

A relação com os portugueses é boa, mas refere que teve que fazer um esforço para se adaptar aos sítios onde esteve, que teve que mudar a sua cultura: “Em Cabo Verde andava

com os pés no chão, o lenço na cabeça (que eu até não andei assim), mas eu acho que quando vamos para outro país temos que nos adaptar às pessoas. Aqui não é a nossa terra, mas temos que viver como as outras pessoas, como se fosse aqui a nossa terra. Para não sermos diferentes, temos que fazer como os de cá. Temos que viver como se fôssemos portugueses e não como cabo ‑verdianos. Até em Espanha tive que mudar de atitude, tive que mudar a minha cultura, de como viver na cidade diferente da minha”.

Acha os portugueses mais fechados, um pouco mal dispostos, mas bons. Pensa que não sabem viver a vida e que não gostam muito de conviver. Considera que os portugueses a vêem como uma pessoa alegre e divertida e que gostam de estar com ela.

Está satisfeita com o projecto migratório, mas, se na altura existissem em Cabo Verde as oportunidades que hoje existem, não teria vindo para Portugal.

Desde que chegou foi duas vezes a Cabo Verde.

Alcinda recorda o passado com muita alegria e com muita saudade. Foi feliz em Cabo Verde, sentia -se livre. Sente saudades das praias e do dia em que Cabo Verde se tornou independente de Portugal, dia de muita alegria [5 de Julho de 1975]. Preocupa -se com os outros, com os vizinhos e associa esses sentimentos ao facto de ser cabo -verdiana. A comida e a língua, o crioulo, são aspectos muito centrais, mais centrais do que o hino ou a bandeira. Quando se sente mal, não pensa em Cabo Verde.

Quando se reformar, Alcinda tenciona regressar a Cabo Verde, esse regresso é apelidado de sonho. Já tem um terreno em Cabo Verde, no qual um dia gostaria de construir uma casa. Não tem intenção de imigrar para outro país. Considera que Portugal é um espaço de oportunidades para os filhos, que oferece mais condições do que a sua terra.

Alcinda transformou -se em resultado da imigração, porque teve que se adaptar e procurou ser como as pessoas dos países onde viveu.

Sente -se cabo -verdiana e portuguesa. Essa identidade mista, expressa -a de uma forma curiosa: “O meu coração é cabo ‑verdiano, mas o meu corpo é português”.

afirmações mais significativas

[…] quando estou fora de Portugal, na outra Europa, mesmo sendo cabo ‑verdianos temos saudades de Portugal. Sentimos Portugal como se fosse a nossa terra. Agora que vivemos aqui desejamos ir a Cabo Verde. Quando estamos fora de Portugal, no circuito da Europa, desejamos sempre viver em Portugal, porque é como se fosse a nossa terra.

[…] Hoje considero ‑me uma pessoa rica, porque a riqueza não é ter milhares no banco, não, eu consegui uma casa para viver com os meus filhos, estou a pagar ao banco, mas

com o meu trabalho, consegui que os meus filhos estivessem comigo, que era o meu sonho, hoje tenho dois ou três pares de sapatos, que barato ou não barato, mas tenho, tenho o meu armário cheio de roupa, tenho comida quando eu quero, por tudo isto considero ‑me uma pessoa rica. Eu vejo estes pormenores, tenho medicamentos, tenho dinheiro para comprar os meus medicamentos, trabalho dia e noite, mas consigo as minhas coisas assim, … Considero, da minha terra para cá, uma mudança muito melhor.

[…] eu agora tenho um sobrinho que está a terminar a carreira de advogado, que eu ajudei a fazer o curso, eu e a minha irmã todos os meses mandávamos ajuda para pagar a faculdade, que é na outra ilha. Agora foi para o Brasil, e está a terminar o curso. Nós, cabo ‑verdianos, até já fomos mais unidos, agora já se vai desfazendo, já vamos adaptando mais à Europa, mas é verdade que os cabo ‑verdianos ajudaram ‑se muito uns aos outros. […] Os portugueses deviam rir mais [ri ‑se muito]. São assim um pouco mal dispostos. Para mim os portugueses são bons, nunca tive motivos, o que eu acho é que podiam rir um bocadinho mais.

[…] Até em Espanha tive que mudar de atitude, tive que mudar a minha cultura, de como viver na cidade diferente da minha.

[…] Sinto ‑me cabo ‑verdiana e portuguesa. O meu coração é cabo ‑verdiana, mas o meu corpo é português.