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Neste elemento, o exercício fluiu mais facilmente, as imagens já estavam selecionadas anteriormente, pesquisadas através de escolhas que já tinham a ver com as minhas questões e gostos estéticos. Não que a cena do filme americano “As Horas” não tivesse, pelo contrário cheguei a essa escolha por dialogar com as minhas referências, porém no dia do primeiro exercício não estava com a fotografia de modo concreto para a consulta dos detalhes e tive que buscar na memória algo que estava imageticamente meio vago.

Mas, voltando a imagem da Terra, a fotografia escolhida foi a capa do disco antigo da cantora Maria Bethânia “Recital Na Boite Barroco” de 1968, que por coincidência ou não, também fez parte do movimento Tropicalista e que converge para o pensamento que rege esse trabalho em questão, ou seja, o movimento que bebeu na fonte da ideia de uma busca de uma identidade brasileira, a partir do conceito estético Antropofágico: “Atitude antropofágica de Oswald de Andrade preconiza o modelo da cultura brasileira devorar e digerir” (ALMEIDA,2002,p.25). Ou seja, devoro as referencias, transformo em coisas, me aproprio e aquilo que era do outro torna-se meu. Esta é uma das ideias chaves do conceito Antropofágico assim como a própria ação de ingerir.

Pois eu devorei a ilustração do disco Tropicalista de Maria Bethânia e todos os seres do desenho se transmutaram nas ações do Jogo Ritual em cena comigo mesma e com o outro, ativando mitos e arquétipos, construindo no jogo imaginário do Teatro Ritual, verdadeiras “Jornadas da Heroína”. Joseph Campbell define essa jornada num eterno, matar e comer, ou seja, o ato de alimentar-se também pode ser visto na cultura da seguinte forma:

Por isso as sociedades primitivas aprenderam que “a essência da vida subsiste graças ao matar e comer; esse é o grande mistério que os mitos têm que enfrentar [...] “um mágico, maravilhoso acordo” gestando-se entre o caçador e a caça, como se eles estivessem aprisionados num círculo “místico, atemporal”, de morte, sepultamento e ressurreição (CAMPBELL,1991,p. 11).

E esse círculo entre a “caçadora-jogadora” e a “caça-a-capa-do-disco” estabeleceu no laboratório o círculo “místico e atemporal”. Neste círculo, a caça-a-capa-do-disco representa uma pintura do auto-retrato da cantora com os seios nus, entre flores, bichos e um cruzar de mãos pela face emaranhada pelos longos cabelos e que dava ideia de entrelaçar, entroncamento. Com isto, tornou-se nítido e muito forte para mim que a imagem selecionada anteriormente ganhou uma força criativa imensa e o círculo “místico e atemporal” se estabeleceu. E assim pude vivenciar no corpo as matrizes da terra, o florescer, o nascer, desenvolver, reproduzir, comer e morrer.

Capa do Disco “Recital Na Boite Barroco” de Maria Bethânia, Artista: Luiz Jasmin de 1968 (A Terra).

Deste modo pude construir os ciclos da vida, suas reproduções, suas metamorfoses, o comer, brotar da pele, dos sentidos, dos ouvidos. Da minha boca saiam flores e bichos da natureza, assim como na imagem escolhida.

Percebi, que no elemento Terra, no qual foi o único em que fui bicho e também do gênero masculino (sobre o gênero direi mais adiante), fui tão ser da natureza em pele e osso que me transformava em bicho da seda, em cobra, em entroncamento de árvores, em raízes, em vários elementos, em plantas, em desfolhar, descamar, despelar, trocar de casca ou de pele de cobra.

E assim como nos bichos e nas plantas, esse elemento trouxe as minhas próprias questões de pele com as acnes que combato a vida toda e que vieram à tona. Ou seja, mais uma vez nesse depoimento, percebemos o quanto a história de cada uma ou um, suas memórias são re-significadas e ganham novas interpretações, e um problema de acne vira uma troca de pele da cobra, ou as feridas e marcas do Orixá Obaluaê.

É surpreendente como os caminhos do inconsciente vão contando e encontrando seus mitos e “complexos” como diria Freud, o pai da psicanálise. Ele foi nos mitos, na cultura, no olhar para as lendas para buscar explicar traumas, angustias, neuroses e entre outras questões do inconsciente e nomear como por exemplo o “Complexo de Édipo”, a relação de mãe e filho que não rompe o “cordão umbilical” e vivem uma espécie de uma eterna “simbiose” neurótica. Joseph Campbell comenta o Complexo de Édipo de Freud, no seu livro “O herói de mil faces”:

Essa fatídica distribuição infantil de impulsos de morte (thanatos: destrudo) e amor (eros: libido) constitui o fundamento do agora celebrado complexo de Édipo, que Sigmund Freud, há uns cinquenta anos, apontou como a grande causa do fracasso do adulto no sentido de comportar-se como ser racional. Como disse o dr. Freud: "O rei Édipo, que assassinou o pai, Laio, e desposou a mãe, Jocasta, nos mostra, tão-somente, a realização dos nossos próprios desejos infantis. (1997, p.7).

Já o psicanalista Carl G. Jung vai reconhecer este “complexo” como uma totalidade que o ser humano “incorpora”. Utilizo o termo “incorpora” entre aspas, pois mais adiante explico o termo com um olhar através da cultura, espiritualidade ou ainda da ancestralidade que reconheço em mim. Trago traços dessa “incorporação” ou estado alterado de consciência para a composição da Personagem ou Persona? O ator ou a atriz “incorpora” ou vivencia para si o que ele chamará de “Arquétipo”, ou seja: o “Arquétipo de Édipo” ou o “Arquétipo de Electra” e entre outras variações de complexos no jogo.

Reconhecemos nos Arquétipos grandes teias emaranhadas de informações para explicar questões íntimas da vida de um ser, do seu inconsciente, que eu poderia, aqui, nomear como uma representação do “Complexo de Obaluãe” por Freud ou o “Arquétipo de Obaluaê” por Jung.

Nossa pesquisa sobre Teatro Ritual se fundamenta principalmente na ideia de Jung, sobre os Arquétipos, como algo coletivo que percebemos de particular em nós mesmos, vejamos:

Os ensinamentos tribais primitivos tratam de arquétipos de um modo peculiar. Na realidade, eles não são mais conteúdos do inconsciente, pois já se transformaram em fórmulas conscientes, transmitidas segundo a tradição, geralmente sob forma de ensinamentos esotéricos. Estes são uma expressão típica para a transmissão de conteúdos coletivos, originariamente provindos do inconsciente.(JUNG, 2002, p. 16).

Antonin Artaud destaca em seu livro “Teatro e seu duplo” as viagens que fez para conhecer outras culturas como Bali e México: “Conhecer as localizações do corpo é, portanto, refazer a cadeia mágica. E com o hieróglifo de uma respiração quero reencontrar uma ideia do teatro sagrado” (ARTAUD, 1993, p. 173).15

Ou seja, em todos aqueles/as que buscam esse tipo de Teatro Rtualístico, Performático, feito sem “alegorias” da atuação, e assim essas “localizações do corpo”, um estar inteiro até as “entranhas”, termos e conceitos desenvolvidos pelo autor, e que dialogam de modo definitivo e de extrema fundamentação para esse trabalho. Artaud acreditava que para o ator, o estado da catarse ou estado Alterado de Consciência levava a esse “Teatro Puro”, e no qual essa investigação com a minha persona- mítica, me leva muitas vezes nesse estado catártico e puro e alterado desde os primeiros laboratórios, ensaios e segue nas apresentações de modo agora, “consciente” orquestrado, partiturado.

E assim com esse Teatro Ritual ou Sagrado, localizo em mim, então, os traços do Arquétipo de Obaluê como uma das figuras centrais na composição desta personagem ou persona da Terra, deste ser masculino, e agora sim, “mudei de gênero”, e com isto vivenciei a relação do imaginário com transições dos sexos do feminino para o masculino e o retorno para o feminino. Tudo em mim estava em transição, vivia um processo migratório, nada era estável, e sim o estado de impermanência. Percebo que na maioria das revelações, das metamorfoses, é necessário transitar entre gêneros, desejos, ir de um pólo ao outro. Para ocorrer mudanças é preciso viver um estado do devir, e segundo a autora Maria Candia Almeida:

Oswald transforma o tabu em totem. A distancia, o diversos e a desigual, passa a ter uma perceptiva reconhecida em um movimento que fortalece a expressão dos grupos chamados de Multidiciplicidades de devires, devir animal, devir, popula a humanidade une animalidade que lhe é subjacente e que não o inferioriza. (2002, p. 25)

15

Antonin Marie Joseph Artaud, 1896-1948, francês, ator, diretor, dramaturgo, escritor, e desenvolveu um estudo teórico Teatral, resultado de suas e viagens para Bali e México, que o fez abrir a percepção sobre uma ideia de um Teatro Ritualístico, um resgate ao teatro na sua essência, o que ele chamou “O teatro sem órgãos” ou “Teatro da Crueldade” no seu célebre livro “O Teatro e seu Duplo” de 1935, uma obra de extrema importância nas pesquisas teatrais pelo mundo, e que influenciou Grotowski, Peter Brook, José Celso, e tantos outros diretores e gerações nas artes em gerais um estar inteiro até as “entranhas”, termos e conceitos desenvolvidos pelo autor.

Com isto, meu devir ainda era andarilho, e era um Orixá-Arquétipo que representa a saúde e a doença, coberto com suas palhas e que caminha pelo mundo. Na tradução em Yorubá, na língua de matriz africana “Obaluaê” quer dizer: “O dono da Terra”. A minha formação e referencial cultural e espiritual advêm da religião da Umbanda e do Candomblé, assim perpassa por esse Orixá de matriz africana que traz na sua mitologia a questão da pele, como já dito acima. Na lenda original Obaluaê é renegado por causa das suas feridas na pele, as mesmas feridas que vão comover o Orixá Iemanjá, que é a mãe de outros orixás e que no sincretismo brasileiro é a grande mãe, e a Rainha do Mar. Ela o adotará e lhe dará contas do mar para enfeitar sua vestimenta. Percebi que este referencial cultural-espiritual-psíquico se trama aos mitos do meu universo, do meu inconsciente me metamorfoseando em bicho, lendas e Orixás.

Já as/os outras/os colegas foram ou puderam acionar outros referenciais de suas histórias. Essas histórias acionam “complexos” que o psicanalista Carl Jung, identificou como “Arquétipos”, como já foi dito acima: “Os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente os complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por outro lado, são chamados arquétipos”(JUNG,2000,p.15).

Para os outros alunos, por exemplo: “O mito de Obaluaê”, se re-significaria através de uma lenda indígena, ou de uma passagem bíblica. Tudo depende de quais parâmetros tem a pessoa dentro do jogo em questão, mas todos os mitos têm a mesma as a “raiz”. As características deles serão reconhecidas com diversos nomes nas múltiplas culturas e religiões, ai está o grande poder do Mito, pois ele sobrevive às mutações do tempo, culturas e lugares. De acordo com Everardo Rocha: “O mito está na existência. Resiste a tudo, fazendo no fundo com que suas interpretações sejam, quase sempre, matéria-prima para novos mitos” (1997, p.07).

Obaluaê traz a representação das histórias mitológicas a partir do elemento Terra e dos problemas de pele. Ele é um dos meus orixás16 de cabeça, pois fui feita filha de santo dele junto com os orixás Oxum e Oxalá. O orixá “Obaluaê Deus da Terra” para mim foi uma referência muito forte em determinado momento do laboratório, pois a sua dança fala de sua doença de pele virando pipocas que se transformam em flores como na sua história mitológica. Esta mitologia foi trazida e assustadoramente acionada no meu corpo através de

16 Orixás, nome em yorubá, língua de matriz africana, para nomear os Mitos, os Deuses e Deusas da religião

sua dança presente em mim, e que fiquei sem saber se permitia ou se freava, temendo aonde isso poderia me levar. Mas a condução foi sendo concluída e fui me despedindo da sua dança e entrando em paz com a força, ou as memórias acionadas pelo inconsciente pela ótica de Jung.

E mais uma vez, também pude observar no grupo, as questões da Terra, seus ciclos de vida e morte, religiosidade, reprodução, gestação, e entre outras ações ligadas a este tema acionado pelos demais colegas a partir das lembranças no Jogo Ritual. Vale dizer que este laboratório foi muito intenso e revelador. Através dele eu descobri o potencial deste tipo de trabalho e suas investigações a partir da Poética dos Elementos para a composição de cena. Pude conhecer também novas possibilidades ou meios de treinamentos para a atriz ou o ator nas suas construções imagéticas.

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