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Diário de um teatro ritual antropofágico : por uma sobrevivente selvagem

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA

DEPARTAMENTO DE ARTES

CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

ELZE MARIA DE OLIVEIRA BARROSO

JUNHO/2017 NATAL-RN

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Amuralhar o próprio sofrimento é arriscar que ele te devore a partir do teu próprio interior Frida kahlo

Salvem as Fridas, Tarsilas, Marias, Clarices, Inaicyras, Ciganas, Pombagiras, Caboclas, Encantadas, Oxums, Yansãs, Yemanjás, Nanãs, Obás, Euás

À todas as energias do feminino que inspiraram este trabalho.

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É preciso lembrar que a criação do intérprete define-se primeiro como ato de comunicação, pois o mesmo é, antes de tudo, o produtor de sua obra, construída por meio de signos de natureza gestual e sonora. O intérprete se transforma no próprio signo. Percebe-se que o corpo, em cena, revela a dimensão expressiva, a dimensão orgânica. Inaicyra Falcão

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ELZE MARIA DE OLIVEIRA BARROSO

DIÁRIO DE UM TEATRO RITUAL ANTROPOFÁGICO POR UMA SOBREVIVENTE SELVAGEM

Monografia de conclusão do curso de Licenciatura em Teatro pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Orientador: Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek.

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Autorização a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN Sistema de Bibliotecas – SISBI

Catalogação da Publicação na Fonte - Biblioteca Central Zila Mamede Barroso, Elze Maria de Oliveira.

Diário de um teatro ritual antropofágico por uma sobrevivente selvagem / Elze Maria de Oliveira Barroso. - 2017.

111 f. : il.

Monografia (graduação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Centro de Ciências de Humanas, Letras e Artes, Curso de Licenciatura em Teatro. Natal, RN, 2017.

Orientador: Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpeck.

1. Teatro ritual – Monografia. 2. Movimento antropofágico - Monografia. 3. Arquétipo - Monografia. 4. Tropicalismo – Monografia. I. Haderchpeck, Robson Carlos. II. Título.

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ELZE MARIA DE OLIVEIRA BARROSO

Diário De Um Teatro Ritual Antropofágico Por Uma Sobrevivente Selvagem

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Teatro/Licenciatura como parte das exigências para a obtenção do título de licenciado em Teatro pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Aprovada em ____/_____/_____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________ Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek

Orientador - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) _______________________________________________

Prof. Dra. Karyne Dias Coutinho

Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) _______________________________________________

Prof. Dra. Lara Rodrigues Machado Universidade Federal da Bahia (UFBA)

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AGRADECIMENTOS

À minha mãe Elizabeth Bezerra de Oliveira, mulher admirável, como, digo sempre: a dona do meu Carnaval, a dona do meu destino, me deu a vida, o amor, o prazer de viver. Esta senhora, assim com muitas mulheres que seguem na grande luta de “tornar-se mulher”, segundo Simone de Beauvoir, me ensina todos os dias como tornar-me mulher. Além da vida, me presenteou com o seu olhar sensível sobre o ser humano, o amor aos animais, a arte, a política, o senso de justiça e igualdade, a natureza, o Divino, as religiosidades, os santos, as entidades, os orixás e tantas coisas mais que não caberiam em todas essas páginas.

À minha avó Georgina Bezerra de Oliveira, senhora de Belém do Pará, assim como minha mãe. Mulher de fibra, que não foge à luta, que tem uma força inimaginável e que ensina todos os dias como não desanimar. Além de me alimentar no físico, essa senhora sempre alimentou minha alma, gerou todas as possibilidades de conquistas, lutas e recomeços! Sou grata eternamente por tê-la como avó.

Ao meu pai, Genicilei Vianna Barroso, uma pessoa intensa, forte, ora agitado, ora muito doce a quem muito me assemelho. Um homem sensível, de voz grave e bonita, amante da música, com um antigo desejo de ter se tornado um loucutor, mas, como muitos, não fez dessa arte o seu oficio. Segue tentando do jeito que dá, para estarmos sempre juntos nessa longa caminhada, eu sendo filha e ele sendo meu pai. Ensinou-me, desde criança, no meio de jogos infantis o que significa a palavra honestidade. Eu tenho muito orgulho de ser sua filha. À Geni Cordeiro, sua grande companheira de vida, que sem a qual nossa felicidade não seria completa; pelo afeto e cumplicidade. Minha gratidão a vocês dois por toda força, torcida e o amor que trocamos.

A toda a minha família de Belém do Pará, passando por Recife, chegando ao Rio de Janeiro, obrigada a todos os encontros familiares que constituem essa minha história. À minha família extensa especialmente a Vera Blasques, minha querida tia amada, a Ildernir Freitas e sua família, que também viraram nossa, muito obrigada pelo carinho, pela força e todos esses anos de amizade, à minha madrinha Margarida Menezes, pelo carinho

As minhas amigas irmãs, mulheres extremamente sensíveis, admiráveis, inteligentes e que fazem parte da minha trajetória, entre muitos risos e choros, vivemos coisas fortes, prazerosas, tristes e lindas as quais carrego comigo e deixo com elas um tanto de nossas histórias ,

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Carmen Filgueiras, Eliane Paliga, Érica Ramos, Ive Crepory, Mariana Costa, Vanessa Mazzari. Gratidão às minhas irmãs de alma e de vida, Fernanda Novarino, Janaína Chechinel, Sabrina Faerstein e Shenia Karlsson, que lendo e-mails, ouvindo longos áudios, contribuíram com apontamentos e correções deste texto, que seguem comigo nessa caminhada. À Ludmila Rodrigues, minha amiga querida, que ajudou nessa monografia, com leituras, correções, dicas, sugestões, arte da capa e foi de uma dedicação e um olhar atento e sensível de artista e grande parceira. Muito obrigada meus amores!

Aos amigos/as e colegas da minha turma de 2013 e do curso de Artes e Teatro, que fazem parte dessa trajetória e que muitas vezes contribuíram na plateia das encenações, no olhar crítico, no cuidado, nas correções deste trabalho, no abraço no fim do espetáculo, nos lanches compartilhados, nos almoços e filas do RU, nas conversas de corredor que eram verdadeiras aulas e em especial: Joelson Reis; Natã Ferreira; Pablo Vieira; Nadja Rossana; Nara Martins; Analice França ; Lucília Albuquerque. Aos meus colegas da turma de Atuação III e aos integrantes do grupo Arkhétypos que passaram pelo processo e os que ficaram até o fim no Éter, foram fundamentais, para essa construção.

Ao meu grande amigo querido, Franco Fonseca, meu colega de curso desde os primeiros dias de aula, de cada etapa, lanche, sono, cansaço, tristezas, lágrimas, aos materiais de estudo e cena, emprestados. As conversas intermináveis nas esperas de ônibus, filas, corredores, sentando juntos e dividindo muitos lanches e almoços e horas a fio de paciência e ensinamentos. Muito obrigada por essa e por todas as caminhadas que a vida nos permitir seguirmos juntos!

À Lina Bel Sena, por todas as conversas, ajudas, forças, trocas, áudios longos, encontros, amizade, convites para ser sua figurinista do Cores, que presente! Obrigada por tudo!

À Cléo Araújo, minha grande colaboradora desta monografia e que me presenteou com imensas e importantes contribuições neste trabalho, grande parceira e amiga, gratidão.

A todas e todos os professores do curso de Teatro que fizeram parte desta formação em especial o Prof. Dr. Jefferson Fernandes que trouxe o aprendizado sobre a importância da arte e educação e a Ms. Makários Maia Barbosa, eles trouxeram a constate reflexão sobre a busca do nosso teatro, além de seus grandes ensinamentos e as viagens nas aulas, muito obrigada meus queridos mestres.

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À banca examinadora, professoras e mulheres maravilhosas, sensíveis e de olhares precisos e delicados, Dra. Karyne Dias Coutinho que trouxe a reflexão da importância da arte na educação, e a valorização de igualdade de gêneros também na escrita e que me apresentou ao ser vivente e a Dra. Lara Rodrigues Machado e seu olhar tão sensível e artístico, as quais tenho a honra de compartilhar esta monografia , muito obrigada!

Ao meu professor e orientador , Dr. Robson Carlos Haderchpek, diretor do espetáculo que deu origem a esta monografia e um dos responsáveis por tudo isto que se apresenta, se revela e pulsa em arte e quer voar do papel, das palavras e novamente para os gestos, sons e ritos. Ao o olhar que teve a sensibilidade e a sabedoria de sempre nos dizer: “vá, troca com o outro, dance para outro, se revela para outro/a, se deixe levar”. E após os primeiros passos dessa dança, me deixei, me perdi e me encontrei diversas vezes. Obrigada por todos os ensinamentos e os encontros dentro e fora do Arkhétypos.

A professora Msa. Ana Maria de Moraes, minha grande mestre e uma das primeiras professoras de artes no curso de Moda e Figurino, minha primeira graduação, que tornou-se uma grande amiga e que seguimos juntas numa caminhada de trocas e ensinamentos, que ouve sempre por horas a fio sobre as minhas criações e outras ideias artísticas e que fez contribuições importantíssimas nesse trabalho . Muito obrigada pelo seu carinho e dedicação,.

A todas as pessoas queridas de encontros e trocas pelo caminho, que por algum lapso não tenham sido citadas, serei sempre agradecida por fazerem parte dessa história.

Às divindades que se fazem presentes, para além de rituais religiosos, que nutrem o meu fazer artístico, e foram de extrema importância neste trabalho, desde a pesquisa in loco até o resultado desta Monografia.

Agradeço a Olorum e a todos os Orixás, a todas as minhas entidades. Salve Exú, salve Dionísio! A Oxum, Oxalá e Omolú, donos da minha caminhada, que me energizam e alimentam para as criações, o que encontro e o que sigo fazendo pelo mundo: Adupé.

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RESUMO

Este trabalho é fruto da disciplina de Atuação III do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Seu objeto de estudo é a análise da persona mítica Uma Sobrevivente Selvagem no processo criativo do espetáculo Éter do Arkhétypos Grupo de Teatro. Nesta pesquisa explorou-se os mitos da cultura nacional cruzados com referências estéticas do sincretismo religioso de matriz africana e indígena como potência para composição do trabalho da atriz-performer. Foram utilizados também elementos das artes visuais (Frida Kahlo, Henri Matisse e Bosch) e da moda (Rei Kawakubo e Alexander McQueen) o que, por sua vez, fez emergir o conceito dos movimentos Antropofágico de (Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral) e do Tropicalismo (Caetano Veloso e Maria Bethânia). Relaciona-se a esta pesquisa as experiências em estado de Jogo Ritual (Haderchpek), os estados do inconsciente coletivo (Jung) e ao papel do mito (Joseph Campbell) pessoal na cena ritual (Artaud). Refletir sobre as diferenças de incorporação consciente voluntária e incorporação inconsciente involuntária numa perspectiva ritualística (Inaicyra Falcão) são objetivos desta análise. Em tom psicografado o EU lírico, pede à licença poética inspirada em Clarice Lispector e Augusto dos Anjos a fim de narrar a trajetória deste estudo em um verdadeiro trânsito metalinguístico, enviesando o processo de uma escritora, atriz – performer, figurinista e artista do seu tempo que leva consigo a imagem do feminino transgressor.

Palavras Chave: Antropofágico, Teatro Ritual, Jogo Ritual, Arquétipo, Mito, Incorporação, Moda, Artes Visuais.

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ABSTRACT

This work is originated in the experiments of the course of Acting III, during the Bachelor of Theatre Arts in the Federal University of Rio Grande do Norte, Brazil. The study analyses the mythical characteristics of A Savage Surviver in the creative process of ‘Éther’, theatre play performed by the group Arkhétypos (Rio Grande do Norte, Brazil, 2017). In this research, national myths are intertwined with references from the aesthetics of African religious and indigenous Brazilian traditions, as potential forces for composition in acting-performing. Other visual elements from Art History (Frida Kahlo, Henri Matisse, Bosch) and from Fashion (Rei Kawakubo, Alexander McQueen) were freely included, recalling the principle of ‘Anthropophagy’ of the Brazilian Modernist movement of 1922 (Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral) and from ‘Tropicalist’ movement of the late 1960s (Caetano Veloso, Maria Bethania). This research relates experiences of ritualistic play (“Jogo Ritual”, Haderchpek), collective unconsciousness (Jung), the role of the myth (Joseph Campbell) during ritualistic reenactments(Artaud).This study aims to reflect upon the different ways of embodiment (a character, an archetype or being oneself), whether conscious or unconscious, voluntarily or involuntarily, with the ritualistic perspective of Inaicyra Falcão. As if it written in a trance, the author-poet is inspired by Clarice Lispector and Augusto dos Anjos, transcending the limits of language, combining personal accounts from own her experiences as writer, actor, performer,

costume designer and artist, loaded of feminist transgression.

Keywords: Anthropophagy, Ritual Theatre, Ritual Play, Archetype, Myth, Embodiment, Fashion, Visual Arts.

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SUMARIO

INTRODUÇÃO ... 12

1 O TEATRO RITUAL ANTROPOFÁGICO 1.1 Diário De Uma Sobrevivente Selvagem ... 14

1.2 Eis Me Aqui! Entre Mim E Outro, O Devir Antropofágico Nos Une ... 18

1.3 As Gotas de Suor da Semana de Arte de 22 ... 23

1.4 O Tropicalismo Deveras Me Alcançou ... 26

1.5 O Antropofagismo E As Suas Influências Em Meu Fazer Artístico ... 30

2 A TRAJETÓRIA DA PERSONAGEM E SUAS INFLUÊNCIAS ESTÉTICAS 2.1 A Metodologia Das Imagens Como Treino Laboratorial da Disciplina Atuação III Teatro Ritual ... 33

2.2 O Mergulho No Mar - A Água ... 36

2.3 O Entroncamento - A Terra ... 39

2.4 As Viagens - O Ar ... 44

2.5 O Sacrifício - O Fogo ... 46

3 O PROCESSO ÉTER 3.1 A Moda Como Meio de Expressão E Composição da Arte ... 57

3.2 O Figurino do Espetáculo Éter ... 71

3.3 O Processo Éter ... 79

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 105

REFERENCIA BIBLIOGRÁFICAS ... 107

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INTRODUÇÃO

A escolha deste trabalho, e seu modo de escrita, nasceu da necessidade de narrar a trajetória de uma figura mítica trabalhada em um dos processos de composição de atriz que desenvolvi durante os laboratórios do processo Éter. Esta persona ou personagem, irá percorrer de forma direta está escrita, abrindo espaços para diálogos com autores estudados, se personificando como co-autora, mostrando como ela, também, pode contribuir e inovar nossa arte e nosso processo enquanto atriz

Nesta perspectiva, iremos fazer uma interlocução, trocar palavras e se fazer presente explicando o processo, dando vida a um viés quase literário e porque não uma licença poética, num tom de um estilo do eu lírico para dialogar em algumas passagens do texto. Pois as formas encontradas para dizer o que nasce de nós, pode sim ser outras e tantas que não cabe mais a arte definir.

Para melhor exemplificar, deixo claro que essas palavras saíram em alguns momentos, quase como “psicografadas”. Uma espécie de “entidade persona” que precisava dizer coisas para além da cena e que ultrapassou os espaços de presença cênica dos laboratórios, ensaios e apresentações do espetáculo, personificando-se e permitindo está aqui com um teor, que parte do inconsciente para o consciente. Desta forma, entendo que este trabalho comunga das ideais de Carl Jung (2002, p. 10) quando este diz que o nosso inconsciente é um “sujeito atuante e padecente”, ou seja, um ser em constâncias, capaz de perceber a grandeza da natureza das coisas.

Então, no primeiro capítulo, convido vocês a uma experiência estética através do

Diário De Uma Sobrevivente Selvagem, o qual devera/poderá lhe atingir, causando

sensações. O que lhe atingir deverá penetrar todos os seus sentidos, ainda que de modo invisível e imaginário, mais do que se acomodar em blocos de forma e conteúdo digeridos e analisados, essa jornada seguirá como um jogo, entretanto aqui, será como um jogo ritual, dar e receber, afetar e ser afetado, numa espécie de cerimônia, de rito de leitura para se chegar ao âmago dessa jornada. Exploro, sobretudo, o teatro ritual antropofágico, deixando que a persona tome as rédeas deste capítulo, trazendo trechos de seu diário de uma sobrevivente selvagem ao longo do tempo, sendo responsável pela introdução ao Antropofagismo através dos conceitos de Oswald de Andrade (1928), arte da Tarsila do Amaral (1928), os estudos de Maria Cândida F. de Almeida (2002) guiando o leitor por momentos decisivos da arte

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brasileira, onde aparece em cena, o tropicalismo e a semana de arte de 22. Aqui, em especial, conheceremos como a arte ganhou espaços entre as camadas da população e como foi forte sua extensão.

No segundo capítulo, entra em cena A Trajetória da Personagem e suas Influências

Estéticas, abrindo caminhos para diálogos com a metodologia criada na disciplina de atuação

III do curso de Licenciatura em Teatro da UFRN, ministradas pelo Prof. Dr. Robson Haderchpek, tendo como mote criador o teatro ritual. Este professor coordena um grupo de extensão chamado Arkhétypos Grupo de Teatro, e neste trabalho, pude experimentar a poética dos quatro elementos (terra, fogo, água e ar), trabalhando aspectos ritualísticos da cena, mantendo relações em jogo e criando uma dramaturgia nascida a partir dos encontros. Os

estudos de Bachelard (1998) Artaud (1993), Grotowski (1992), Jung (2002), Campbell (1997) entre outros nortearam este trajeto. Por isso, saborearemos aqui, um passeio pelos quatro elementos, pois mergulharemos no mar, no entroncamento da terra, nas viagens com o ar e no sacrifício do fogo. Este capítulo abre o leque das possibilidades de criação, de como o corpo se preparou para adentrar no universo da personagem criada a partir dos laboratórios de criação do grupo Arkhétypos.

Nisto, em meu terceiro e último capítulo, levo o leitor a conhecer, os autores Inacyra Falcão (2008) e o meu trabalho de criação O Processo Éter que se configurou no Espetáculo Éter do grupo Arkhétypos. E antes que este encontro se torne singular a sua compreensão deste texto, entro nos caminhos da moda como meio de composição da personagem, trazendo elementos que foram significativos ao meu processo, que me levaram a chegar até este ser. Assim, trago o relato de um ensaio fotográfico de moda inspirado nas facetas das personas que surgiram ainda em Atuação III, e que foi de suma importância para meu conjunto de sensações e tudo se reverberou em cena quando as apresentações terminam e encerram esta jornada de vida, sobretudo da atriz que me transformei.

Com isto, após um período de estudo dentro do grupo Arkhétypos, ao longo de mais de um ano e meio, venho desenvolvendo uma investigação do Mito de Medeia, que se ressiginificou, passando pela Cigana Sara – Pombagira, e que virou uma espécie de Mãe Natureza, Gaya, para outros, Pachamama, Mãe Terra, e pode se ver como a figura do ser feminino, criadora, que gera filhos, gera a dor do abandono pela traição, gera também o mundo, gera a criação e a deflagração da própria destruição e erosão da natureza produzida por si própria ou no tensionamento com as outras forças dos seres humanos e suas releituras na cultura e in loco, a partir das minhas próprias experiências nos laboratórios.

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CAPÍTULO I

O TEATRO RITUAL ANTROPOFÁGICO

1.1 Diário De Uma Sobrevivente Selvagem

Preciso descansar. Cada parte de mim, meus pensamentos, meus olhos exaustos de testemunhar a história, minhas folhas, minhas raízes, meu caule, minha penugem, meus órgãos, estão todos esfacelados por dentro. Já deveriam ter se tornado um montante de pó, há mais de um século. Entretanto por razões ainda inexplicáveis, caminho sobre a terra, e até agora não nos misturamos por mais que tentativas de carregar todas as minhas partes para estarem finalmente emaranhadas.

Eles simplesmente ignoravam que a alma contém todas as imagens das quais surgiram os mitos, e que nosso inconsciente é um sujeito atuante e padecente, cujo drama o homem primitivo encontra analogicamente em todos os fenômenos grandes e pequenos da natureza (JUNG, 2002, p10)1.

O esforço foi demasiadamente em vão. Caminho sobre ela, isso me faz ver cada movimento dos seres, eles atravessam minha estrada, e, agora por último, assim espero, vejo você, este ser vivente, esta pessoa que agora me lê, peço que tenha a calma de uma árvore centenária e uma curiosidade infantil. Estou cansada e por vezes em pequenos ou grandes delírios, estou velha, embora não pareça, mais de trinta e nove anos, mas estou.

Preciso partir. Mas não antes de te contar algo que carrego há tempos comigo e que preciso deixar para levar contigo. Se chegastes até a estas linhas descritas de meu pensamento, posso finalmente descansar ou algo por vir, guardado para mim, que só quando atravessar saberei, mas não compete mais a ti, só a mim. Cada um faz a sua travessia. A minha tem sido longa, distante, pedregosa, ramificada, rastejante, festejante, arruinadamente exuberante. Esses detalhes, agora, não vêm ao caso. O que verdadeiramente importa, se existe sentido nessa palavra, verdade, ou a eterna busca desta, seguirá nas próximas linhas que entrego a ti.

1

Calr Gustav Jung, suíço, 1875, foi um grande Psiquiatra e Psicanalista que desenvolveu a teoria sobre o “Inconsciente Coletivo” e autor do célebre livro póstumo, “Os arquétipos e o inconsciente coletivo” de 1969. E é importante dizer que muitos dos conceitos deste estudo em Teatro Ritual se baseiam nas teorias de Jung.

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Percebo que começo pelo fim. Poderia lhe contar desde o início, mas minha memória às vezes falha. Por favor, não me leve a mal, querida jovem pessoa. Mas os séculos me pesam e o passado como sabemos, para muitas e muitos de nós é doce, pesado, alegre, dolorido. Mas isto também não vem ao caso!

O que importa, é sobre o que quero lhe dizer, o que move todo este dizer, e que ainda não sei direito, é uma espécie de hibridismo que acontecera dentro de mim, uma fusão de antropofágica misturada com o teatro ritual, passando a chamá-lo de Antropofagismo Ritual ou Teatro Ritual Antropofágico, definições essas, que ao longo do percurso, vamos tecendo juntas ou juntos, como queira ser identificada ou identificado, os gêneros aqui não serão uma questão e sim uma opção de como você se sente. E para dar seguimento à nossa jornada, convido a ti para adentrar esse Teatro Ritual Antropofágico.

O teatro, quando ainda fazia parte da religião, já era teatro: liberava a energia espiritual da congregação ou tribo, incorporando o mito e profanando-o, ou melhor, superando-o. O espectador tinha então uma nova conscientização de sua verdade pessoal na verdade do mito e, através do terror e da sensação do sagrado, atingia a catarse. Não foi por acaso que a idade Média concebeu a ideia da “paródia sacra” (GROTOWSKI, 1992, p. 20)2.

Teatro este, ritual, no qual as imagens podem (assim como em outras formas de Teatro) vir a ser um dispositivo de novas figuras, sensações que lhe causarão afetos ou desafetos, mas inevitavelmente serás afetada/o como o que lestes nas próximas páginas que chamarei de Diário De Uma Sobrevivente Selvagem ou Diário De Um Teatro Ritual Antropofágico Por Uma Sobrevivente Selvagem. Tantos nomes, para falar da mesma coisa. Ou para falar de várias! Deixemos assim! Mais dúvidas e indagações do que respostas ou definições, que como sabemos, em grande parte são sempre situações transitórias, um vir a ser, como o fenômeno da existência, estar em estado de impermanência, de mutações, de metamorfoses, de expansão e retração como em todos os ciclos de começo, meio e fim, ou se pensarmos de modo mais vertical de vida e morte.

E assim, para vivenciar as experiências estéticas do conceito de Kant, que lhe proponho, podemos observar que para o pensador, segundo Prof. Dr. Eduardo Pellejero:

2

Jerzy Grotowski, de 1933-1999, polonês, foi ator, diretor e autor do termo “Teatro Laboratório”, e grande estudioso do método de práticas de atuação e autor do livro “Em busca do Teatro Pobre” entre outros, no qual defende a ideia da encenação ter como foco o ator, e não o texto, cenário, figurino e entre outros, desierarquizando esses outros importantes elementos que ficavam sempre a frente dos atores na cena, e foi um dos grandes pensadores da arte de preparação do ator/atriz no século XX.

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Kant associa a subjetividade da experiência estética aos sentimentos de prazer e desprazer, enquanto modos de afetação da subjetividade – “sente-se a si próprio do modo como ele é afetado pela sensação” (§11). As representações decorrentes da experiência estética referem-se exclusivamente ao sujeito e ao “seu sentimento de vida, sob o nome de sentimentos de prazer e desprazer” (KANT apud PELLEJERO, 2016, p.01)3

E com isto a ou o convido para uma experiência estética através desse Diário no qual o mais relevante são as suas sensações, aquilo que penetrar todos os seus sentidos, ainda que de modo invisível e imaginário. Essa jornada seguirá como um jogo, entretanto aqui, será como um Jogo Ritual. Dar e receber, afetar e ser afetada, numa espécie de cerimônia, de rito de leitura para se chegar ao âmago dessa jornada.

Como havia dito, tenho algo para doar. O tal fato que carrega todas essas tentativas de nomear os vários títulos descritos na introdução, tem relação com o que ocorrera a mim, há muito séculos atrás. E isso talvez não poderei lhe dizer. Nem tudo é ou será dito. Existem rastros incompreendidos como os mistérios, os fenômenos que muitas vezes deixamos de entender.

O que se passa dentro de nós, neste lugar chamado Terra, e tudo o que inventamos e interpretamos, pode ser chamado de condição favorável ou não, dependendo da forma como organizamos a nossa linguagem em que, isto ou aquilo, diante das nossas experiências estéticas, vividas, em especial por nós, ou por nossos ancestrais, foram e são repassados através da cultura, das lendas, dos mitos, e, sobretudo, dos arquétipos. Nesta condição, entendo que os arquétipos advindos de nosso inconsciente coletivo podem ser definidos da seguinte forma:

"Archetypus" é uma perífrase explicativa do είδος platônico. Para aquilo que nos ocupa, a denominação é precisa e de grande ajuda, pois nos diz que, no concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos - ou melhor - primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos (JUNG, 2002, p.16).

Assim, como já lhe disse, estou na Terra há vários séculos, uns me chamam de a Ancestral, alguns me identificaram como um Demônio, outros me veem como a Mulher das

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Immanuel Kant, Filósofo alemão de 1724-1804, foi fundador da filosofia Critica, e autor da teoria de Experiência Estéticada Crítica da Faculdade do Juízo, autor este, estudado pelo Dr. em filosofia Eduardo Pellejero da UFRN, e professor da disciplina de Estética Filosófica, no qual fui aluna no ano de 2015, e que influenciaram meus estudos sobre análises artísticas.

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Plantas, tantos mais a Mãe Natureza; para inúmeros A Morta Viva, e diversos dizem que sou aquilo ou aquela que não tem forma e nem nome.

Aquilo ou aquela que não está moldada, a estranheza, a disforme, a sem contorno, o ou a Selvagem. Ficarei entre essas diversas denominações guardadas, atravessadas sobre o meu ser, aqui escolho neste momento, lembrando como já foi dito, tudo está em modo de impermanência. Um estado permanente do Devir, do Vir a Ser, como uma Selvagem, algo que não foi “domesticada ou domesticado”, já que o gênero aqui não importa, e sim a coisa em si. Falo da ideia da estranheza, do selvagem, do olhar do outro sobre a outra ou o outro, do colonizador sobre o colonizado, do homem Europeu sobre o Antropófago, do Selvagem sobre homem branco, no caso o olhar deles sobre esta que vos fala, o olhar desta para eles, e assim percebemos essas dicotomias claramente nas palavras da historiadora Maria Cândida F. de Almeida, pois, “Oposições como centro/periferia e selvagem/civilizado começam a ser desmanteladas em seu principio organizador que hierarquiza uma categoria diante da outra” (ALMEIDA, 2002, p.30).4

Não sei muito bem se já nasci Selvagem, ou se me transformei, entre muitos caminhos nesses séculos de vida, já ocorreram diversos momentos de provações da minha chamada Selvageria, mas foi uma dessas, que chega a ser indizível, que jamais esquecerei, o maior rito de passagem, que tive que ultrapassar. Contudo, não se preocupe minha vivente, disso o que não posso lhe dizer também está em ti, é aquela coisa que lhe fez arrancar a vida, e que morreste um tanto naquele momento para sobreviver e seguir ferida e depois se transformou nas marcas que trazem com aquilo que constitui o teu ser. Sabemos muito bem do que estou a dizer, não precisamos entrar em detalhes de nossas intimidades, cada uma ou um que leve consigo o seu indizível.

Mas a Selvagem que estou a dizer, foi há muitos séculos nesse país chamado Brasil, e que muitos de nós fomos confundidas ou confundidos, ou melhor interpretados para o olhar dos colonizadores como o Bom Selvagem ou O Selvagem Carnívoro ou Canibal, aquele que come gente. E é nesse ponto, do Canibal, do Antropófago, que quero lhe contar. Inicialmente,

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Maria Cândida Ferreira de Almeida é brasileira, Dra. em Literatura, historiadora. É uma pesquisadora do conceito de Antropofagismo de Oswald de Andrade, e que estendeu seus estudos trançando na sua obra “Tornar-se outro: o Topos Canibal Na Literatura Brasileira”, uma investigação minuciosa das influencias do Movimento Antropofágico na literatura brasileira, cultural e antropologicamente, no qual este trabalho foi a sua tese de Doutorado em Literatura Comparada pela UFMG em 1999, publicado como livro em 2002. E é um dos livros fundamentais para as investigações desta monografia e a ideia de Antropofagia.

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entender a origem da palavra Canibal, vem dos índios das Ilhas do Caribe, “Colombo... A todo momento se refere a linguagem de sinais; quando recebe as primeiras informações sobre os antropófagos que viviam na paradisíaca região do mar do Caribe...” (ALMEIDA, 2002, p. 40). E assim as primeiras interpretações dos Colonizadores ao povo desta Ilha do Novo Mundo foi com relatos de Cristovam Colombo como pode ser visto no livro “Tornar-se o outro: o topos canibal na literatura brasileira” da autora Maria Cândida F. de Almeida que ao investigar sobre as diversas perspectivas históricas, culturais e literárias, nos diz:

A palavra Canibal aparece no diário de Colombo associada a ciclopes ou cinocéfalos (homens com focinhos de cachorro): “y decían que no tenían sino un ojo y la cara de perro”, seguindo-se uma representação desses seres imaginários como antropófagos que foi muito divulgada durante a Idade Média (2002, p. 40-41).

Com isto, faremos um pequeno trajeto dentro de mim e depois daremos um salto no tempo, e chegaremos ao século XX, e encontraremos resquícios do que veio a ser o sujeito Canibal na cultura e na arte brasileira, de que maneira dos índios de toda a América Latina ficaram reconhecidos com a nomenclatura surgida na Ilha do Caribe, e se transformou num Movimento Artístico Antropofágico e desaguou no Tropicalismo e formando uma ideia de Identidade cultural do Brasil.

1.2 Eis Me Aqui! Entre Mim E O Outro, O Devir Antropofágico Nos Une!

Apodreço... Decompõem-me... Eis aqui meu estado, lamacenta, úmida, emaranhada, corroída, não! Meu caule, minhas penugens, ainda não é isso! São minhas folhas que estão a cair, mas ainda resistem do enterro de ontem, do enterro dos ossos, eis aqui uma sobrevivente, que vos fala é uma defunta, ainda não sei se morri, ou se tudo isto já aconteceu, ou se é delírio da noite de ontem, não estou morta de fato, esse peso, essa lama, essa aridez atravessando minha carne, meu caule, minha raiz, meus olhos, que por agora não consigo abrir.

Tento me mexer, mas há um volume da terra sobre mim, há um exagero lamacento, áspero. Novamente mexo algo, minhas raízes estão presas, numa pulsão de um estado de expansão e contração entre tripas, veias, líquidos... a morte me caiu! Não aquela da morte matada, mas da morte consumida. Consumi cada parte de vida que habita em mim, consumi com desejos, viagens, sonhos, consumi com incertezas, com desilusões, com rodopios, com ópio, éter, álcool, tabaco, cigarrilhas, charutos, perfumes, absinto, vodka, champanhe, água em abundancia que quase me afogou.

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Consumi me perdendo de mim mesma muitas vezes, e fui consumida pelos excessos. Sempre fui dos exageros, isso me matou mais rápido e profundamente, nunca fui rasa, nunca fui planta rasteira, ainda que me rastejei muitas vezes. Ainda não sei direito se tudo isto é fantasia ou só adereço, se não estou jogada na calçada pós uma noite de Carnaval embriagante, longa e voluptuosa, se estou completamente morta ou se ainda resisto viva. Está apertado, estou sufocada, quase sem ar, a glote estas quase a fechar, de repente o oxigênio está preso na passagem entre a vida e morte da garganta, ele é tão leve e se faz pesado e pressiona para sair. Se ele sair ficarei sem nada, se ele entrar poderá não mais sair, esse é o estado exato que me encontro no atrito de um ar que exige entrar como o último suspiro. Entrou, conseguiu penetrar, está a bombear e oxigenar meus órgãos... posso vir talvez a sobreviver, e recomeçar tudo de novo. Talvez, sem nenhuma certeza poderei contar para você ou para todos vocês o ocorrido da noite passada, dos dias vividos, talvez.

Minha carne está a espancar a terra ou é o contrário, a terra que está a me escalavrar as camadas, as folhagens. Minha raiz está entranhada e rizomática, é redemoinho de mim mesma, mas no movimento abrupto para sobreviver o ontem do enterro dos ossos, esqueceram que sou da terra, que vim dela, e é ela que me dá e me tira a vida. Caminho nela, por dentro e fora de mim... Você deve estar a pensar que isso tudo é devaneio de uma mente confusa, mas é, está turvo, não consigo ver, há muita areia em meus olhos, depois de camadas que persistem em me aterrar.

Logo acima da cova, e do monte arenoso, há um buquê de flores, são presentes daqueles ou daquelas que de alguma forma estiveram comigo; deixaram acima de mim um arranjo de Lírios virginais que remetem à inocência perdida, mas estupidamente reencontrada a cada erro cometido ao acreditar nos amores. Há também as Orquídeas para sempre lembrar da selvática, arbustiva indomada, erótica, flamejante, fogosa, sexual que se deixou levar e levou muitos e muitas ao ápice do gozo, à rigidez que jorra o líquido leitoso da forma rugosa e fina, trêmula. Há ainda as Dálias Mexicanas, do vale, de cores vermelhadas e alaranjadas, belas e de muitas camadas para despedaçar cada parte de mim em desventuras, sazonal, cíclica, e lascas. Não esqueceram das minhas plantas, minha mata verde, minha Casearia Sylvestris, ou guaçatonga5 de casa aberta, lenhosa, perene e volumosa, arbusto de cura, de uso

5 Biologia da reprodução de guaçatonga (casearia sylvestris sw., salicaceae), uma espécie medicinal artigo de

2010. Crasearia Sylvestres ou Guaçatonga, Casearia sylvestris Sw. ou guaçatonga é uma planta lenhosa, arbustiva ou arbórea, com folhas inteiras, de disposição alterna, em geral dística, com estípulas caducas encontrada especialmente nas regiões tropicais da América do Sul.

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indígena, para limpeza, purificação, saudação. Estão todas aí, enfeite pomposo, frágil e fúnebre... não me enterraram de qualquer jeito, me deram flores e plantas para sempre lembrar o que sou eu, para nunca deixar dúvida de toda a penitencia que acarreto em ser o que não fui. Estão todas aqui, as principais plantas, flores e arbustos, que permeiam quem ou o que eu sou, que por si só descreve a andarilha, e sim, há ainda a Rosa Vermelha da nudez encarnada.

O buquê está belo, colorido, tropical... Não sei se consigo alcançá-la, minha raiz está muito profunda para chegar ao caule e nas folhas, os vermes insistem em querer me comer, mas esqueceram de me tirar à vida por completo, ou não há fim para mim, só o recomeço. Estou exausta de tantos retornos, hoje é meu centenário octogésimo nono ano de vida, já não lembro com exatidão onde nasci, mas era algo entre as áreas de Istambul, em Terras Turcas, tive travessias pela Europa, até chegar na Espanha, caminhei pela Andaluzia, saltei nos salões e vielas, peguei um navio, cruzei o oceano e aportei no México, de lá até o Brasil, fui trilhando, cheguei na Ilha de Marajó, e fui descendo o litoral, minha caminhada é longa, extensa.

Mas só assim para me apresentar, eu vim de longe, vim de rodopios, vim de giros. Encontrei coisas, naturezas, bichos, sensações e pessoas, e parei aqui diante dos seus olhos, dos seus ouvidos e da sua boca. Deixe esse olhar em riste baixar e penetre em mim, como quem mergulha de cabeça na água, se embriaga ou distrai, correndo os olhos para o lado numa vaga lembrança que lhe puxa para longe daqui e voltemos aos seus treze anos de idade; o que aconteceu com seus treze anos, ainda lembra? Eu lembro da explosão de crostas em minha pele, lembro da melancolia, lembro da vergonha do corpo estranho que florescia, lembro da relva pubiana em excesso descontrolada, dos pelos em crescimentos nas cavidades das axilas, dos cabelos indomados e do sono profundo das tardes após os afazeres domésticos.

Ainda estou expelindo a terra da minha carne, ainda estou a lutar com os vermes, ainda estou a esfregar minha pele até expulsar cada grão de mim, esse movimento de contração e expansão é que me mantém. Tudo isto está vivo, a respiração é assim, a natureza, o ciclo, a terra, a vida, a narrativa que contrai e expele o clímax, os desenlaces da personagem. No caso aqui essa personagem sou eu, que se encontra extraindo uma força que vem do abdômen, do intestino, para se levantar lentamente com as poucas resistências que lhe sobraram após a noite de ontem, do seu enterro. O movimento começa das extremidades impulsionado pelo centro e vai ramificando cada caule, cada ponta dos dedos. Após as pontas

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dos dedos das mãos vem os dedos dos pés... O abdômen numa remada deitada virado para cima (de quem luta para ressuscitar); o tronco vagarosamente, empurra esse peso para frente, e as pernas se lançam de encontro aos membros superiores, como se no ato intencional de levantar, só conseguisse ter espasmos de abrir e fechar o corpo, como uma ostra, que abre e fecha, ou ainda como uma planta carnívora... e neste movimento é que se instaura um ressuscitar, da morta viva. E assim, esse ser que vos fala, cria um arquear do corpo num movimento repetidamente (como abre e fecha na horizontal) de pernas e troncos até que finalmente os braços ganham energia para romper o lamacento e sair em ristes levantados em suplícios de socorro. Nesse movimento de braços erguidos para frente e soltos no ar, esse corpo vai construindo uma partitura de súplica, ainda que deitada, até a sua exaustão, quando não puder mais suportar tantas vezes o mesmo movimento que vai ganhando variações em ritmo, peso, forma, volume, suor.

Essas palavras que remeto a ti são sobre devaneios, devaneios estes que ganham molduras, texturas, imagens, que se materializam para além das sensações e ganham um organismo, uma forma. Essa materialização da imagem ou do devaneio é trabalhada pelo autor Gaston Bachelard6, senhor que no meu tempo (quando andava pela Europa e cheguei a passar por Paris... caminhei por aquelas galerias, pontes) não pude conhecer pessoalmente, pois, já estava num navio que me trazia para a América Latina quando li seus escritos. E seu livro chegou às minhas mãos numa manhã cinzenta, fria, não em Paris. Conhecemo-nos na minha Andaluzia, era um belo rapaz francês curioso por minhas relvas, raízes, e flores. Naquela época eu ainda não cultivava a mata que viria a crescer mais tarde, ao adentrar por aquela que viria tornar se minha casa, a América Latina.

O rapaz esguio de penugem rala me presenteou com o tal livro, que eu trouxe comigo, era um amigo que me visitava e me falava dele encantado com seus estudos na universidade de Paris de Filosofia. Dizia ele que eu deveria estar na aula deste seu professor, mas como mulher não poderia... E ele dizia exatamente o que eu descrevia sobre como me sentia ao contar meus sonhos. Achava que de algum modo, eu já fazia aquilo sem perceber com meu corpo quando me via dançando. Eu dizia que mexia meu corpo conforme sentia a musica e as

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Gaston Bachelard, de 1884-1962, foi filosofo, poeta e autor francês e dentre várias obras, “A água e os Sonhos” e sua poética dos quatro elementos da natureza, terra, fogo, água e ar. Conceito este, que ele chamava, de “materialização das imagens”. Autor, que é um dos grandes referenciais e norteadores dos estudos do Arkhétypos Grupo de Teatro, e que este trabalho entre suas investigações também se baseia dessa ideia imagética e do conceito de mito pessoal arquetípica de Jung, outra abordagem que fundamenta aspesquisas do grupo e que contribuí para as minhas investigações sobre a minha figura de Mãe Terra, que cruza esta monografia sobre o “Teatro Ritual Antropofágico”.

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imagens que vinham em mim, e que às vezes me sentia um bicho e queria fazê-lo e fazia, e foi assim como na dança do Pavão, que ele falou - tens que ler este livro, carregue contigo nesta viagem, e não se esqueças de seguir dançando o Pavão. E na véspera de eu partir, ele deixou o livro deste senhor, o escritor filosofo Gaston Bachelard e seu livro “A Água e os Sonhos”, que vim durante a viagem lendo, e foi então que percebi o que este autor dizia sobre o que ocorria com meu corpo, meu movimento, meus devaneios, e assim de modo quase que avassalador, pude ver meus pensamentos ditos de modo tão preciso.

Neste momento tomo emprestada a pausa da personagem para continuar o que ela, eu, tento vos dizer. Gaston Bachelard, a partir de suas interpretações sobre os sonhos e devaneios nos diz que:

Antes de ser um espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica. Só olhamos com uma paixão estética as paisagens que

vimos antes em sonho: “a morte da água é mais sonhadora que a morte da terra: o sofrimento da água é infinito”. (1998, p.07).

Estas experiências oníricas e percepções Bachelard, chama de devaneios. Ele fala sobre a metáfora da água que primeiramente surge internamente e após se materializa. Partindo desta ideia das imagens como meios de composição para o jogo, o Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek em seu artigo: “A poética dos elementos e a imaginação material nos processos de criação do ator: diálogos latino-americanos”, nos diz que:

Nossas práticas laboratoriais se aproximam do que Gaston Bachelard chama de devaneios, pois quando adentra num processo laboratorial o ator é guiado geralmente por um estímulo sonoro e por uma imagem, improvisando ações e movimentos até encontrar a essência da imagem que está guiando o seu inconsciente. Nossos processos não seguem um viés racional, trabalhamos com a dimensão arquetípica da imagem e com as sensações físicas geradas a partir dela (HADERCHPEK, 2017, p. 2657). 7

“Eu comi Bachelard”, após ler seu livro, suas palavras, peguei as folhas e comi uma a uma suas palavras que desceram doce como mel e depois amargaram nas minhas entranhas até regurgitar; só assim pude seguir como meu devir de uma Sobrevivente Selvagem e Antropofágica, pois devorei esse e outras/os que atravessaram o meu caminho e me alimentaram na alma e na carne para chegar até aqui diante dos teus olhos.

7

Robson Carlos Haderchpek, Dr. em Teatro pela Unicamp, docente no curso de Licenciatura em Teatro e coordenador da Pós de Graduação em Mestrado da UFRN, e também coordenador e fundador do Arkhétypos Grupo de Teatro em Pesquisa e Extensão da Universidade desde de 2010. É pesquisador do Teatro Ritual desenvolvido em estudos, trabalhos, publicações, eventos e espetáculos junto ao Grupo Arkhétypos. Diretor do espetáculo Éter do qual faço parte como atriz e figurinista, e como bolsista pesquisadora.

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E assim, todos esses meus devaneios como podemos nomear, retornarão folhas e folhas mais à frente ou páginas como preferir, para lhe contar, sobre a imagem do Suplício. Imagem esta que permeia a composição da personagem dessa defunta que vos fala, desse ser que ainda não sabe se já fez a travessia ou se ainda está aqui discorrendo esses dizeres para ti. Gostaria de lhe contar que toda a aparência inicial da partitura corporal de Súplica e ao mesmo tempo se oferta em Sacrifício, foi inspirada na primeira imagem que eu (a artista que vos fala) trouxe na escolha das fotografias que representavam os quatro elementos da natureza: terra, fogo, água e ar. No caso específico da partitura de Súplica e Sacrifício, esta foi originada no elemento fogo, sobre o qual tratarei mais adiante.

1.3As Gotas de Suor da Semana de Arte de 22

Escorriam há algum tempo pequenas gotas de suor que encharcavam a minha nuca, escorriam pelas laterais de minha fronte da face, por entre os seios e outras dobraduras de minha pele. Ainda não sei direito o que provocara tais gotas, se eram os goles de champagne que desciam pela minha garganta e borbulhavam em calores e se transformavam em suores, ou se era o som da clarineta, do violão, do bandolim que suspendiam os nossos corpos, pois sim, não estava só. Estava acompanhada de um ramalhete de cavalheiros e senhoras, moças e rapazes que se divertiam no salão, e entre eles: músicos, poetas, bêbados, a alta sociedade, todos envolta desse grande baile. Entre esses seres, havia uma roda de queridos amigos, danças, gargalhadas, transpirações, salivas e conversas animadas daquelas que nos fazem esquecermos de quem somos, apesar de nunca termos muita clareza de sermos.

As gotas que eu tentara de maneira fracassada enxugar, exalaram demasiadamente com um rio, no exato momento que um dos amigos, que era um poeta, convidara a todos para irmos à semana seguinte ao Teatro Municipal de São Paulo para prestigiarmos a Semana de Arte, um evento com artistas da cidade, alguns deles vindos de suas estadias em Paris e dos ateliês de lá, trazendo as novidades do velho mundo, ou o passado. Pois, com o chegar dos navios que poderiam levar mais de um mês de travessias, as novidades já se tornavam notícia velha, porém nova para todos nós que estávamos sedentos, sempre ao tal novo, pelas ultimas novidades de Paris, de Londres ou qualquer outra capital europeia. Esperávamos com sede as novas invenções, as novas ideias dos Colonizadores, e nós aqui meros colonos a espera desse progresso que chegava com as tais novidades e produtos para vestir nossos corpos-mentes com o tal avanço.

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Esqueci-me de mencionar, talvez o calor e as gotas que pingavam de minha pele, não fossem apenas da novidade que chegara com o convite do amigo poeta, talvez fosse do Baile de Carnaval, pois era fevereiro, verão no Rio de Janeiro e dançávamos felizes e inebriados pelas marchinhas que penetravam todos os poros, pelos e raízes de meu corpo, explodindo nessas gotas que estavam a virar verdadeiros rios que me atravessavam, não havendo lenço fino bordado, engomado, branco que suportasse o êxtase da celebração e entusiasmos pelo que estava por vir.

Chegara o dia, era 11 de fevereiro de 1922, e lá fomos todos, após uma viagem de trem do Rio a São Paul. Acomodávamos-nos nas poltronas do Teatro Municipal, e quando nos primeiros instantes que assentavam todas as minhas partes para admirar o que vinha do palco, lá estavam artistas como Villa Lobos, os poetas Mario de Andrade e Oswald de Andrade, para suspender as partes que insistiam em querer se acomodar, e outras que se arrepiavam ou estranhavam tais artes, poemas e músicas oriundas do palco. Não estava certa ainda se gostava, não compreendia muito bem o que era aquilo, mas sentia algo estranho que provocava meus sentidos, e criava tensões e relaxamentos num conflito interno ao apreciar os trabalhos. Estava nos limites do gostar ou não, estranhezas me acusavam, talvez pelo desconhecido. Os artistas diziam que queria fazer algo novo, brasileiro, falavam, esbravejavam em discursos e todo nós, ali, admirados e chocados com as tais novas Artes Brasileiras.

Guardei essa mistura de prazer, espanto e novidade misturada às gotas que insistiam em pingar novamente, das minhas frontes, e passado seis anos depois aqueles poetas que havia conhecido no evento da Semana de Arte Moderna de 22, lançaram em 1928, um manifesto na Revista de Antropofagia, o Manifesto Antropófago. E pudemos todos ler numa tarde suas palavras que mais uma vez me suara estranha, mas gostava, já estava um pouco familiarizada. Lembrava-me com certo humor e reconhecia seu jeito espiritual de dizer as coisas, seja pelo evento de São Paulo, ou ainda na primeira parte da tal publicação em 1924 com o “Manifesto Pau Brasil”, o querido Oswald de Andrade junto com o poeta Mario de Andrade, vinham movimentando com ondas a cidade de São Paulo. A informação chegava até mim por andar com esse ramalhete de amigos, poetas e artistas das Noites da boêmia do Rio de Janeiro, e amigos queridos poetas liam o tal Manifesto Antropofágico. Ele vinha com a ilustração de uma pintura de um quadro da pintora Tarsila do Amaral, o Abaporu, quadro que diziam ser um símbolo do movimento Antropofágico, uma figura de pés grandes e cabeça pequena sentada perto de uma planta. Ainda não sei se gosto, mas me intrigara o tal quadro,

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era uma mistura de estranheza, curiosidade, “bicho papão”, algo meio animalesco e não humano.

Quadro “Abaporu” de Tarsila do Amaral, óleo sobre tela, medindo 85cm x 72cm, 1928.

“Pintei a partir das memórias das histórias de infância que ouvia sobre a figura de pés grandes e cabeça pequena contadas pelas empregadas nessa relação casa grande e senzala, pelas chamadas “mães pretas” que traziam o imaginário selvagem, animalesco e desconhecido” Tarsila do Amaral, 1928.

Essa figura ficou impregnada por dias no meu imaginário, que espécie de inspiração, visão a artista retirou a tal imagem? Indagações que passaram por dias na minha mente não menos que os dizeres esbravejantes do Manifesto que acompanhavam a obra, a imagem, ou se a imagem acompanhava o discurso. Parecia-me uma coisa só, forma e conteúdo juntos naquele impresso, naquela revista que atordoava nossos pensamentos. Guardo ainda suas primeiras frases do manifesto:

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Só a ANTROPOFAGIA nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente. Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos os individualismos, de todos os coletivismos. De todas as religiões. De todos os tratados de paz... Só me interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago (ANDRADE, 1928, p.1). 8

1.4 O Tropicalismo Deveras Me Alcançou

Estamos, ou melhor, eu estava, em mil novecentos e sessenta oito, anos sessenta do século passado, época de muitas transformações culturais, políticas, tecnológicas, conquistas, guerras, mais uma entre tantas que já nem me lembro mais. Mas, o que importa é ele, o

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José Oswald de Sousa Andrade, um dos fundadores do pensamento Antropofágico e autor do Manifesto Pau Brasil de 1924 e o Manifesto Antropófago de 1928. Ideias que influenciaram os artistas do Tropicalismo e entre eles, músico e compositor Caetano Veloso, que tornou em seu disco Tropicália, um marco na sua carreira e assumidamente tomado pelas ideais de um olhar para dentro da cultura Brasileira.

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movimento cultural musical, estético e nacional, com um nome que aprecio muito e fala um pouco ou bastante de minha persona, o movimento da Tropicália, ou Tropicalismo e sua canção emblemática, “Tropicália” criada pelo cantor e compositor Caetano Veloso, um dos artistas que representou de modo marcante e fulminante o olhar sobre esse país, o Brasil, no qual cheguei há tanto tempo, e já faço parte dele e ele de mim.

A canção escolhida e seu movimento podem descrever melhor o que se tornaria uma ideia de Brasil, brasilidade, brasileiro e brasileira, como esta que vos fala ou este. Já fui algo além do sexo feminino que me constitui e com o qual me identifico, mas isto é outro assunto sobre meus tempos remotos ou tempos ancestrais. Porém, também não vem ao caso neste momento; e mais adiante num futuro próximo lhe aproximo de meus tempos mortos.

Voltemos à ideia de Brasil, país em que cheguei há tempos, ou melhor, há centenas de anos e então, me tornei tão Brasileira, que minhas raízes frouxas e ciganas oriundas entre Turquia e uma África Arabesca se enroscam com as deste lugar, raízes estas, tão em estado de impermanência como eu, você e tudo à nossa volta. Tomo um trecho da canção para contar o que minhas palavras que não dão conta. A canção vai além de recortes de autores que podem definir muito melhor o que tento lhe dizer sobre mim e esta coisa, que chamam de Trabalho ou Projeto de Monografia. Eu só chamo de testemunho secular da minha história que se confunde com a ideia que se chama de Brasil e América Latina, de identidade, de persona, de culturas, de tornar-se o outro, de ser o outro, de estranhar e de ingerir para vir a ser, e com isto passo a palavra para eles e elas:

Quando Pero Vaz Caminha, Descobriu que as terras brasileiras, Eram férteis e verdejantes, Escreveu uma carta ao rei: Tudo que nela se planta, Tudo cresce e floresce. E o Gauss da época gravou. Sobre a cabeça os aviões Sob os meus pés os caminhões Aponta contra os chapadões meu nariz. Eu organizo o movimento. Eu oriento o carnaval. Eu inauguro o monumento no Planalto Central do país. Viva a Bossa, sa, sa,. Viva a Palhoça, ça, ça, ça, ça

(Letra de Caetano Veloso/ música de Júlio Medaglia, 1968).9

A escolha pela letra da música Tropicália para começar este trabalho veio como diz a música, anunciar o que está por vir em terras não “descobertas”, pois estas, já existiam e viviam aqui os Índios. Não foram descobertas pelo velho mundo ou melhor dizer, para Europa.

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Trecho da letra da música Tropicália, música homônima do Disco Tropicália do músico Caetano Veloso, lançado em 1968, e que nomeou o movimento Tropicalista e que influenciou a geração dos anos 60 e tornou-se um grande marco na cultua Brasileira.

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Essa canção, fala de chegada, de invasão, de uma terra saqueada há muito tempo, na qual sua natureza resplandecente é ouro e “tudo cresce e floresce”. Nessa clássica discrição sobre essa região, ou melhor, país, já está implícita a lei do menor esforço para retirar seus bens. Instaurou-se a ação de uma civilização exploratória que dizimou milhares de índios e escravizou milhares de homens e mulheres negros trazidos do continente Africano.

Essa parte da história do Brasil, nós sabemos em partes e oras bem distorcida desde sempre, pelas nossas origens culturais, genealógicas e contadas ou não em diversas versões com lacunas ou nem descritas em livros de histórias e/ou nas escolas, ou como descendentes diretos ou indiretos desses que aqui viviam. Na segunda estrofe, a canção nos convida a seguir nesse movimento, e nos “organizar” ou reorganiza para entender o Brasil, através de seus símbolos de brasilidades: o “Planalto Central” da música como o poder, a “Bossa Nova” como a musica exportação do “novo Brasil” modernizado e lançando como país para o mundo, e a palhoça como algo tão do interior, ligando o “litoral e o interior”. A música faz uma ode a uma contemplação ainda na segunda estrofe e percorre por essa canção e por todas as outras referências estéticas e culturais que seguirão por este trabalho, entre a ideia de Antropofagismo e o Teatro Ritual, ou o Antropofagismo Ritual. Sobre estas ideias que permeiam a definição desses nomes, falarei mais adiante, mas peço meu vivente, se é que me permite lhe chamar assim: meu, já que em tão poucas palavras despejo tanto de mim, e tu, já me doara tuas horas roubadas de um sono ou de lazer para estarmos juntos nessa caminhada, peço que siga comigo.

Então, voltemos ao Tropicalismo e ainda à canção “Tropicália”, por hora segue mais uma citação que afirma minhas falas que já não dou conta: “As estrofes são intercaladas por pequenos refrães festivos em que Caetano justapõe influencias conflitivas já apontadas por

Oswald de Andrade como o urbano e o rural: viva a bossa/ viva a palhoça” (CALVANI, 1998, p. 136)10. E ainda um pouco mais sobre a análise da letra, feita pelo

próprio cantor: “A mata” e a “mulata” de qualquer modo são duas entidades múltiplas e, posto que óbvias, misteriosas” (VELOSO,1997, p.185). A “mulata”, é preciso olhar com muito cuidado e de modo histórico pois, primeiramente entender a origem da palavra. Mulata, derivado de mula, do cruzamento do cavalo com burro, filhos/as nascidos das relações das escravas com seus senhores brancos. Ou seja, de um “cruzamento” em sua grande maioria de estupros e ou de uma imposição de um sexo indesejado. E assim durantes os séculos foi se

10 Carlos Eduardo Brandão Calvani, em seu livro “Teologia e Mpb” de 1998, fez um estudo sobre a importância

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constituindo o país miscigenado que depois tornou-se o que identificamos como dado cultural e rico do Brasil. Porém as custas de exploração de suas riquezas ditas e do seu povo: das matas, das negras e das mulatas, três aspectos ligados a ideia de um feminino, que sofre até hoje uma invasão viril, abusiva, violenta à a favor de uma ideia de produto exportação e exploração pelo capital. De dominação e de exploração. Postas como “óbvias e misteriosas” de modo que observo como uma visão poética e política refletido pelo cantor.

Capa do disco do Caetano Veloso - Tropicália, 1968. Capa do Disco Tropicália Du Panis Et Circencis, 1968. Ler a Cultura brasileira à luz da antropofagia é expor os momentos de emergências dos conflitos advindos dos contatos entre as culturas formadoras, do qual se serviram os textos literários, as artes plásticas e o cinema. Mais do que oposições dicotômicas do tipo cultura/natureza, civilizado/selvagem, tecnologia/sobrenatureza, a dialética da identidade brasileira requer a multiplicidade, para o que contribuíram diferentes disciplinas, especialmente a antropologia brasileira contemporânea (ALMEIDA, 2002, p. 22).

Essas características demarcam e inauguram o movimento Tropicalista assim como a canção inaugurada dando nome ao movimento artístico. Já o nome Antropofagismo Ritual ou Ritual Antropofágico, parecem um pleonasmo, pois duas nomenclaturas para falar do mesmo conceito, mas simbolizam um de Rito de passagem, ações de contração e expansão.

Lembrei agora de um programa chamado Café Filosófico, produzido pela TV Cultura de São Paulo e exibido pela televisão em meados dos anos dois mil, e depois disponibilizado na rede através do canal do Youtube, no qual a convidada, a filósofa Viviane Mosé falava sobre Nietzsche: “que para o ser humano a vida é contração e expansão”. Noção que se ampliarmos expressa o pulsar do coração, da respiração, dos ciclos da natureza, vida e morte,

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e entre diversos aspectos das possibilidades de exemplos da vida, natureza selvagem ou humana.

Em um só pequeno trecho dessa escrita, podemos detectar: Nietzsche, Viviane Mosé,11Caetano Veloso, Tropicalismo, Filosofia, unidos pela a ideia de Antropofagismo. Antes de chegar ao movimento Antropofágico da semana Moderna de 22 e o Manifesto Antropófago de 1928 já era possível perceber as sugestões deste movimento de ingerir, mastigar, regurgitar, e os princípios do discurso do movimento Antropofágico de Oswald de Andrade, que nos anos sessenta explode com força no movimento do Tropicalismo. Referimo-nos à valorização da própria cultura com os exemplos dos artistas citados e os demais que estão por vir nessa jornada.

1.5 O Antropofagismo E As Suas influências No Meu Fazer Artístico

Aqui, mais uma vez ocorre a ideia de metalinguagem, na qual ora será a personagem ou persona mítica e ora a escritora do trabalho em questão, que se dirige ao/à leitor(a) como nas inspirações dos clássicos textos da literatura brasileira, numa espécie de diário, que influenciou a escrita performática em alguns trechos da monografia, produzindo uma outra forma de dissertação teórica para além dos moldes tradicionais da academia e dialogando com inúmeras outras escritas que enveredaram por esse estilo.

Seguirei chamando a Sobrevivente Selvagem, por vezes de personagem ou de persona mítica pensando a partir de uma ideia da mitologia pessoal. Ainda que a definição inicial de persona venha do grego para nomear as máscaras teatrais ou personalidades. E como na psicologia, também parte da ideia de máscaras sociais que construímos para vivermos no coletivo. Segundo Jung, encobrimos a nossa face verdadeira com a máscara da persona:

O espelho não lisonjeia, mostrando fielmente o que quer que nele se olhe; ou seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo, porque a encobrimos com Ά persona, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra a face verdadeira. (2002, p. 30)

Porém foram através dessas personas- máscaras, arquétipos ou mitologia pessoal que se revelaram muito da verdadeira face.

11 Viviane Mosé, Ms. e Dra. em filosofa pela UFRJ, psicóloga, psicanalista, poeta, artista, e autora de vários

livros e entre eles sobre o grande filósofo alemão Nietzsche, uma das suas maiores paixões e especialidades. Figura pública, foi criadora, apresentadora ou convidada de vários programas e entre vários, o citado aqui no texto, o Café Filosófico da TV Cultura de São Paulo, sobre filosofia, cultura e arte. Atualmente tem uma série sobre filosofia no seu canal do Youtube.

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Os personagens arquetípicos, são típicos deste tipo de processo em que o ator entra num “jogo ritual” passa a criar uma dramaturgia corporal a partir de si, a partir da sua mitologia pessoal. [..] Nesta fase de realização dos laboratórios os atores se colocam no “jogo ritual” e a partir deste jogo, são criadas as cenas e revelados os personagens/arquétipos que vão delinear a dramaturgia do espetáculo.(HADERCHPECK, 2017, p. 41)

Embora exista na visão de Jung uma “máscara” encobrindo o verdadeiro eu, são por essas máscaras-personas, arquétipos/ mitologia pessoal, no qual desvendaram muito das características que carrego enquanto pessoa e que me doo ao personagem. E é nessa troca de doação que se constituí esta personagem ou persona mítica. E dizer, que não farei aqui neste trabalho à diferenciação entre personagem e persona. Ainda que muitos outros autores, tais como Renato Cohen na Performance, que trazem outras perspectivas e conceitos.

E sobre a forma da escrita performática deste Diário, segundo o professor Dr. Alex Beigui do curso de Teatro da UFRN, em seu artigo sobre os estudos contemporâneos dos textos teatrais na cena, aponta semelhanças com um modo de escrita que este trabalho tomou em certos momentos. Com o intuito de performatizar a ação e rememorar o ato em si da figura (persona ou personagem), simultaneamente com a leitura e compreensão da ação-palavra-gesto:

Deparamo-nos com um diálogo de corpos e entre corpos que se instaura na linguagem, resultando em uma performance da palavra, cujo fim é dispor a personagem como modo e ato discursivo, através de sucessivos atos de fala. Percebe-se a criação de novos padrões textuais dentro do próprio sistema normativo, a exemplo das peças faladas de Peter Handke [...] (BEIGUI, 2011,p.04)

Alguns exemplos de autores e suas obras que usaram essa influência foram: Machado de Assis em seu “Memórias Póstumas de Brás Cuba”, Clarice Lispector em “Paixão Segundo GH”, Raduan Nassar com “Lavoura Arcaica”12

. Temos ainda o primeiro autor que instaura essa marca na escrita e na própria fala que a personagem ou persona mítica citava no início da construção de si mesma nos laboratórios da disciplina Atuação III: o poeta Augusto Dos

12 Raduan Nassar, escritor e romancista brasileiro e que lançou em 1975 o seu primeiro livro Lavoura Arcaica: “Lavoura Arcaica é um texto no qual se entrelaçam o novelesco e o lírico, uma alegoria poética da sociedade brasileira contemporânea por meio de um narrador em primeira pessoa - André, o filho encarregado de revelar o avesso de sua própria imagem e, consequentemente, o avesso da imagem da família. 'Lavoura' recebeu três prêmios - 'Coelho Neto' da Academia Brasileira de Letras; 'Jabuti' da Câmara Brasileira do Livro e 'Revelação' da Associação Paulista dos Críticos de Arte - além de uma adaptação cinematográfica em 2001”. Filme do diretor Luiz Fernando Carvalho que me fez chegar na obra literária com mesmo nome e que inspirou muito o modo de escrita performática no tom do eu lírico do primeiro capítulo desta monografia.

Referências

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