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Figura 01 – Cena do Filme “As Horas” do diretor Stephen Daldry de 2003(A Água).

Ao observar a turma, em sua maioria os atores falavam de dores, memórias e infância. Muitos eram do interior do estado do RN, e traziam angustias das épocas das secas na infância, a satisfação e alegrias quando chovia, liquidez, poços, açudes. Identifico uma espiritualidade ligada às águas, deuses e deusas. Praticamente todas e todos, de alguma forma acionaram através de seus universos pessoais as matrizes deste elemento água, e a partir desse primeiro encontro com o elemento, já se apresentavam as potencialidades através do Jogo

Ritual, numa relação de se deixar afetar e ser afetado por um dispositivo do elemento em questão e liberar o inconsciente coletivo e os arquétipos que perpassam pela água. Segundo Jung o inconsciente coletivo e seus arquétipos são:

Uma camada mais ou menos superficial do inconsciente é indubitavelmente pessoal. Nós a denominamos inconsciente pessoal. Este porém repousa sobre uma camada mais profunda, que já não tem sua origem em experiências ou aquisições pessoais, sendo inata. Esta camada mais profunda é o que chamamos inconsciente coletivo. Eu optei pelo termo "coletivo" pelo fato de o inconsciente não ser de natureza individual, mas universal; isto é, contrariamente à psique pessoal ele possui conteúdos e modos de comportamento, os quais são 'cum grano salis' os mesmos em toda parte e em todos os indivíduos. Em outras palavras, são idênticos em todos os seres humanos, constituindo portanto um substrato psíquico comum de natureza psíquica suprapessoal que existe em cada indivíduo. [...] (p.15) O significado do termo "archetypus" fica sem dúvida mais claro quando se relaciona com o mito, o ensinamento esotérico e o conto de fada. O assunto se complica, porém, se tentarmos fundamentá-lo psicologicamente. Até hoje os estudiosos da mitologia contentavam-se em recorrer a idéias solares, lunares, meteorológicas, vegetais, etc. O fato de que os mitos são antes de mais nada manifestações da essência da alma foi negado de modo absoluto até nossos dias. (p.17) [...] Para o primitivo não basta ver o Sol nascer e declinar; esta observação exterior deve corresponder - para ele - a um acontecimento anímico, isto c. o Sol deve representar em sua trajetória o destino de um deus ou herói que, no fundo, habita unicamente a alma do homem. Todos os acontecimentos mítologizados da natureza, tais como o verão e o inverno, as fases da lua, as estações chuvosas, etc, não são de modo algum alegorias destas, experiências objetivas, mas sim, expressões simbólicas do drama interno e inconsciente da alma, que a consciência humana consegue apreender através de projeção - isto é, espelhadas nos fenômenos da natureza. (2002, p.18).

Na minha historia, ocorreu uma dificuldade inicial, pois eu não tinha a imagem escolhida por mim, (cada aluno/a fazia sua escolha de imagem) para o primeiro exercício que foi eleita de memória cinematográfica a partir do filme americano “As Horas” do diretor Stephen Daldry. Como a imagem física da fotografia não estava lá só foi possível entrar no devaneio quando abandonei a imagem da cena do filme, no qual a personagem ficava deitada de lado em forma fetal numa cama de casal, de uma época dos anos cinquenta. A personagem era feita pela atriz Juliane Moore e havia um quarto inundado por água do mar. A personagem do filme está grávida e fica deitada no centro da sua cama de casal com uma das mãos sobre a barriga.

Essa imagem foi o pontapé inicial da postura do corpo. A partir de então ela me levou para as minhas lembranças da infância, para a praia do Recreio dos Bandeirantes na cidade do Rio de Janeiro, e para os mergulhos e desafios de chegar ao fundo, os caixotes, as imersões, o nadar, o entrar e sair do mar, as ondas, o corpo flutuante, o boiar, o tirar cada pé da areia fofa na água. Todas essas ações foram construídas em gestos, e com a repetição, restou a síntese de

entrar e sair do mar, e todo o meu percurso deve-se à imagem inicial do filme, que deixou de ser naquele momento apenas mais uma das diversas referências estéticas cinematográficas, e se transformou num material de inspiração para acionar todo um universo da infância, uma das relações que a água tem fortemente comigo.

Para Bachelard, a água tem muitos significados, ela traz a ideia de melancolia, tristeza, infinitude, profundidade; e em seu livro “A Água e os Sonhos”, ele nos aponta que: “Desaparecer na água profunda ou desaparecer num horizonte longínquo, associar-se à profundidade ou à infinidade, tal é o destino humano que extrai sua imagem do destino das águas (BACHELARD, 2002. p14)”.

Faço um recorte no momento presente desta monografia em dois mil e dezessete, e percebo ainda que a tal imagem foi importante sim para o começo, e que sem ela não haveria o desafio de como descolar da primeira ação que era estar deitada numa cama, passiva aceitando ser “engolida” pela onda, e sim reagir e criar um jogo criativo com este desafio. E contato que não haveria outra imagem que não fosse essa para o meu trabalho, pois o inconsciente faz caminhos, diversos e por vezes aparentemente sem sentido para chegar a um ponto final.

Esses caminhos são nossas jornadas, a “Jornada Do Herói”, termo emprestado do autor americano Joseph Campbell do seu livro “O Herói De Mil Faces”14no qual ele traça uma trajetória de começo, meio e fim, ao observar nas culturas, lendas, mitos, filosofia, psicologia, contemporaneidade, e nos diversos povos, as personagens que vão experienciar a jornada, que se divide nas seguintes etapas:

[...] o herói inicia uma jornada por um mundo de forças desconhecidas e, não obstante, estranhamente íntimas, algumas das quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo que outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao nadir da jornada mitológica, o herói passa pela suprema provação e obtém sua recompensa... pela sua própria divinização (apoteose) ou, mais uma vez se as forças se tiverem mantido hostis a ele...; intrinsecamente, trata-se de uma expansão da consciência e, por conseguinte, do ser (iluminação, transfiguração, libertação). O trabalho final é o do retorno. Se as forças abençoaram o herói... No limiar de retorno, as forças transcendentais devem ficar para trás; o herói reemerge do reino do terror (retorno, ressurreição). A bênção que ele traz consigo restaura o mundo (elixir) (CAMPBELL,1997, p.137).

14

Joseph Campbell, de 1904- 1987, mitólogo, escritor americano e autor dos livros “O Herói de Mil Faces” de 1949 e “O Poder do Mito” de 1988. Livros extremamente importantes para os estudos de mitos e lendas e que contribuíram imensamente para esta monografia.

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