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O núcleo da ideia de Tales parece ter sido mais desenvolvido, entre outras, pela escola epicurista. Epicuro e, mais claramente, Lucrécio apresentam, em suma, três

86Como, por exemplo, VELLEMAN, 2007, p. 85. Procurei refutar o posicionamento de Velleman em: VAZ, Lúcio. Sobre algumas objeções…, 2009.

87Como bem diz Wittgenstein: “[…] der Selbstmord ist sozusagen die elementare Sünde.” (Notebooks, 10.1.17). 88LAÉRCIO, Diógenes. Livro I, 35. Bayle (“Pyrrhon”, Dictionnaire, p. 108-9) atribui essa mesma opinião a Pirro.

argumentos e algo entre um argumento e uma prática: argumento da insensibilidade, da simetria, argumento da rotatividade natural e uma atitude de moderação no uso dos prazeres.

O que foi ulteriormente cunhado como argumento da insensibilidade consiste em afirmar que a morte nada significa para nós ou que não nos atinge, pois não poderia haver dano a quem não mais existe. Já muitas vezes repetida, a refutação mais cabal ao citado argumento lembra que é precisamente por nos privar da existência e de tudo o que ela pode conter de bom (ou de mal) que a morte não pode ser um evento nem um estado indiferente. Essa refutação não necessariamente implica que a continuidade da vida seja sempre positiva, mas apenas que ela não pode ser julgada de valor neutro para o próprio agente.

O argumento da simetria afirma que deveríamos ser indiferentes ao prospecto de nossa futura inexistência assim como o somos acerca de nossa inexistência prévia (antes do nascimento). Mainländer, sustentado sobre premissas semelhantes, conclui uma atitude diversa: nós não apenas não somos indiferentes ao nada futuro, nós o desejamos por havermos tido contato com ele, mais que isso, por termos sido o nada antes do nascimento89. Em direção oposta, grande parte das refutações ao argumento da simetria enfatiza a distinção entre os dois nadas e o fato de que nossas ações e afecções estão fortemente, irrefreavelmente voltadas ao futuro. Parfit acredita que a ausência dessa dimensão direcionada ao futuro é concebível, mas os exemplos que aduz como possibilidades são, a meu ver, facilmente interpretados como ainda envolvendo a futuridade. Eles consistem em casos de preocupações ou desejos sobre algo que teria ocorrido no passado: se uma amiga moribunda recebeu minha carta antes de morrer, se Van Gogh pôde obter algum sucesso ainda vivo e se não fiz alguma bobagem na noite de ontem enquanto estava bêbado. Em todos eles está presente um desejo futuro por saber, ainda que os fatos a serem conhecidos sejam passados. E ao terceiro acrescenta-se a preocupação egoística por eventos futuros (desejo de não ser multado por uma infração de trânsito já cometida e de não se prestar a chacotas por um comportamento ebriamente ridículo)90.

O argumento do que chamo rotatividade natural baseia-se na afirmação de que o mundo como um todo persiste sem alterações significativas e que a morte de um indivíduo,

89MAINLÄNDER, 1876, “Metaphysik”, 9.

901987, p. 174. Mais à frente (p. 183), Parfit distingue simpatia, que pode referir-se ao passado, de preocupação (concern), que sempre está apontada ao futuro.

qualquer que seja, nada representa a essa totalidade ou é um evento necessário à continuidade da infinita série de mutações dentro da natureza. Minha dificuldade em aceitar essas palavras esteia-se sobre o ponto de vista que, como já disse, é o do próprio indivíduo; ponto de vista que de modo semelhante opõe-se a outra forma de ver a totalidade, já não de uma natureza imutável e cíclica, mas da história humana, que mergulharia o que ora escrevo no esquecimento de milhões de anos. Assim, de um modo ou de outro, minha morte não é indiferente a mim mesmo, em que pese a indiferença ou preferência da natureza ou da história por ela.

Os três argumentos e, mormente, o segundo foram retomados e reformulados diversas vezes na história da filosofia. Entre esses diversos momentos de releitura, conta-se a argumentação de Schopenhauer contra a assunção pelo intelecto humano de um medo da morte que é natural, pré-reflexivo e instintivo91. No lugar da absoluta inexistência do composto atômico de que somos constituídos na visão epicurista, Schopenhauer coloca a Vontade92, sem consciência e sem individuação.

Acredito que há dois passos ou, antes, saltos na argumentação de Schopenhauer decisivos para se chegar à ideia de uma ilusão sobre a existência de sujeitos e à ideia de uma Vontade prévia e posterior às nossas vidas: primeiro, que é impossível que a coisa em si também esteja submetida ao tempo; segundo, de que o sujeito conhecedor está fora do que Kant chamara formas puras da intuição (tempo e espaço)93. Em negação ao primeiro, diria que a incognoscibilidade da coisa em si não nos permite avançar sobre o seu território a ponto de nem mesmo podermos dizer o que lhe falta94. Nossas vontades individuais e o mundo fenomênico são tudo a que temos acesso95.

Contradizendo o segundo passo, cabe afirmar que percebo minha consciência bem como meu querer fundamentalmente como deslocamentos e, por vezes, descolamentos

91SCHOPENHAUER. Die Welt…, II, kap. 41, 532-535; 545-547.

92Ao falar da filosofia de Schopenhauer usarei a palavra com inicial maiúscula para designar aquilo que, para ele, é a coisa em si; e com minúsculas, ‘vontade’ referir-se-á às manifestações individualizadas do querer. Deixo claro, entretanto, que essa forma de diferenciação não é utilizada pelo próprio filósofo, dado que em alemão todos os substantivos trazem sempre a inicial em caixa alta.

93SCHOPENHAUER. Die Welt als Wille und Vorstellung, I, Erstes Buch, §2.

94É particularmente claro em Die Welt…, II, kap. 18, p. 218, que Schopenhauer passa de “pode não ser a coisa em si” para “não é a coisa em si”.

sucessivos em relação aos fenômenos sentidos ou imaginados. A própria consciência é uma

ek-stase, como apontam Heidegger e Sartre. O que me parece particularmente reprovável na

feição que Schopenhauer imprimiu aos argumentos é a afirmação de que apenas o tempo presente é real96. Tal consideração vê como irrealidade a preocupação com o futuro, sobre a qual obviamente o medo da morte está calcado e que tem imensas dificuldades para lidar com a vinculação entre os agoras imaginadamente discretos97.

Quanto ao exercício de moderação, Epicuro e seus seguidores propuseram um comedimento nos desejos e nas paixões de forma a, entre outros objetivos, fazer com que criássemos uma retenção no desejo de viver. Podemos questionar igualmente a coerência interna das ideias de Epicuro e seus ideais: os epicuristas aquiesceriam que a insensibilidade pós-morte tem a mesma qualidade que a impassibilidade e a imperturbabilidade em vida, não indiferentemente descritas, mas positivamente almejadas? Se não, ainda que insipidamente imperturbável, uma forma de existência – tranquila, eu presumo – teria algum valor em confronto com a inexistência. Se há, para o epicurista, um objetivo na vida, é razoável inferir que há algum valor na vida (ou, pelo menos, em um tipo de vida) em oposição à morte.

Com o tédio, algo da apatia estoica ou epicurista parece ser alcançado, mas alguma forma de insatisfação do sujeito consigo mesmo diferencia aquele estado psíquico da almejada imperturbabilidade dos filósofos helenistas, sem que, em outra ponta, toque o aspecto repulsivo, o enojamento, onde habita a náusea98. Entediados, permanecemos temporariamente suspensos, na mente e nas emoções conscientes, do fluxo de desejos, objetivos e estímulos de primeira ordem. Mas esse estado aéreo pode se ver interrompido tão logo se ouça o clamor dos próprios órgãos, em geral, do estômago.

96SCHOPENHAUER. Die Welt…, I, §54, p. 384. Visão também compartilhada por Mainländer (1876, “Analytik des Erkenntnißvermögens”, 10).

97A solução de Mainländer (1876, “Analytik…”, 13-14) consiste em delegar à razão o papel de unir em uma linha imaginária a sucessão de presentes. Em outro trecho, Mainländer (1876, “Anhang”, p. 390) vê o que seria a forma do tempo, sem a intervenção da razão, como um “ponto fluente”, mas logo depois diz que “o tempo não é uma forma da sensibilidade”.

98Pelo menos, em O ser e o Nada, o modo como Sartre (1943, p. 404) define a náusea parece pouco diferenciá- la do tédio: “Cette saisie perpétuelle par mon pour-soi d’un goût fade et sans distance qui m’accompagne jusque dans mes efforts pour m’en délivrer et qui est mon goût […]”.

No documento Uma argumentação em torno do suicídio (páginas 42-46)