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III. Ruptura de ligamento cruzado cranial em canídeos – Revisão bibliográfica

2. Epidemiologia e patogénese

A RLCCr pode afectar animais de qualquer idade, sexo ou raça. Contudo, ocorre em raças grandes mais frequentemente do que em raças pequenas, verificando-se uma maior incidência em certas raças como rottweiler, bullmastiff, chow-chow (Whitehair & Vasseur, 1993), mastim napolitano, akita, são bernardo, retriever do labrador, american staffordshire terrier (Duval et al, 1999), o golden retriever (etc.). Quanto à variação rácica relativamente às propriedades físicas do LCCr, Wingfield et al, em 2000, estudaram e compararam as propriedades biomecânicas do LCCr do Rottweiler e do Racing Greyhound, concluindo que em proporção com o peso corporal, a resistência do LCCr dos Rottweiler é significativamente menor do que a dos Racing Greyhoud, sugerindo a predisposição dos Rottweiler para esta patologia, o que já se verificava epidemiologicamente.

A lesão do LCCr pode resultar de causas degenerativas e causas traumáticas. Estas duas categorias estão relacionadas, na medida em que se estiver em curso um processo degenerativo, o ligamento enfraquecido tem tendência a fazer pequenas rupturas, mesmo em resultado da actividade normal, acabando por rupturar totalmente com o tempo (Denny & Butterworth, 2000). Este será o caso da maior parte dos pacientes com RLCCr, que apresentam um quadro crónico, arrastado, sem história de trauma distinto. O estímulo iatrotrópico poderá ser a claudicação súbita, mas frequentemente estes animais têm história de claudicação recorrente e relacionada com o exercício (Slatter, 2003a). Em muitos destes casos o processo patológico primário encontra-se em curso nos dois joelhos, e uma grande percentagem apresenta-se à consulta com ruptura bilateral do LCCr, ou rupturam o LCCr do joelho contralateral no período de 1 ano (Fossum, 2002; Doverspike et al, 1993). Os processos degenerativos estão associados ao envelhecimento, especialmente nas raças grandes; a má conformação dos membros posteriores (straight rear limbs); e a artropatias imunomediadas (Denny & Butterworth, 2000).

Quanto ao trauma, pode lesar o LCCr qualquer movimento que contrarie a sua função (Denny & Butterworth, 2000), ou seja, a hiperextensão e rotação interna da tíbia (quando, p. ex., o paciente prende a perna numa vedação ou buraco), e o avanço cranial excessivo da tíbia (p. ex., aquando do contacto com o solo depois de um salto). Apenas um pequeno número dos pacientes apresentarão RLCCr puramente traumática, com uma história aguda e um evento traumático bem definido no qual tiveram origem os sinais clínicos (Slatter, 2003a). Nalguns destes cães ocorre avulsão da inserção óssea do ligamento, em vez de ruptura na sua substância propriamente dita. A avulsão da inserção tibial ocorre mais frequentemente do que a da inserção femoral (Hulse & Shires, 1985; Huss & Lattimer, 1994; Williams et al, 1997).

A RLCCr traumática aguda ocorre mais frequentemente em cães com menos de 4 anos (Bennett et al, 1988), enquanto que o quadro crónico de claudicação e doença degenerativa articular (DDA) aparece mais em animais com 5-7 anos (Singleton, 1969). Verifica-se uma tendência para os animais mais pequenos (<15kg) rupturarem o LCCr com uma idade mais avançada (>7 anos), comparativamente a cães de maior porte (Vasseur, 1984; Whitehair & Vasseur, 1993). O peso corporal parece ter, portanto, relevância na frequência e precocidade da RLCCr, sendo estas tanto maiores quanto maior for o peso (Duval et al, 1999; Whitehair & Vasseur, 1993).

A resistência do LCCr às tensões exercidas sobre ele diminui com a idade, o que está relacionado histologicamente com a perda da organização dos feixes de colagénio, e alterações metaplásicas dos elementos celulares (Vasseur et al, 1985). Verifica-se que estas alterações são mais pronunciadas e ocorrem numa idade mais precoce em cães de raça grande, o que pode ser uma explicação para o facto da RLCCr ocorrer mais cedo nestes animais. Estas alterações degenerativas, como parte do processo natural de envelhecimento, ocorrem em todos os animais, pelo que terão de existir outros factores envolvidos na RLCCr (isto é evidente devido à ocorrência de RLCCr traumática em animais jovens, com ligamentos aparentemente normais, que não apresentam processos degenerativos que justifiquem o enfraquecimento das estruturas ligamentosas). A má condição física foi implicada como um desses factores (Bennett et al, 1988; Hulse & Shires, 1985), na medida em que o desenvolvimento das massas musculares que suportam o joelho é extremamente importante na protecção das estruturas intra-articulares contra as forças exercidas sobre elas (Renstrom et al, 1986; Solomonow et al, 1987).

Muitos estudos clínicos reportam uma incidência maior em fêmeas do que em machos (Barnes, 1977; Denny & Minter, 1973; Gambardella et al, 1981; Smith & Torg, 1985). A mesma tendência foi confirmada por um estudo epidemiológico realizado por Whitehair & Vasseur, em 1993.

Figura 5 – Cadeia de acontecimentos despoletados pela lesão do LCCr, que culminam na

progressão da doença degenerativa articular, ou osteoartrite

Podemos dividir a lesão do LCCr em quatro grupos clínicos, com base na etiologia (Denny & Butterworth, 2000):

Ruptura do LCCr por trauma – É provavelmente a forma menos comum. A ruptura não está associada a processos degenerativos, e resulta da hiperextensão do joelho, ou da rotação interna excessiva da tíbia. Os doentes apresentam claudicação súbita.

Degenerescência do LCCr em animais velhos – É a causa mais comum de ruptura do LCCr. A idade mais frequente dos animais afectados é de 5-7 anos. Os Labradores e os Golden Retrievers são raças predispostas, assim como os animais obesos. A claudicação começa por ser insidiosa, o que sugere que inicialmente pode ocorrer uma ruptura parcial, e sofre uma pioria repentina quando o ligamento ruptura totalmente, o que pode ocorrer por trauma menor, ou durante o exercício normal. Nestes casos, geralmente, quando o animal é avaliado radiograficamente, artroscopicamente ou quando é feita a artrotomia, já são bem visíveis alterações resultantes de osteoartrite.

Ruptura do LCCr em animais jovens de raça gigante – Verifica-se uma degenerescência “precoce” do LCCr, que pode estar associada à conformação do joelho ou mesmo de todo o

Lesão do LCCr INSTABILIDADE ARTICULAR Sinovite Degenerescência da cartilagem articular Osteofitos periarticulares Fibrose da cápsula articular Lesão do menisco medial OSTEOARTRITE

membro posterior (Bennett et al, 1988). Quando avaliados, estes animais apresentam geralmente ruptura parcial do LCCr, associada a lesões crónicas de osteoartrite. A idade dos animais afectados varia de 6 meses a 3 anos. Entre as raças predispostas encontram-se o Rottweiler, o Bull Mastiff, o English Mastiff, o Labrador Retriever, o Golden Retriever, o São Bernardo, o Newfoundland e o Boxer.

Ruptura do LCCr associada a artropatias inflamatórias – O processo inflamatório causado por artrites imunomediadas e/ou artrites de causa infecciosa, pode levar a alterações patológicas do ligamento, fragilizando-o e propiciando assim a sua ruptura.

Existem ainda outros factores que podem predispor para a degenerescência do LCCr:

Inclinação excessiva do plateau tibial – aumenta o avanço cranial da tíbia e portanto o stress sobre o LCCr (Slocum & Devine, 1984)

Estenose do espaço intercondilar do fémur – aumenta a tensão sobre o LCCr por contacto com a porção medial do côndilo femoral lateral (Aiken et al, 1994)