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Escola Normal: educando mulheres para as funções de professora e mãe

CAPÍTULO III FORMAÇÃO DOCENTE NO BRASIL: HISTÓRIA, POLÍTICA E

3.3 Escola Normal: educando mulheres para as funções de professora e mãe

Pensar as questões que incidiram diretamente no processo de formação de professores no Brasil, nos leva a refletir sobre as transformações que influenciaram a sociedade como um todo. Pera melhor compreender esse é processo retroagir ao período colonial, onde a educação era função estritamente masculina, os alunos eram do sexo masculino e os mestres eram em sua maioria religiosos, resultado de uma herança portuguesa uma vez que eles trouxeram para o Brasil seus modelos de comportamento e dominação.

O modelo patriarcal, típico da cultura ocidental judaico-cristã foi difundido e enraizado em nossa cultura. Esse modelo de sociedade patriarcal determinava que as mulheres fossem subjugadas pelos homens da família: pelo pai, pelo marido e pelas regras elaboradas por estes117. O paternalismo mantinha o campo de ação das mulheres à esfera privada do lar e sua ação pública se limitava às atividades da igreja. Essas restrições fizeram com que a mulher se limitasse ao âmbito doméstico e à condição de mera reprodutora, permanecendo como objeto de domínio masculino. Em se tratando de educação, bastava-lhe aprender as primeiras letras e os cálculos aritméticos básicos que assegurassem as tarefas desempenhadas no lar.

Até o século XIX essa mentalidade perdurou em relação à educação, dando pouco valor à instrução feminina, reforçado pelo fato de que as normas sociais impediam as mulheres de ocupar cargos sociais e até mesmo desaconselhando-as de saírem desacompanhadas. Os pais, por esses fatores, preferiam educar suas filhas em casa com professores particulares ou clérigos, além dos parcos conhecimentos acadêmicos a elas ministrados, acrescia-se preferencia às prendas domésticas visando preparar as meninas para o casamento, o que acontecia em tenra idade. Nesse sentido, o real objetivo da educação feminina era preparar a mulher para o serviço doméstico e o cuidado com os filhos e o marido.

117 FREITAS, Maria Teresa de Assunção. Memória de Professoras: história e Histórias. Juiz de Fora:

Ao final do século XIX as estatísticas referentes à escolarização do povo, revelavam um grande índice de analfabetismo aumentando a preocupação com a educação da população iletrada. Na intenção de reverter o quadro, os intelectuais e governantes da época, em conformidade com os ideais republicanos, estimulam a criação de espírito de nação preparando os cidadãos para o trabalho livre. A proposta elencada para resolver os problemas que assolavam o país centraram-se nas reformas das instituições monárquicas representando o novo regime político e a nova organização do trabalho que se instituía.

Buscando reverter o quadro desolador em que se encontrava a educação no Brasil, vários temas se colocam em discussão para se alcançar as mudanças necessárias no campo educacional, dentre eles: a organização do ensino primário, da Escola Normal e a obrigatoriedade do ensino apresentam-se como essenciais para a difusão da escolarização em massa. No bojo dessas reformas, a organização da escola primária por meio dos grupos escolares, modelo educacional que abarcava um maior número de crianças, foi uma das maiores conquistas do final do século XIX.

Nesse novo contexto, a mulher é cogitada como educadora uma vez que, para reverter o quadro de analfabetismo que assolava a nação fazia-se premente a criação de escolas o que levaria também ao aumento da mão de obra tão necessária. Nessa nova configuração de sociedade que se proclamava progressista, com foco na regeneração nacional, havia a crença em um modelo de escola que domestica, ampara cuida e educa. Essa crença de remodelação da nação por meio da escola se prolonga pelas décadas seguintes e coloca nas mãos femininas a responsabilidade de guiar a infância e moralizar os costumes.

A figura da mulher atuante na escola-mãe que redime e encaminha para uma vida de utilidade e sucesso é esculpida em prosa e verso. Nessa visão constrói-se a tessitura mulher-mãe-professora, aquela que ilumina na senda do saber e da moralidade, qual mãe amorosa debruçada sobre frágeis crianças a serem orientadas e transformadas [...]118

Neste cenário, a imagem da mulher professora é utilizada como coadjuvante em uma política que apresentava a escola como transformadora de consciências.

118 ALMEIDA, Jane Soares de. Mulheres na Educação: missão, vocação e destino? In: SAVIANI,

Por outro lado, a inserção feminina num espaço profissional representado pela educação da infância, pressuposto das primeiras décadas do século XX, foi também palco dos primeiros movimentos pela liberação feminina.

Algumas conquistas femininas foram efetivadas nas primeiras décadas do século XX como o acesso da mulher ao ensino superior e à algumas profissões, porém os ideais sociais estabelecidos nos séculos anteriores em relação às mulheres permaneceram por longo tempo, impregnando a mentalidade brasileira moldando um modelo de mulher com base nesse perfil.

A necessidade de universalização do ensino por meio da ampliação da escola primária se aliou a necessidade de dar destino profissional às jovens de baixa renda, fazendo com que se investisse na criação de cursos preparatórios de formação representados pelas escolas normais119.

Neste contexto, o magistério era o caminho possível para a maioria das mulheres brasileiras, principalmente para aquelas das camadas médias da população, pois no Brasil, até os anos de 1930, era o único trabalho considerado digno para o sexo feminino; além de digno era o que possibilitava ser atrelado às tarefas domésticas que teriam que ser desempenhadas por elas no lar120. Como a

instrução da mulher deveria ser aproveitada pelo marido e pelos filhos, essa instrução deveria estar direcionada às atividades que tivessem consonância com as do lar.

Parece-nos que fica implícito que a posição dominante na escola esperava formar uma jovem com religiosidade, obediente aos superiores e às leis, recatada; uma professora bem preparada para exercer suas funções, ou seja com domínio do saber escolar, habilidades técnico pedagógicas e dedicação quase maternal a seus alunos.121

No município de Ituiutaba, MG, onde esta pesquisa se insere descubro que, esse currículo visando a formação da normalista aliada à formação da esposa e mãe perdurou bem mais que a década de 1930. Os depoimentos das alunas Diniz e Ribeiro, referente ao Curso Normal do Instituto Marden na década de 1950, em Ituiutaba, confirma um currículo apropriado à formação da mulher-mãe-professora.

119 Ibidem, p. 71.

120 ALMEIDA, J. S. de. Mulheres na escola: Algumas reflexões sobre o magistério feminino. Cadernos de Pesquisa. São Paulo, n. 96, p. 71-78, fev., 1996.

121 LOURO, Guacira Lopes. Prendas e antiprendas: educando a mulher gaúcha. Educação e Realidade, Porto Alegre, v.11, n.2, p.25-56, jul./dez. 1986.

Eu me lembro até hoje, para aprender a fazer as roupinhas de neném, enxovalzinho. Todas nós tínhamos de fazer o enxovalzinho do neném, em miniatura. Pregava no álbum, ficava bonitinho até. É, na aula de trabalhos manuais com a dona Sara Feres. A dona Sara feres com esses manguitos (risos) As roupinhas, os palitózinhos, touquinha, fazia o sapatinho. Tudo de neném. Fazia um enxovalzinho de neném. De certo era do currículo não é? Tinha que fazer (DINIZ, 2014)122.

E o Doutor Petronio pulricultura. Foi com ele que fomos nessa casa, ela deu banho no neném, com é que você segura o neném na bacia para você lavá-lo, depois ela amamentou o neném. Uma pessoa da sociedade, pessoa conhecida dele e que não sentiu timidez em fazer isso perto da gente. Dez alunas, aula prática de puericultura (DINIZ, 2014)123.

O ensino normal desse tempo, ele preparava a aluna para casar. Para ser dona de casa. Sabe? Então, tinha aula de... Artes Aplicadas, tinha aula de economia domestica também sabe? Aí esse eu gostava, mas a parte de costura, Deus me livre eu não gostava não [...] Ensinava a fazer fraldinha de bebê. Porque nesse tempo não comprava, não tinha fralda descartável. Então ensinava a fazer bainha nas fraldinhas, sabe? [...] Professora falava: _Nós vamos debruar. Era fazer um acabamento nas flanelas. Eu falava:_ Eu estou debulhando a flanela (risos) Não gostava de jeito nenhum. Música e Canto era comigo. Eu sempre gostei de cantar, gostava muito de cantar, até hoje ainda canto (RIBEIRO G., 2014)124.

Havia uma corrente. Engraçado, que o Curso Normal preparava professores e preparava as mães. Se você quer ser professora, você vai fazer Normal. Também se você quer ser mãe você vai fazer Normal. Porque você vai aprender a educar seus filhos. Era a corrente. (DINIZ, 2014)125

A inserção das mulheres no mercado de trabalho, apesar das dificuldades, foi sendo alcançada gradativamente, uma vez que o contexto sócio cultural da época, que rejeitava o trabalho assalariado, estendeu esse preconceito para o magistério. O preconceito expresso socialmente contra o magistério feminino centrava-se menos na profissão do que no trabalho assalariado que, para a mentalidade ainda impregnada do colonialismo, estava cercada de certa vergonha, mais apropriada para as classes mais baixas. Em contradição à visão de magistério como trabalho assalariado, estava a ideia de que, para as mulheres, o fato de receber um

122 DINIZ, Maria Mirza Cury. Ituiutaba, Ituiutaba, 15 de janeiro de 2014 (81 min.). Arquivo digital.

Entrevista concedida a mim.

123 Ibidem.

124 RIBEIRO, Georgia Maria Finholdt. Ituiutaba, 27 de janeiro de 2014. Arquivo digital (65 min.).

Entrevista concedida a mim.

125 DINIZ, Maria Mirza Cury. Ituiutaba, Ituiutaba, 15 de janeiro de 2014 (81 min.). Arquivo digital.

pagamento para ser professora fosse mascarado pela nobreza de uma missão a ser desempenhada ou mesmo da ideia de sacerdócio.

O discurso educacional passa a ser em prol de uma educação dos sentimentos, de doçura, caridade, solidariedade e abnegação, é preciso ter vocação para o magistério e as mulheres são as eleitas, uma vez que já possuem vocação para a maternidade. Essa idealização do papel do professor foi chegando às mulheres para quem o trabalho na esfera pública surgia como uma nobre missão, uma extensão de sua função maternal.

Com a ampliação do processo da industrialização e urbanização do país, aumenta a demanda pela escolarização, surgindo os primeiros movimentos de reivindicação popular por escolas que influenciarão o sistema educacional, provocando a expansão da rede pública e o debate sobre a redefinição do papel de escola. A Escola Normal nesse contexto se afirma e se consolida, sendo frequentada cada vez mais por mulheres de classe média. Grande parte das normalistas não seguia a carreira de professoras, mas adquirir o diploma trazia certa segurança, garantia para um futuro incerto e status social. Ribeiro reforça em seu depoimento: ―Agora da minha turma poucas foram professoras, não eram todas. Muitas estavam ali eram meninas ricas, e tudo. Estavam ali para ter um diploma. Sabe? Então a maioria não foi professora‖126.

A mesma ideia estava presente no discurso de alguns professores, que expressavam a indicação de que as mulheres, apesar da formação docente deveriam permanecer no lar, cuidando da casa, da cozinha e da família, o depoimento de Moraes confirma: ―Ele brincava conosco (referindo-se ao professor de química), com as meninas, e falava assim:_ A química de mulher é ir para a cozinha, fazer bolo, fazer comida gostosa‖127.

O pensamento da sociedade Ituiutabana não se diferiu do restante do país quanto às opções femininas de formação e de qualificação para o trabalho. Se, nas décadas anteriores, a prioridade era a formação que preparasse a mulher para ser esposa, mãe e dona de casa, nas décadas de 1950 e 1960, período no qual algumas das depoentes desse estudo estudaram na Escola Normal, é acrescida a

126 RIBEIRO, Georgia Maria Finholdt. Ituiutaba, 27 de janeiro de 2014. Arquivo digital (65 min.).

Entrevista concedida a mim.

127 MORAES, Vera Cruz de Oliveira. Ituiutaba, 29 de janeiro de 2014. Arquivo digital (56 min.).

essa formação um novo papel: era a oportunidade que muitas jovens tinham de ter uma profissão que permitisse além dos cuidados no lar, completar a renda familiar dos maridos que estava sendo insuficiente devido ao capitalismo. Pimenta afirma,

Ou, como ocorreu sobretudo nos anos 50 e 60, quando a mulher começou a ter necessidade de completar a renda familiar, uma vez que o trabalho dos maridos foi sendo deteriorado no cerne do capitalismo brasileiro. O exercício do magistério então se coadunava com o trabalho doméstico.128

Os depoimentos de Araújo referente à década de 1950 e Resende à década de 1960 deixam claro que era a profissão mais difundia e aceita, não só pela sociedade tijucana, mas também pelas moças da época.

Mas havia poucos da parte masculina que estudavam. [...] Ficava mais a cargo das mulheres. Quando falava professor, todo mundo já achava que professor tinha que ser só do sexo feminino. Hoje não.129

Interessava mesmo fazer o curso normal, lecionar era a proposta da época para a moça, era mais a Escola Normal não é? Aí a gente foi fazer a escola Normal, a opção que tinha aqui era a Escola Normal. Todo mundo fazia a Escola Normal e logo casava, e assim a gente fez.130

Por tratar-se de uma região onde a economia ainda baseava-se na agricultura e na pecuária, muitas famílias, principalmente dos grandes fazendeiros, tinham suas residências localizadas na zona rural e encaminhavam seus filhos e filhas para estudarem na cidade, muitas vezes, morando nos internatos disponibilizados pelo Instituto Marden e pelo Colégio Santa Teresa. O depoimento de Faria expressa a diferenciação dada pelas famílias em relação à educação dos filhos e a educação das filhas,

Foi automático. Foi automático! Terminou o ginásio, o que tem no Santa Teresa é o magistério; é o magistério! Porque o papai por ser um homem assim avançado pela época, queria que os filhos estudassem, que tivessem um curso superior e tudo mais. Mas ele, ainda em relação às filhas, ele era muito machista. Então o curso que ele via para as filhas era através do magistério. Então automaticamente, não foi uma escolha, aconteceu. ―Irmã Letícia, o que tem aqui? Terminou o ginásio, o que tem aqui para minha filha?‖

128 PIMENTA, Selma Garrido. O estágio na formação de professores: unidade, teoria e prática.

Cortez: São Paulo, 1994, p. 33.

129 ARAUJO, Ester Majadas. Ituiutaba, 13 de janeiro de 2014. Arquivo digital (50 min.). Entrevista

concedida a mim.

130 RESENDE, Maria Terezinha Pereira. Ituiutaba, 30 de junho de 2014. Arquivo digital (36 min.)

―Tem o Magistério‖. Então ela vai continuar aqui. Pronto e acabou. Ninguém nunca me perguntou o que eu queria fazer.131

A professora Diniz também não teve a chance de optar por fazer outro curso que não fosse o Curso Normal. Enquanto os irmãos foram para Uberaba fazer um curso que preparasse para o ingresso em curso superior, ela precisou permanecer na cidade junto à família:

Eu não tinha outra opção, aqui em Ituiutaba não tinha. Na verdade, a minha paixão naquela época era fazer Medicina, eu queria fazer Medicina de qualquer jeito. Mas como fazer? Sou de uma família numerosa, uma família de seis homens e três mulheres, uma família Árabe que achava que os homens tinham que fazer. Meu pai tinha uma meta na vida. E ele falava isso e isso ele cumpriu. Que todos os filhos dele fariam curso superior. Todos. E ele conseguiu, Andreia. Porque ele tinha uma lojinha e depois teve o hotel Central, aqui em Ituiutaba só tinha curso ginasial, tinha que mandar os filhos todos para fora. Então meus irmãos foram todos para Uberaba fazer curso científico. Fizeram ginásio aqui, foram fazer cientifico em Uberaba e lá eles fizeram curso superior na escola do Mário Palmério, hoje a UNIUBE. Eu não tive opção!132

A opção pelo magistério, feita comumente pelas jovens ituiutabanas e/ou suas famílias fez com que o município, até o final da década de 1960, contasse com um número de cinco instituições oferecendo o Curso Normal. A consequência mais importante desta disseminação das Escolas Normais pelo país e pelo município de Ituiutaba foi a formação definitiva de uma categoria social com uma forte identidade profissional, a dos professores/as primários, ou normalistas, se contrapondo aos professores/as leigos, que não possuíam habilitação para o exercício da profissão.

No próximo capítulo, fundamentado nos depoimentos colhidos, nas publicações da imprensa e documentos oficiais, apresento o município de Ituiutaba e as escolas de formação de professores.

131 FARIA, Sônia Correia. Ituiutaba, Ituiutaba, 11 de fevereiro de 2014. Arquivo digital (45 min.).

Entrevista concedida a mim.

132 DINIZ, Maria Mirza Cury. Ituiutaba, Ituiutaba, 15 de janeiro de 2014 (81 min.). Arquivo digital.