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9 A LÍNGUA ESCRITA

9.4 Escrita e documento de arquivo

A escrita é uma ferramenta com múltiplas aplicações que vão desde áreas como a literatura artística e científica até manuais profissionais ou não. De qualquer forma, é um elemento fundamental para o auxílio ao registro da memória individual e coletiva,

Nós nos armamos contra a transitoriedade implícita na mortalidade da memória por meio da criação de memórias artificiais. O mais antigo auxílio à memória é a escrita; na antiguidade em argila ou placas de cera, na idade média em pergaminho e velino e, mais tarde, em papel. (DRAAISMA, 2005, p. 21).

Nessa seção, são exploradas suas relações com o registro do conhecimento humano para a manutenção da memória social a longo prazo através do conceito de documento de arquivo.

Com relação ao tipo fundamental de conteúdo, os documentos em geral e também aqueles considerados de arquivo podem ser classificados entre imagens fixas ou em movimento, som e textos. Há várias combinações possíveis a partir dessa classificação,

principalmente se for considerado o universo dos documentos digitais. Em qualquer caso, os documentos textuais ou basicamente textuais, cuja mensagem pode ser transmitida por uma língua na forma escrita, ainda são os mais comuns. E isso é facilmente observável no mundo real.

Em terminologia arquivística um "documento textual" é um gênero documental "reunião de espécies documentais que se assemelham por seus caracteres essenciais, particularmente o suporte e o formato, e que exigem processamento técnico específico e, por vezes, mediação técnica para acesso" (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p. 99). Documentos incluídos no gênero "documento textual", ainda de acordo com a terminologia arquivística, são "manuscritos, datilografados ou impressos, como atas de reunião, cartas, decretos, livros de registro, panfletos e relatórios” (ARQUIVO NACIONAL, 2005, p.79).

Os documentos textuais são os mais comuns quando o objetivo é utilizá-los para análises históricas "A moderna ciência histórica, baseada na crítica factual do documento escrito, surgiu, justamente, como resultado da ação de classicistas e estabeleceu os termos da análise textual tradicional" (FUNARI, 2003, p. 15). A supremacia dos documentos textuais históricos hoje é função do fato de que os documentos com imagens (fotografia), cinema e o som começaram a aparecer apenas no final do século XIX, na esteira do desenvolvimento tecnológico ocorrido naquele período.

Normalmente, os documentos textuais históricos são objeto de estudo da disciplina história, com a arquivologia atuando na tarefa de sua organização, preservação e disponibilização, mas a memória associada aos documentos históricos é abordada por várias disciplinas: “com efeito, essas três áreas (arquivologia, biblioteconomia e museologia) valem- se da memória no sentido de armazenagem e preservação dos saberes (conservação), para a posterior recordação por parte da sociedade” (MONTEIRO; CARELLI; PICLKER, 2006, p. 115).

A língua escrita é limitada em relação à língua, todavia registra elementos suficientes para análises da cultura e vida social de uma sociedade. Na medida em que se tornou mais sofisticada e utilizada na sociedade (letramento), a escrita cada vez é mais útil nessa tarefa de reconstituição da história:

Todas as línguas mudam e se desenvolvem no curso do tempo, mas só as línguas escritas carregam os registros de seu próprio passado, registros que podem ser inspecionados, referidos como exemplos, idealizados, citados literalmente, falsificados, canonizados, condenados como "tirania", traduzidos. (COULMAS, 2014, p. 41).

O documento de arquivo, especificamente em relação aos demais tipos de documentos, possui uma característica única quanto à preservação da memória4. É sua relação com os demais documentos de arquivo que compõem um determinado arquivo. De fato, a definição de documento de arquivo pode simplesmente remeter ao conceito arquivo5, de tal maneira que o resultado total para a preservação da memória é uma sinergia de um conjunto documental (arquivo). Nessa linha de pensamento,

O documento arquivístico é um artefato humano com pressupostos e características específicas. O ambiente e o conteúdo são delimitados e definidos pelo sujeito acumulador, que pode ser uma pessoa física ou jurídica. Então quando falamos de arquivo, estamos nos referindo a um conjunto finito de documentos acumulados, que tem suas fronteiras demarcadas pela missão do criador, no caso das instituições, e pela área de atuação, no caso das pessoas físicas. Ao contrário daqueles encontrados em bibliotecas, por exemplo, os documentos arquivísticos não constituem um conjunto formado em vista de uma finalidade específica: eles representam, mais que tudo, o produto da atividade do sujeito criador. (SOUSA, 2007, p. 113).

Cabe aqui uma distinção importante para os documentos de arquivo. O que se denomina no Brasil documento de arquivo corrente a literatura em inglês chama de records. Da mesma forma, o documento de arquivo de guarda permanente é conhecido em inglês por archive document. Essas distinções são importantes, pois, em qualquer idioma, a teoria identifica fases do documento de arquivo, desde sua produção (fase corrente) até sua guarda definitiva (fase permanente).

Apesar de polêmico, do ponto de vista de alguns autores que consideram que TODO documento pode conter ou ajudar a manter a memória cultural, considera-se que os documentos de guarda permanente são os "mais importantes" para a função de preservar a memória. Ao longo desta pesquisa e de seu escopo, quando se trata de documentos de arquivo, consideram-se especificamente aqueles de guarda permanente ou Archive Document.

A escrita não é usada apenas nos documentos textuais. Ela também é utilizada para registrar informações sobre documentos, textuais ou não. Mais adiante, será abordada em detalhes esta situação: a representação das informações registradas em documentos. Por ora, é importante chamar a atenção para esse fato, uma vez que a escrita acerca das informações registradas será fundamental para o problema de pesquisa.

4No caso brasileiro e também no de vários outros países, a função de ajudar a preservar a memória cultural é tão

evidente para documentos de arquivo que há legislação nacional apoiando esse papel. Vide coletânea de legislação de arquivo disponível no sítio do Arquivo Nacional brasileiro.

5De fato, é assim que ocorre, por exemplo, no Dicionário Brasileiro de Terminologia Arquivística

(ASSOCIAÇÃO DOS ARQUIVISTAS BRASILEIROS, 1996).

No caso do documento de arquivo, a representação dos documentos e de seus "conjuntos documentais" ocorre através de catálogos, inventários e guias (AGUIAR, 2008). Talvez a característica mais diferenciadora desses "produtos de representação" seja o objetivo de contextualizar os documentos em relação às instituições que os produziram. Sobre isto:

A descrição arquivística é o processo em que o arquivista cria representações de um determinado acervo arquivístico, apresentando seu contexto e conteúdo. É uma atividade intelectual que demanda competências de interpretação de texto, conhecimento histórico e habilidade para redigir descrições dos acervos. O objetivo é o controle dos documentos arquivísticos, tendo em vista a promoção do acesso. (SILVA; ORRICO, 2013, p. 211).

Atualmente, as atividades de descrição arquivística são regradas por normas internacionais, as quais no caso brasileiro possuem equivalentes publicados por nosso Arquivo Nacional6. A norma de descrição arquivística mais conhecida é a Norma Geral Internacional de Descrição Arquivística, mais conhecida pela sigla original (ISAD-G). Uma característica desta norma é a descrição multinível, que significa a descrição do todo de um acervo de documentos de arquivo em relação a uma instituição específica (fundo) e abaixo deste nível outros tantos quanto se exigir e for possível exaurir a descrição desse referido fundo. Há várias regras, obrigatórias ou não, áreas e campos a serem seguidos a fim de obter padronização internacional e melhores condições de acesso aos documentos de arquivo descritos,

Elementos de informação específicos sobre documentos de arquivo são registrados em cada fase de sua gestão (por exemplo, criação, avaliação, registro de entrada, conservação, arranjo) se tais documentos devem, por um lado, ser preservados e controlados com segurança e, por outro, ser acessíveis no tempo oportuno a todos que tenham o direito de consultá-los. A descrição arquivística no sentido mais amplo do termo abrange todo elemento de informação, não importando em que estágio de gestão ele é identificado ou estabelecido. (CONSELHO INTERNACIONAL DE ARQUIVOS, 2000, p. 11).

No entanto, a descrição arquivística que interessa é aquela aplicada a documentos de guarda permanente, que, do ponto de vista das normas de descrição ISAD(G), é a mesma descrição aplicada a qualquer documento de arquivo, independentemente de sua avaliação como permanente ou não. Outras normas também complementam a ISAD(G) com aquelas aplicáveis à descrição de pessoas e autoridades.

6No endereço eletrônico específico para publicações do Arquivo Nacional, pode-se ter acesso gratuito a todas as

normas internacionais (em português) para descrição arquivística <http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/publicacoes_.html#>.

A descrição de documentos de arquivo também pode se harmonizar e ser tratada juntamente com outros tipos de documentos (de outras áreas) como biblioteca e museu. O projeto de organização da história da energia elétrica no Estado de São Paulo (com documentos do final do século XIX a meados do século XX) ilustra esta possibilidade. O projeto também utilizou princípios das normas internacionais de descrição arquivística (LIMA; VITORIANO; BARBANTI, 2015).

Ainda se falará sobre o documento de arquivo e sua descrição na seção que trata de representação da informação, na revisão de literatura.