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CAPÍTULO 1 – A paisagem sociolinguística de Timor-Leste

1.1. Situação geopolítica

1.1.1. Espaço de confluências

Os vestígios humanos na ilha têm tido as mais variadas datações. Ora, tendo em conta que os fluxos migratórios podem gerar línguas, esta questão revela-se de grande importância para caracterizar a história das línguas em Timor. São por isso aventadas algumas hipóteses: terá havido um substrato papua em Timor que se desvaneceu em grande parte aquando da chegada dos austronésios? Terá a ilha sofrido uma dupla invasão austronésia, entrando uns por leste e outros por oeste, como sugeriu Capell (1944), citado por Thomaz (2002)? Terá havido línguas que entraram mais cedo e outras mais tarde? Ou terá havido uma 3.ª invasão de galóli, pelo centro, através de Ataúro, cuja(s) língua(s) muito se assemelha(m) a esta? (Hoppfer Rego, 1967, citado por Thomaz, 2002).8

As respostas variam em função dos autores.

Durand (2011) afirma que existem provas de povoamento que terão sido deixadas pelas primeiras vagas migratórias, populações de origem melanésia ou

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Convém referir que esta lenda percorre toda a zona geográfica na qual Timor se insere.

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Quando os portugueses chegaram “Timor dividia-se em cerca de 60 pequenos reinos reunidos em duas confederações, a dos Belos, a leste, e as dos Baiquenos, a oeste” (in Atlas de Timor Leste, 2002, p. 36).

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Em 2010, no decorrer de uma sessão do Concurso “Ha’u nia Lian, Ha’u nia Rai”, a que assistimos, um dos participantes Lourenço da Costa, de Ataúro, afirmou: “as pessoas falantes de galolen percebem algumas palavras de rasua (…) perguntei aos velhos qual das duas é a língua mãe, mas ninguém soube responder. Na campanha presidencial de 2002, Xanana Gusmão [falante de galolen] ficou admirado por perceber, como se fosse o galolen, o orador que falava em língua rasua. Até hoje ainda não sabemos a história da língua, por isso é preciso aproveitar esta ocasião para fazer um levantamento e estudo para preservar para as futuras gerações” (ver anexo 4).

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papua, linguisticamente aparentadas com as populações da Nova Guiné e cuja ocupação terá ocorrido há cerca de 42 000 anos, ainda que a este propósito refira, no seu Timor-Leste – Um Atlas Histórico e Geográfico (2010a), que ocorreu há “pelo menos 37 mil anos” (p. 46) e, finalmente, na sua História de Timor-Leste (2010b), tenha proposto datas anteriores:

“os arqueólogos admitem que o povoamento de Timor pode remontar a entre 50 000 e 60 000 anos, época em que os Homo Sapiens atravessaram o arquipélago da Insulíndia para passarem da Ásia à Austrália. Ao longo dos tempos, as misturas e os cruzamentos certamente alteraram as heranças genéticas e as línguas faladas, contudo persiste um parentesco linguístico entre as línguas melanésicas ou papuas de Timor (Búnague, [Bunaque], Fataluco, Macassai, Macalero, Maku’a) com a da região de Berau na parte ocidental da Nova Guiné” (p. 24).

Thomaz (2002), por seu lado, propõe 3 períodos de povoamento da zona. Um 1.º período, que terá ocorrido na fase final das grandes glaciações, “cerca de 7000 a.C.”, sendo esta data confirmada pelo Atlas de Timor-Leste (2002, p. 42)9. Esse mesmo documento informa que “Esses migrantes devem ter-se deslocado a pé, através da Insulíndia aproveitando a descida do nível do mar causado pela glaciação que deixou a seco as grandes plataformas continentais de Sunda e de Arafura” (idem, pp. 36-37). Este fluxo migratório chegou à Austrália perpetuando-se na civilização “dos atuais aborígenes australianos” (idem, p. 37).

A vaga seguinte, provinda igualmente do continente asiático, através da Insulíndia, em direção à Melanésia, mas agora utilizando pequenas embarcações, uma vez que as glaciações já tinham passado, deve ter ocorrido entre 3500 e 2000 a.C. São estes migrantes que introduzem as línguas papuas ou “pré-austronésicas”, de acordo com Capell (1944), citado por Thomaz (2002), a agricultura de tubérculos, a criação de porcos e de galinhas e a olaria, tendo deixado nítidos vestígios em Timor. Albuquerque (2009) refere, a propósito das línguas papuas, que o povo que lhes deu origem deve ter migrado para “Timor por volta do ano 2000 a.C., no entanto a análise dos cognatos dessas línguas papuásicas indicam que elas possuem um ancestral comum, ou seja, somente um povo falante de uma só língua papuásica que migrou cerca de 4.000 anos

9 Tomamos em consideração toda a parte histórica do Atlas de Timor Leste (2002) por esta ter sido

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atrás para o Timor” (p. 84). Em contrapartida, as línguas Ramelaicas10 (Mambai, Tocodede, Quemaque, Idalaque) “sugerem a existência de línguas pré-austronésicas, faladas por um povo pré-austronésico, anterior ao povo neo-bomberaico que introduziu a língua papuásica, que se fragmentou e gerou as 4 línguas” (ibidem) atualmente conhecidas. Serão resquícios desse 1.º fluxo migratório ocorrido em 7.000 a.C.?

Finalmente, chegam os austronésios ou austronésicos, provavelmente oriundos “do sueste da China e da Formosa [que] se espalham pela Insulíndia a partir de 2500 a.C.”, difundindo as línguas malaio-polinésicas, “a tecelagem, a domesticação do búfalo e a cultura de cereais” (Thomaz, 2002, p. 37).

Também Hull (2000) refere 3 fluxos migratórios significativos, mas não totalmente coincidentes com os anteriores. Em primeiro lugar, a chegada dos Papuásicos da Península Bomberaica da Nova Guiné, por volta de 2.000 a.C. que terão introduzido o substrato das atuais línguas papuas (fataluco, macalere, macassai e bunaque).

Num 2.º momento, a chegada de invasores de Muna, Butão e Tukang Besi, região do sudeste das Celebes, cerca de 1000 a.C., “portadores do discurso austronésio” (línguas austronésicas). A este propósito, Albuquerque vai mais longe e arrisca identificar a partir de “evidências linguísticas que o povo que deu origem às línguas Timóricas11 chegou à ilha provavelmente ao rio [à ribeira] de Laleia, no distrito de Manatuto, cerca de um milénio atrás” (2009, p. 83), sendo originário das zonas anteriormente referidas que se situam a sudeste das ilhas Celebes.

Por fim, a ocupação de Ambom, cerca do sec. XII, a qual trouxe influências significativas das Molucas quer na língua, quer na cultura.

Figueiredo (2004), quanto a este assunto, conclui que “as descobertas arqueológicas provam a ocupação remota do território, mas não respondem à questão da origem dos povos que deixaram tais vestígios” (p. 57). Além disso,

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Designação utilizada por Hull (2002) para designar as línguas que se agrupam nas proximidades do Monte Ramelau.

11 Línguas timóricas, designação utilizada por Hull (2002) para nomear as línguas nativas de Timor-

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“os antepassados das actuais populações de Timor tanto podiam ser oriundos do Sueste Asiático, onde ainda vivem núcleos populacionais heterogéneos (Proto-malaios, Deutero-malaios, Negritos, Vedaicos, Dravídicos e Melanésios), com características morfológicas e culturais idênticas ou afins das populações que presentemente vivem na Insulíndia; como tratar-se de povos aborígenes do arquipélago de Sunda, que entraram na Ásia e aí deixaram marcas da sua presença” (ibidem).

Entender diferente tem Albuquerque (2009) que, apoiando-se nos trabalhos de O’Connor12, Spriggs & Veth (2002), considera que a ocupação de Timor-Leste se terá processado entre 35.000 e 30.000 A.P.13 Refere mesmo a datação de alguns artefactos de pesca encontrados, como, por exemplo, os anzóis e “remete ao uso dessa tecnologia de pesca anterior ao povo austronésio (que desenvolveu essa tecnologia em um período posterior”, assim como, “a presença de um marsupial originário da Papua que data [de] 9.000 A.P.” (p. 83) e que seria também uma prova da presença de povos não austronésicos em Timor.

Certo é que a ilha conheceu a influência de outros fluxos migratórios de populações de origem austronésia ou malaio-polinésica vindas da Ásia, através da ilha da Formosa, que trouxeram as línguas de origem austronésia de Timor, alterações às práticas culturais agrícolas, introduzindo animais domésticos e a técnica da olaria, eventualmente, a difusão do arroz, cereal que só adquiriu maior visibilidade no séc. XIX (cf. Durand, 2011, 2010b; Thomaz, 2002; Atlas Timor-Leste, 2002), o que demonstra o vigor da influência austronésia que acabou por provocar a desagregação das civilizações preexistentes (Thomaz, 2002). Thomaz apresenta ainda mais um dado que poderá reforçar esta perspetiva ou que, pelo menos, na sua interpretação, corresponde à possibilidade da existência de dois estratos austronésios. Um que contemplaria as línguas com um sistema de numeração de “base 5” correspondentes a uma primeira vaga austronésica, tal como a que ocorreu nas ilhas da Melanésia, onde também existem sistemas de numeração semelhante, e um outro constituído pelo grupo de línguas com numeração decimal. O autor argumenta que existem

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Segundo Durand (2010b, p. 24) “os mais antigos vestígios de presença humana encontrados pela arqueóloga Sue O’Connor datavam de há cerca de 42 000 anos, e foram descobertos na gruta Jerimalai, no extremo oriental da ilha.”

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“línguas com numeração quini-decimal [de base 5] e línguas com numeração decimal, dispostas de forma descontínua (o naueti, de sistema quini-decimal, fica encravado entre línguas papuas e separado do mambae e do tocodede por uma extensa zona de macassai e tétum; o quêmac fica separado pelo mambae e pelo tocodede das demais línguas do sistema decimal, apenas contactando com o tétum na região de Bolibó” (2002, p. 64).

Esta argumentação poderia ser cruzada e reforçada com a apresentada por Albuquerque (2009) que sugere duas vagas de povos austronésicos (uma pré-austronésica e outra austronésica) e à qual já aludimos.

Por fim, para tornar ainda mais complexa esta variedade de olhares sobre as migrações e as línguas de Timor, Thomaz (2002, p. 65) afirma que existem vários indícios que sugerem que a difusão do tétum é recente e que se poderia tratar de uma 3.ª vaga migratória ou então da expansão recente de um outro povo há muito estabelecido em Timor, mas até então confinado a um espaço restrito.

A grande diversidade das populações e de culturas em Timor fica a dever-se, segundo Durand (2011), precisamente a estes fluxos migratórios que foram ocorrendo ao longo de milhares de anos, enquanto o Atlas de Timor-Leste (2002), para justificar a diversidade linguística e cultural, a imputa “à diversidade geográfica da ilha, [à]s guerras internas entre povos e [à] consequente integração de subgrupos em outros grupos etnolinguísticos” (p. 42).

Sabe-se que vários povos comerciavam nas costas timorenses à procura de sândalo. Os chineses já o faziam, no séc. XIII, para fabricar incenso e objetos de madeiras odoríferas. Em 1225, o geógrafo chinês Chao Ju-Kua regista a existência de Timor e, em 1350, Wang Ta-Yüan faz uma descrição mais circunstanciada da ilha. A sua presença naquele espaço é atestada em 1702, no “Regimento do Ouvidor de Solor e Timor” em que o governador António Coelho Guerreiro “prevê penas diferentes para cada crime consoante os delinquentes sejam europeus, timores ou chineses” (Thomaz, 2002, p. 158), mas a partir de meados do séc. XIX, as referências a chineses que habitam em Díli, em portos do litoral e até no interior da ilha, são constantes (ibidem). Sabe-se que os barcos de Java e do Golfo Pérsico visitavam aquelas paragens,

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sobretudo a parte ocidental da ilha, o que indicia a presença muçulmana14 naquela zona, não deixando, contudo, marcas desse contacto. Situação contrária é aquela que se verifica com a civilização indiana que parece ter deixado vestígios em motivos arquitetónicos, na literatura oral e nas danças na zona de Suai (cf. Thomaz, 2002, p. 78). Também Albuquerque (2009) reforça esta ideia ao afirmar que existem “vários registros históricos que citam a ilha de Timor, assim como o interesse comercial desses reinos *indianizados+ no sândalo branco dessa ilha” (p. 85), mas reconhece que tais contactos “tenham sido irregulares” (idem), uma vez que são ténues as influências culturais e linguísticas de origem indiana. No que respeita à influência malaia15, ela vem, sobretudo, da parte ocidental da ilha, mas também pela via do comércio com mercadores de Java, Macassar e das Molucas (Hull, 2000).