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DA FRONTEIRA 149 5.1 A GESTÃO DO MULTILINGUISMO PELAS ESCOLAS

2 FRONTEIRAS, LÍNGUAS, POLÍTICA LINGUÍSTICA: A CONSTRUÇÃO DA ÓTICA DE TRABALHO

2.1 ESPAÇOS, TERRITÓRIOS E FRONTEIRAS EM SUAS RELAÇÕES COM AS LÍNGUAS

Fronteiras existem porque, antes delas, territórios foram demarcados. Porque, antes delas, diferentes formas de exercício de poder (concretos ou simbólicos) incidiram sobre determinados espaços conformando territórios, isto é, processos de territorialização. Portanto, para que se possa tratar de fronteiras, penso que também é necessário compreender sua relação com espaço e território. Nesta seção, abordo esses termos em sua relação com as línguas, buscando relacioná-los ao campo da Política Linguística, que será assunto da seção posterior.

Espaço, território e fronteira são termos relacionados - mas não exclusivos - à Geografia e intensamente debatidos nesse campo, o que resulta em uma variedade de definições que advém de diferentes perspectivas, sejam elas políticas, econômicas ou culturais. Essa amplitude dos termos, no entanto, oferece possibilidades de abordá-los de forma interdisciplinar, uma vez que as ações dos grupos/indivíduos sobre o espaço podem ser analisadas a partir de diferentes pontos de vista e escalas.

Considerando que este trabalho tem como ambiente de investigação uma região de fronteira internacional e que a gestão sobre as línguas pode compor um conjunto de ações/estratégias com vistas à demarcação de espaços, compreendi como necessária uma breve incursão por esse campo do saber. A direção escolhida tem o espaço como matéria-prima, compreendendo que relações de poder que incidem sobre esse espaço demarcam territórios e, por conseguinte, as fronteiras

entre eles.

O conceito de território surge como sinônimo de território do Estado na Geografia Política, área inaugurada pelo geógrafo alemão Friedrich Ratzel no século XIX. Para ele, o Estado era o “[...] organismo ligado a uma fração determinada da superfície da terra, de modo que as suas propriedades se originam das do povo e do solo [...]” (RATZEL, 2011, p. 52). O território era compreendido como um espaço físico (solo), demarcado pela ação política e/ou militar, que abarcava um povo lá situado, seus recursos naturais e onde existiriam identidades socioculturais relacionadas aos seus atributos (SOUZA, 2001).

Territorializar, nesse sentido, consistia em uma ação de recorte do espaço que possui (ou clama-se possuir) determinadas características (diferenças relacionadas ao solo), realizando, assim, a divisão espacial das terras e da população. A fronteira, como extensão desse conceito de território, significava essa divisão entre as nações, definida por meio de acordos, atos jurídicos e ocupação militar, com base em características do solo e da população. O povo, por sua vez, era tido como um conjunto de indivíduos ou grupos vinculados a esse solo comum.

A compreensão de território de Ratzel (2011) será questionada devido à concepção de território somente como território nacional afixado no espaço físico (solo, relevo), não abarcando, portanto, outras formas de territorialização, conforme tratarei adiante (RAFFESTIN, 1993; SOUZA, 2001; MACHADO, 2005; HAESBAERT, 2004, 2007). Há que se ressaltar, no entanto, que essa noção de território, vinculada ao exercício de poder do Estado (perspectiva política), relaciona-se à construção da ideia de cultura e identidade nacional.

O filósofo Foucault (2004), em suas reflexões sobre a governabilidade4 – termo que cunha para se referir a uma genealogia da arte de governar, desde a Idade Média, uma forma complexa de poder – propõe que se volte o olhar para as táticas e técnicas de governo que permitem ao Estado – tido como abstração mistificada, no qual o solo em que se assenta é somente um de seus componentes – sobreviver e manter seus limites, tendo como alvo a população (FOUCAULT, 2004, p.292). Nesse caso, entende-se que o Estado exerce o poder de forma oficial e por meio de aparatos, mecanismos e instituições que garantem sua governabilidade, ou seja, um conjunto de condições necessárias que garantem a territorialização de determinado espaço.

Dentre tais estratégias, reside a medida de oficialização de uma

4 Também traduzido para o português como governamentalidade a partir do francês

língua nacional única a ser implementada amplamente no escopo de um território estabelecido, visando, por exemplo, à eliminação das diferenças e à produção (e afirmação) de uma identidade uniforme. Os limites do Estado, portanto, podem ser marcados por meio de uma série de condições e medidas, dentre as quais a difusão e manutenção de determinada(s) língua(s) entre população de dada área geográfica. Também Bourdieu (2008, p. 31) coloca que “Assim conhecida e reconhecida (mais ou menos completamente) em toda a jurisdição de certa autoridade política, ela [a língua] contribui, por sua vez, para reforçar a autoridade que fundamenta sua dominação [...]”.

Tomando como exemplo o Estado Brasileiro, Oliveira (2009c, p.1-2) explica que, apesar de o país ter sido erigido em um território multilíngue, foram diversas as medidas que, paulatinamente, ocasionaram o desaparecimento de muitas das línguas em prol da língua portuguesa como língua nacional:

O Estado Português e, depois da independência, o Estado Brasileiro, tiveram por política, durante quase toda a história, impor o português como a única língua legítima [...] A política lingüística do estado sempre foi a de reduzir o número de línguas, num processo de glotocídio (assassinato de línguas) através de deslocamento lingüístico, isto é, de sua substituição pela língua portuguesa. A história lingüística do Brasil poderia ser contada pela seqüência de políticas lingüísticas homogeneizadoras e repressivas e pelos resultados que alcançaram.

No contexto da fronteira entre Brasil e Uruguai, por exemplo, Sturza (2006) cita a promoção da alfabetização em castelhano no Uruguai no século XIX como forma de conter a expansão da língua portuguesa no território demarcado do país.

Calvet (2007, p.82, grifo do autor) afirma que, em muitas sociedades, a Política Linguística “[...] continua tendo, na maioria das vezes uma dimensão nacional: ela intervém em um território delimitado pelas fronteiras”. As fronteiras nacionais, desse modo, são também as fronteiras de jurisdição sobre as línguas escolhidas como oficiais e, assim, demarca-se o espaço físico e social através de estratégias, como a difusão dessas línguas oficiais por meio de veículos de comunicação, expedição e recepção de documentação governamental e educação.

Calvet (2007) explica que alguns países adotaram o princípio da territorialidade5 – entendido em sua exposição em termos de espaço de jurisdição do Estado – como forma de lidar com situações de plurilinguismo, permitindo às comunidades condições de desenvolvimento e uso de suas línguas. De acordo com esse princípio, “[...] o território determina a escolha da língua ou o direito à língua [...]” (CALVET, 2007, p.82), ou seja, se o indivíduo desejasse escolher a qual língua de instrução seus filhos seriam expostos na escola, ele deveria dirigir-se às escolas localizadas em áreas exclusivas de uso de tais línguas, pré-determinadas pelo Estado (HAMEL, 1993; CALVET, 2007).

Mas, conforme mencionado, há outras formas de territorialização que não só a de demarcação do espaço físico (solo, relevo) de exercício de poder do Estado. O geógrafo Raffestin (1993), por exemplo, propõe que os territórios sejam entendidos como o produto e a representação do exercício do poder em determinado espaço de relações. Desse modo, entendo que os territórios podem ser dos mais diversos: territórios de grupos, territórios de línguas, territórios de práticas.

Na proposição do geógrafo ecoam as reflexões de Foucault (2001, 2004) acerca do poder. Para o filósofo, o poder – escrito assim com letra minúscula de forma a discerni-lo do Poder Estatal – não será tratado como dominação de uma instituição ou grupo sobre outro em um binômio dominadores – dominados sob a forma de sujeição. Ao contrário, ele propõe que o poder seja compreendido como algo que se exerce e se produz em inúmeros pontos, de forma multidimensional, em meio a relações de força desiguais e móveis, em diversos espaços, nunca de modo estático. Assim, para Raffestin (1993), o poder não será exercido exclusivamente por uma entidade, mas no campo das relações, incluindo outros atores em diversas outras dimensões. Segundo sua definição, o território é:

[...] uma produção, a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolve, se inscreve num campo de poder. Produzir uma representação do espaço já é uma apropriação, uma empresa, um controle, portanto,

5 A territorialidade refere-se à ação de agentes (sujeitos, comunidades, Estado) sobre o

território. Relaciona-se tanto ao pertencimento como à intervenção desses agentes no espaço demarcado, seja ele físico ou simbólico. No caso do exemplo aqui apresentado, a partir de Calvet (2007), verifica-se a territorialidade do Estado. Ou seja, esse agente que, por meio de aparatos jurídicos e outros mecanismos, age sobre determinado território. Enfatizo, no entanto, que, conforme concepção de território norteadora das reflexões deste trabalho, a territorialidade não é restrita às ações estatais.

mesmo se isso permanece nos limites de um conhecimento. Qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de relações. (RAFFESTIN, 1993, p.144).

O território, visto dessa perspectiva, não é reduzido a uma escala somente territorial nacional. É construído e desconstruído em diversas escalas (não fixidez), desde territórios de exercício de poder em microrrelações cotidianas aos territórios supranacionais. Citando Souza (2001, p. 86), o território será “[...] um campo de forças, uma teia ou rede de relações sociais que, a par de sua complexidade interna, define, ao mesmo tempo, um limite, uma alteridade”. Desse modo, tanto uma rua, quanto o espaço demarcado de interação professor-alunos ou alunos-alunos, ou em nível mais macro, como um bloco econômico – a exemplo do Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), do qual o Brasil faz parte – podem conformar um território.

No caso desse último exemplo, a criação dos blocos, visando ao crescimento e fortalecimento de economias regionais, marca o estabelecimento de novos campos de relações entre os países e seus habitantes, demarca amplos espaços de negociação e interação a par das diferenças existentes (modos de vida, línguas, histórias locais) e, por isso, coloca-se em uma escala internacional.

Acrescento, aqui, que os crescentes fluxos migratórios em torno do mundo, frutos do processo de globalização que se intensificou no século XX, afetarão a constituição demográfica (e linguística) em diversos países, nos quais outros territórios são formados e desfeitos por redes constituídas de indivíduos e grupos de origens diversas.

Nesse sentido, considerando a diversidade de territórios da atualidade, Haesbaert (2007) propõe que se pense em duas lógicas territoriais que se mesclam: uma zonal e outra reticular. A primeira está relacionada à forma de controle político-territorial, como a do Estado, por exemplo, e a segunda se caracteriza como circuitos de poder, constituindo diversas territorialidades (territórios-rede). Nesse segundo caso, trata-se de um território descontínuo e marcado pela mobilidade, como o caso de índios urbanos, “[...] populações indígenas de toda a América Latina [que] encontram novos territórios nas cidades [...]” (OLIVEIRA, 2009a), agindo em diversos territórios e articulando-se a partir deles.

Frente a esse breve panorama, verifica-se que o conceito de território, com base estritamente no espaço físico de jurisprudência do

Estado, não se sustenta face às diversas nuanças de demarcação de espaços, uma vez que outras formas de territorialização refletem a coesão entre indivíduos e grupos e a ação sobre espaços. Por isso, considero território como efeito de relações de poder em dado espaço e que, por isso, pode ser formado e desfeito, ser estável ou instável, sem que, necessariamente, o espaço geográfico físico, o substrato material, sofra modificações.

Tendo feitas essas considerações, o conceito de fronteira dever ser entendido aqui também de forma abrangente. Não tomarei fronteira tão somente como divisão político-administrativa entre Estados, muito embora essa definição também faça parte das linhas deste trabalho (como em se tratando da fronteira política Brasil-Paraguai).

Considerando que os territórios não são estáticos, são múltiplos e são relacionais, também as fronteiras, por extensão de sentido, não são tidas de modo estático. Elas se (re)definem nas movimentações dos grupos humanos, nos acordos políticos, nas ações cotidianas, no exercício de separação entre o um e o outro. Tendo um cunho social, as fronteiras se formam, sustentam-se ou dissolvem-se também nas relações entre os grupos. Assim, fazendo uso da definição provida por Raffestin (2005, p. 13), entendo que:

[...] a fronteira é um dos elementos da comunicação biossocial que assume uma função reguladora. Ela é a expressão de um equilíbrio dinâmico que não se encontra somente no sistema territorial, mas em todos os sistemas biossociais.

Barth (1998), ao tratar da fronteira entre os grupos étnicos – fronteiras, portanto, socioculturais – argumenta que as fronteiras independem da ausência de mobilidade e do contato entre os diferentes grupos, isto é, não são demarcadas pelo isolamento de um grupo em relação ao outro, ou com base territorial. Ao contrário, as fronteiras podem permanecer mesmo no contato, na interação, sendo marcadas por traços diacríticos e pela filiação dos grupos a determinados critérios de atribuição e representações6 de que seus membros compartilham. Dentre esses traços diacríticos, isto é, traços diferenciais entre os grupos “[...]

6 Entendo as representações como significados atribuídos a diversos e diferentes elementos que

compõem a realidade, os quais são (re) construídos social e historicamente e têm efeito de verdade para o grupo que deles compartilha. Nesse sentido, as representações são também produtoras da realidade (BERGER; LUCKMAN, 1994; HALL, 2005).

que as pessoas procuram e exibem para demonstrar sua identidade [...]” (BARTH, 1998, p. 194), cita-se a língua.

Nesse sentido e considerando a compreensão de território apresentada, pode-se falar então de territórios linguísticos, que compreendo da seguinte forma: esferas de uso das línguas, não somente as demarcadas pelo poder exercido via instrumentos legais ou por intermédio de instâncias governamentais, mas também por outros agentes e grupos que, no campo das relações, agem sobre os usos das línguas, demarcando espaços de controle e fronteiras relacionais entre os grupos que delas compartilham, de forma descontínua. Com isso, um território linguístico, o território resultante da demarcação de espaços de uso, assim dizendo, pode ser tanto fruto de políticas linguísticas explícitas (propostas em determinado campo de exercício do poder), quanto fruto da gestão das línguas nas relações cotidianas, ou, ainda, da negociação entre os dois, mas que não são territórios fixos ou estáveis em razão da dinamicidade própria das relações, própria das línguas (BARTH, 1998; RAFFESTIN, 1993; HAESBAERT, 2004, 2007).

Em se tratando das regiões de fronteiras nacionais, especificamente das fronteiras onde se situam as cidades-gêmeas em que há intensa interação entre grupos, bem como a circulação de indivíduos nesses espaços, é possível averiguar a não coincidência entre os territórios de jurisdição dos Estados e os territórios linguísticos. Há nessas regiões também fronteiras simbólicas e imaginárias.

Os grupos que compartilham desse espaço aberto estão em constante interação, transitam entre os limites dos países, vivenciam territorialidades linguísticas demarcadas de modo político- administrativo, como também demarcadas nas relações. Assim, outros territórios podem ser verificados em espaços não previstos. Portanto, entendo que no espaço das fronteiras nacionais existem várias fronteiras, porque existem vários territórios linguísticos.

Ainda no que se refere às fronteiras, muito embora elas sejam normalmente tidas como separação – a exemplo das fronteiras nacionais, que por um largo tempo somente representavam o lugar que divide um agrupamento do outro –, há que se compreendê-las como ponto de interação e integração, pois são de lugares/pontos em que territórios se encontram, uma vez que, conforme mencionado, trata-se de relações.

2.2 POLÍTICA(S) LINGUÍSTICA(S), PLANEJAMENTO