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4 REPRESENTAÇÕES SOBRE AS IDENTIDADES DA FRONTEIRA

4.2 Palavras finais sobre identidades

5.2.3 Espanhol ou castelhano?

A análise dos dados revelou a percepção de que há uma diferença entre o espanhol e o castelhano, embora isso não seja tão recorrente entre os brasileiros, exceto José. Lídia disse não saber diferenciar o espanhol do castelhano, assim como Lúcio:

EXCERTO 45

LÚCIO: Bom, eu não vejo diferença. Não sei na verdade qual é

a diferença. Dizem que há diferença, né? O pessoal da Catalunha lá... falava castelhano e outro espanhol... eu não sei qual é a diferença, se há alguma diferença, na verdade.

José reconhece que existe diferença entre as línguas espanhola e castelhano. Mas ao ser perguntado sobre as diferenças, acaba argumentando a partir da variação linguística do espanhol, na América Latina, sem fazer uma distinção entre espanhol e castelhano, pautado em critérios eurocêntricos, como ocorre entre os paraguaios.

EXCERTO 46

JOSÉ: São línguas/talvez tenha a mesma origem, mas são muito

diferentes.

P.: É... E quais diferenças você acha que existe?

JOSÉ: Do meu ponto de vista, espanhol, pra mim, era aquilo que

a gente aprendia, enquanto eu estava aqui. Quando eu fui embora, eu convivi com pessoas de outros países, peruanos, bolivianos e equatorianos. Eh... Então, algumas pessoas do norte e algumas pessoas do sul do continente. Então, eh... as pessoas do norte falavam um espanhol mais rápido, ma::is com uma dicção diferente das pessoas do sul. Então, eles classificavam como espanhol gaúcho e espanhol nórdico, do norte, né, que eles diziam. E eles diziam assim que um era informal e outro era formal. Os do norte dizem que o espanhol do sul, dos países do sul, é muito evasivo, é muito, é... como se você estivesse falando com outra pesso::a, é desrespeito::so.

Mas é como as pessoas do sul falam. No espanhol do

que no norte, eles usam usted es, né? Então é bem/bem diferente como eles pronunciam e conjugam verbo, formam fra::ses, bem diferente.

P.: Do norte você diz América Latina, né?

JOSÉ: Sim, América Latina. México... Países mais ao norte... P.: E se comparar com a Espanha?

JOSÉ: Se comparar com a Espanha/eh... é um espanhol

semelhante, mas pelo sotaque é bem diferente. Mas do sul é totalmente DIFERENTE: do Chile, do Uruguai, Argentina e Paraguai. Eles tem um espanhol específico, principalmente o Paraguai, Argentina...

P.: [Em relação a quem a

Espanha?

JOSÉ: Em relação aos outros países mesmo. É um espanhol

único assim. Eles se consideram países gauchos, que são países gaúchos.

Sem tocar na questão da relação “espanhol versus castelhano”, José defende que existe um espanhol falado ao sul da América Latina, que seria sui

generis em relação ao espanhol falado em outros países. Como José conviveu

com outras pessoas falantes de outras variantes do espanhol, reconhece que os outros – do norte – veem o espanhol do sul – o gaúcho – como “menos puro”; mas discorda desse posicionamento com a afirmação: E eles diziam assim que um era informal e outro era formal. Os do norte dizem que o espanhol do sul, dos países do sul, é muito evasivo, é muito, é... como se você estivesse falando com outra pesso::a, é desrespeito::so. Mas é como as pessoas do sul falam.

O deslocamento de José da realidade fronteiriça o coloca em contato com outras variedades do espanhol e com avaliações que outros falantes fazem das variedades. Parece ocorrer, no convívio de José, o que Hamel (2004) aponta como mal-entendido cultural:

Entre mexicanos y argentinos residentes en México se produce típicamente lo que en sociolingüística se llama el malentendido

cultural; ocurre cuando dos personas hablan la misma lengua

interacción provoca mayores conflictos comunicativos que si ambos hablaran lenguas diferentes y se comunicaran en una tercera lengua.

Está em jogo, na fala de José, a reprodução de um mito que consiste na idealização de uma variante do espanhol. Tal idealização se dá por meio de estratégias de estandardização, que é

quando as instituições (já não somente os falantes como coletivo não orgânico) estabelecem, por meio de gramáticas, dicionários, manuais de estilo, etc., o que é “próprio” de uma variedade ou língua. A estandardização é um ato político que pode determinar o começo do fechamento de uma língua sob um nome, o começo de sua existência como “uma língua” e já não como a variedade ou dialeto X de uma (outra) língua (FANJUL, 2004, p.170).

Fanjul (2004) corrobora o pensamento de Maher (2007), sobre a não rotulação das variedades linguísticas (inglês brasileiro, português indígena, portunhol...), ao defender uma língua espanhola sem rótulos como espanhol da Espanha, espanhol da América... Independentemente das variedades o espanhol, a língua não deixa de ser espanhol. José, em razão de sua interação com outros falantes, reproduz um discurso baseado na avaliação depreciativa de outras variantes, muito embora o sujeito da pesquisa pareça discordar desse posicionamento.

Entre os paraguaios, a distinção entre castelhano e espanhol é feita por dois critérios, baseados nas seguintes ideologias linguísticas: primeira, castelhano como língua de escola, a ser ensinada; segunda, castelhano como língua de menor status em relação ao espanhol, que é a variante ibérica.

A fala de Pablo é ilustrativa dessa primeira ideologia:

EXCERTO 47

P.: ¿Y el castellano y el español son la misma cosa?

PABLO: El español parece que es la len/El idioma. El castellano

materia Castellano dice.... Sobre la lengua como escribir, como hablar, como pronunciar... Eso es el castellano, en mi punto de vista. El español es la lengua que uno expresa. Y el castellano sería una materia, para nosotros.

Pablo não faz relação à dicotomia espanhol ibérico/espanhol americano, Sua fala ecoa um discurso pedagógico: el castellano sería una materia para

nosotros. Ela reflete uma relação do povo paraguaio com o rótulo “castelhano”.

A denominação língua espanhola advém de uma política linguística relativamente recente da Espanha. Segundo dados da Real Academia Espanhola, a primeira gramática com o título “Gramática de la lengua española”, em sua trigésima segunda edição, somente surge no ano de 1924, as anteriores foram impressas com o título “Gramática de la lengua castellana”. Apenas em 1978, o castelhano é reconhecido como espanhol, por meio da constituição espanhola. Logo, a língua que o Paraguai conheceu, desde o século XVI com a implantação dos jesuítas, não era o espanhol, e sim, o castelhano.

A escolarização paraguaia sempre primou pelo ensino da língua castelhana em seus currículos. Daí o motivo pelo qual Pablo vê a existência de duas línguas: um espanhol que é falado cotidianamente e um castelhano que é a disciplina ensinada nas escolas paraguaias. Mas o contrário também é pensado:

EXCERTO 48

LAURA – São diferentes. O espanhol é algo mais formal, mais

estrita, mais fria, pode se falar, que tá só nos livros. O castelhano já é espécie de idioma mais coloquial, mais adaptado, assim, a população eh..., um idioma mais popular, assim como o português do/do Portugal e o português do Brasil, que tem assim umas gírias diferentes. Então o castelhano seria o português do Brasil e o espanhol o português do Portugal.

EXCERTO 49

JUAN: São diferentes. O castelhano tem ma::is mistura de outros

idiomas. E o espanhol é aquele espanhol difícil memo que é o de Europa, né?

P.: Mais puro? JUAN: É, mais puro.

As falas nos excertos 48 e 49 se assentam na ideologia linguística baseada na diferenciação entre espanhol ibérico e americano, em que o primeiro corresponde ao espanhol e o segundo ao castelhano. Durante a interação, acabo induzido a corroboração desse posicionamento, ao perguntar sobre a pureza de um em detrimento de outro. Tal posicionamento, além de refletir os discursos de uma política linguística da hegemonia do espanhol ibérico sobre as variantes latino-americanas, reflete, também, um ideal de língua pura: que tá só nos livros... aquele espanhol difícil memo que é o do Europa, né?

Essa distinção baseada na diferenciação entre o espanhol peninsular e o americano também foi constatada por Braz (2010, p. 99), na fronteira com a Venezuela, entre comerciantes:

À variedade linguística da fronteira é negado esse status (aqui é um dialeto, né?): não é espanhol, é apenas castelhano. Ironicamente, quando consideramos o contexto do castelhano na Espanha, observamos que ele é o idioma de maior prestígio, aquele encampado pelos ideais nacionalistas, e que hoje é denominado a língua espanhola.

A ideologia do pan-hispanismo (LAGARES, 2010) parece atravessar as falas de Laura e Juan.

Podemos considerar, portanto, que a elaboração de uma gramática ‘panhispânica”, definida como a gramática descritiva do “espanhol total”, e que não oculta também o seu caráter moderadamente prescritivo, é um empreendimento político que tem como objetivo estabelecer um centro normativo que dê

unidade, primeiro no imaginário e depois nas próprias práticas, ao espaço comunicativo do espanhol no mundo (Del Valle 2007: 31). A política linguística “panhispânica” é em parte resultado da peculiar constituição do espaço político transnacional do castelhano, em que a organização das “Academias de la Lengua” dos diversos países hispânicos, sempre sob a direção e o controle da Espanhola, teve um peso ímpar (LAGARES, 2010, p. 91).

Mais uma vez, Tradição e Tradução se encontram no momento em que os sujeitos enunciam sobre o espanhol no Paraguai. O discurso da Tradição é retomado em defesa da língua ideal, que está no livro, da disciplina ensinada na escola. Já a Tradução é a língua viva com a qual o paraguaio se relaciona todo dia e faz empréstimos do guarani e do português. Parafraseando Drummond, o espanhol, também, são dois.

Passo, agora, a expor e analisar as representações dos entrevistados sobre o português.