• Nenhum resultado encontrado

3.2 Contexto de pesquisa e procedimentos de geração de dados

3.3.2 Identidade, ethos discursivo e estereótipos

A partir da gênese múltipla do interdiscurso, Maingueneau propõe um modelo teórico-metodológico capaz de integrar, na análise, os seus vários planos do que ele chama de semântica global, tanto na ordem do enunciado, da materialidade linguística, como da enunciação, das condições sócio-históricas de produção da prática discursiva. São alguns desses planos21: código linguageiro, o tema, as cenas de enunciação, o ethos. Centrar-se somente no vocabulário, por exemplo, sem considerar a globalidade dos discursos, poder-se-ia correr o risco de uma análise pouco profunda, reducionista.

Desses planos, destacamos aqui o ethos, exatamente pelo possível diálogo que ele pode estabelecer com questões de identidade. O ethos discursivo é uma reformulação do ethos aristotélico. Trata-se não mais, como propunham os clássicos, de uma imagem pré-construída do falante; mas sim, de uma imagem em construção no ato da enunciação.

O texto, seja ele falado ou escrito, volta-se para o co-enunciador (leitor ou ouvinte) e este, a partir de indícios, representações e estereótipos – um mundo ético – constrói uma imagem do sujeito, que Maingueneau chama de fiador, cuja figura o leitor deve construir com base em indícios textuais de diversas ordens, vê-se assim investido de um caráter e de uma corporalidade (Maingueneau, 2005, p.72). Para que isso se realize, é preciso que haja um processo de adesão do co-enunciador sobre o que enuncia o enunciador. Esse processo é o que Maingueneau chama de incorporação.

Os tais indícios dizem respeitos a pistas que levam à construção de uma imagem, um fiador. A ela são atribuídos/reconhecidos um caráter – traços psicológicos - e uma corporalidade – compleição física e indumentária. Além de um tom, uma vocalidade daquele que enuncia, mesmo em textos escritos. Essa

21 Os planos da semântica global foram aqui nomeados por categorias que integram outras

categorias inicialmente citadas em “Gênese dos discursos”, a saber com suas respectivas trocas: vocabulário > código linguageiro, estatuto do enunciador e do destinatário > ethos, dêixis enunciativa > cenas de enunciação (cenografia).

corporalidade o “destinatário a identifica apoiando-se num conjunto difuso de representações sociais avaliadas positiva ou negativamente, em estereótipos que a enunciação contribui para confrontar ou transformar: o velho sábio, o jovem executivo, a mocinha romântica...” MAINGUENEAU (2008, p.18).

Em se tratando desse processo de incorporação do ethos, parece ser possível uma aproximação entre esse conceito e o conceito de identidade. Isso pode se dar, por exemplo, quando mundos éticos são incorporados, por meio de estereótipos, para se criar imagens discursivas do paraguaio e do brasileiro. Um

ethos é construído a partir de estereótipos acerca da identidade coletiva que se

tem sobre o que significa ser brasileiro, ser paraguaio, ser fronteiriço.

A partir da aproximação de conceitos dos EC e da AD, podemos apreender traços em comum entre as teorias. A primeira delas reside na noção de sujeito. Assim como os EC sugerem um sujeito multifacetado, híbrido, ou, na concepção de Bauman e García-Canclini, por exemplo; a AD aproxima-se dessa noção ao encarar o sujeito (locutor enquanto tal) como aquele que porta muitas vozes e se constitui atravessado por diferentes discursos.

Portanto, podemos reformular o dizer de Barthes – sou isto, não sou aquilo – para: não sou isto, eu estou sendo aquilo. A construção da identidade e do ethos se faz nos terrenos movediços da pós-modernidade e o sujeito que enuncia o faz num sistema de restrições – uma semântica global – que regula sua enunciação e o permite dizer aquilo que se é ou aquilo que se está sendo. Não importa mais o caráter de honestidade do ethos, preocupação dos gregos. O sujeito é diluído e sua representação é líquida, moldando-se à situação enunciativa.

Exemplo dessa situação é o que aponta Hall (2005) acerca do jogo político que se faz sobre as identidades. Para isso, cita o caso da indicação à Corte Suprema de Clarence Thomaz, um juiz negro conservador. O interesse do então presidente Bush, em 1991, era reestabelecer a maioria conservadora na Corte. Logo, os eleitores conservadores brancos apoiaram a indicação pelo fato de o juiz ser conservador; os eleitores negros o fizeram por questão étnica.

O caso nos sugere, à luz da AD, que o co-enunciador poderia, no ato da enunciação, ter incorporado os mundos éticos dos conservadores e dos negros, promovendo a adesão ao posicionamento. Essa incorporação se fez pela construção de fiadores que legitimam o dizer dos conservadores e dos negros. Trata-se, portanto, de um ínfimo exemplo sobre a heterogeneidade discursiva que também é marcada por uma heterogeneidade de posicionamentos sobre as identidades.

Outro ponto que facilita a relação entre as teorias está no tratamento dado à noção de poder. Alguns trabalhos focados na identidade, para dar conta da dimensão linguística do estudo, têm se valido da Análise Crítica do Discurso a qual, tem sua formação calcada na Pragmática de Austin e nos estudos de poder, de Foucault. Nesse sentido, a AD de Maingueneau muito se aproxima da abordagem britânica ao conceber a Semântica Global como um sistema de restrições regulador do dizer. No entanto, o sujeito não é assujeitado por uma formação discursiva, mas por um sistema de restrições que abarca a diversidade do interdiscurso, apagando o caráter quase que dogmático e de fidelidade exclusiva às formações. Até mesmo porque, segundo Bauman (2005, p. 19) “poucos de nós, se é que alguém, são expostos a apenas uma comunidade de ideias e princípios de cada vez”.

Do mesmo modo como as representações sobre as línguas podem ser postas em simulacro, por meio da interincompreensão, as representações sobre identidades também poderão.

Em suma, as aproximações que proponho entre os conceitos dos EC, da Sociologia, da Política Linguítisca e AD, frente ao objeto de estudo em questão (as línguas e identidades da fronteira), sintetizo, de modo a ilustrar o percurso teórico-metodológico que pretendo trilhar, com seguinte mapa conceitual:

Figura 12 – Percurso teórico-metodológico de análise

De modo hierárquico, o termo “representações” é acessado por meio de “entrevistas semiestruturadas”. Até então, temos, ao contrário desta tese, explicitada primeiramente a metodologia a ser empregada para a coleta de dados. O mesmo link gerador, “representações”, conecta-se com “ideologias” sobre as “línguas” e “identidades”, as quais, principalmente a primeira, refletem “políticas linguísticas”. Até aqui, são explicitados os conceitos teóricos da tese. Tais conceitos ganham operacionalidade a partir das categorias “posicionamento” e “ethos/estereótipos” que, respectivamente, relacionam-se com “línguas” e “identidades”. Por fim, propõe-se a tentativa de perceber o simulacro que se constrói sobre as línguas e sobre ser paraguaio/brasileiro.