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A noção de ideologia linguística é crucial para este trabalho. Isso porque é a partir dela que as representações sobre as línguas vêm à tona. Portanto, para fomentar políticas linguísticas é necessário, antes, que se invista em estudos focados no entendimento da complexidade de representações que se constroem em torno das línguas — bem como das ideias construídas sobre elas —, quer seja por falantes, grupos organizados da sociedade civil ou governantes.

A expressão ideologia linguística tem sua gênese na Antropologia Linguística e, conforme Kroskrity (2004) e McCarty (2011), foi usada pela primeira vez em 1979, por Michael Silverstein. Esse linguista assim a definiu: ““...sets of beliefs about language articulated by users as a rationalization or justification of perceived language structure and use”. Com o tempo, outros linguistas foram se apropriando do conceito, como Woolard (1998, p.3), que define ideologias linguísticas como “ideias sobre a língua(gem) e sobre como a comunicação funciona enquanto processo social”. E, por fim, Kroskrity (2004, p.498) que categorizou ideologia linguística, de modo mais sumarizado como “crenças ou sentimentos sobre as línguas em uso na sociedade.” Esse mesmo autor sugere a existência de muitas dimensões convergentes de ideologia linguística. Para fins metodológicos, Kroskrity apresenta cinco níveis para a percepção da ideologia linguística, as quais revisito brevemente a seguir.

O primeiro nível diz respeito ao fato a de ideologia representar o interesse de determinados grupos sociais e culturais sobre a língua. Nesse sentido, o autor destaca que juízos de valor sobre as línguas são pautados em experiências sociais e está, geralmente, atrelado a interesses políticos e econômicos.

Modelos standardizados de língua são respaldados por ideologias de grupos de prestígio social. Por esse viés, pouco importa a eficiência comunicativa das interações, o que está em jogo é a associação dos usos linguísticos com classes econômica e politicamente favorecidas, de modo a perpetuar o status de privilégio de grupos de interesse.

Já no segundo nível, atenta-se para o fato de que a multiplicidade de ideologias é reflexo da estratificação social, que é múltipla. As ideologias linguísticas podem variar de acordo com fatores como faixa etária, gênero, classe social, além de outros de ordem interna, como posicionamentos políticos e religiosos. Para ilustrar a influência da política nas ideologias linguística, Kroskrity (2004) cita o trabalho de Errigton (1998), o qual preconiza que o uso de termos arcaicos e arcaizantes do velho javanês e do sânscrito, na língua indonésia, como ferramenta de construção de uma identidade nacional, opondo- se ao uso de termos ingleses. Considerando nossa realidade brasileira, é possível exemplificar esse nível com os discursos polêmicos em torno dos termos presidenta/presidente. Muito se falou sobre o primeiro termo, por tendências normativas da linguagem, que a palavra ‘presidenta’ seria uma invenção não prescrita na norma culta, já que não há feminino para lexias de mesma formação como estudante, residente... Já discursos com posicionamento em favor do governo Dilma e do PT, fazem questão de marcar ‘presidenta’, como diferenciador do gênero, talvez para deixar bem marcado que se trata da primeira mulher a governar o país. O uso dos dois termos parece variar de acordo com os posicionamentos pró e contra o governo federal vigente.

Apoiado nas noções de consciência discursiva e consciência prática, proposta por Giddens (1984), Kroskrity (2004) propõe que se considerem, num terceiro nível da ideologia linguística, variações de consciência dos falantes em detrimentos dos espaços ideológicos que esses ocupam. O autor cita, como exemplo, o patrocínio estatal para a publicação de obras em Swahili, na Tanzânia, em razão de uma política de valorização da língua em detrimento de outras estrangeiras. Portanto, os escritores publicavam naquele idioma não por livre escolha, mas por necessidade do apoio estatal. Assim, o espaço ideológico era determinante em relação ao uso linguístico. Em se tratando da realidade

brasileira, interessante citar o estudo de Vogt e Fry (1996) sobre a cupópia, língua falada na comunidade quilombola do Cafundó, em Salto de Pirapora. Ali, os costumes e tradições africanas, de origem banto, foram mantidos pelo grupo católico/sincrético, a família Caetano, classificado como cigarras, em alusão à fábula da cigarra e da formiga. Enquanto que o outro grupo da comunidade, evangélicos, os Pires, optaram por negar a cultura africana, levando uma vida mais disciplina aos moldes do mundo capitalista, sendo, portanto, o grupo das formigas. Certamente, o posicionamento ideológico no que se refere à língua cupópia, ou seja, a escolha por ser falante dela ou não, apresentaria variação entre esses grupos, em razão dos espaços ocupados.

O quarto nível diz respeito ao fato de as ideologias linguísticas mediarem a relação entre a estrutura sociais e os usos que se fazem da língua(gem). Essa mediação dá corpo a uma série de performances identitárias que marcam um modo de existir pela linguagem. Isso permite, por meio da consciência dos falantes e escritores, fazer com que os sujeitos marquem o pertencimento a determinados grupos sociais por meio de indexicalizações linguísticas ou discursivas. Para ilustrar esse nível, Kroskrity cita o trabalho de Irvine e Gal (2000) que apontam três processos semióticos que funcionam como índices de ideologia linguística: a iconicização, a recursividade fractal e o apagamento.

No referido trabalho, são citados como exemplo de iconicização os cliques das línguas africanas. Posicionamentos de linguistas, calcados no etnocentrismo, entendiam que tais cliques eram imitação de sons de animais e não unidades fonológicas. De mesmo modo, a diversidade linguística dos Balcãs já foi entendida como caos, exatamente por não atender a um único padrão de língua, como era a necessidade dos Estados-nação em formação.

A recursividade fractal consiste em fazer refletir na linguagem ícones de outras culturas para marcar posicionamentos novos. Ainda sobre os cliques, Gal e Irvine (2000) aludem a outras etnias africanas que se apropriam dos cliques para substituição de outras lexias e para marcar respeito, em outras culturas. Talvez, o uso de estrangeirismo no Brasil possa constituir recursividade fractal. É comum na paisagem linguística (SHOHAMY, 2012) dos shoppings e do

comércio de um modo geral o uso de palavras em inglês, como delivery, 70%

off, usos de aposto para indicar genitivo... Esses usos, possivelmente, estariam

atrelados a certo prestígio social inerente ao uso do inglês. Portanto, seriam incorporados na cultura brasileira, indexicalizados nos usos linguísticos para produzir outro sentido (ASSIS-PETERSON, 2008).

O apagamento é a estratégia de negar a visibilidade de terminadas identidades em detrimento de outras, por meio de práticas linguageiras. Os processos de gramatização (AUROUX, 1992) tendem a fazer o apagamento de variantes minoritarizadas para construir um padrão ideal, virtual de língua. Por meio de ideologias hegemônicas, usos não reconhecidos por certos grupos tendem a ser apagados; passa-se um rolo compressor na diversidade para compacta-la em moldes ditados pelo Estado ou por outras instâncias.

Essa última estratégia antevê o quinto nível, que é o que me parece mais interessante, em se tratando dos propósitos deste projeto de pesquisa. Ele diz respeito aos usos da linguagem como ferramenta diferenciadora de grupos sociais, marcando identidades. Kroskrity (2004) argumenta, citando outros trabalhos, que o nacionalismo criou uma língua que foi divulgada via processos de escolarização, contribuindo para diferenciar sujeitos letrados de não letrados. Em contrapartida, outros movimentos de resistência começaram a surgir, negando padrões estabelecidos pelo Estado. Cita, como exemplo, um povo chamado Tewa, que vive no nordeste do Arizona e que resiste a empréstimos linguísticos. Por outro lado, há quem celebre o hibridismo, como os porto- riquenhos de Nova Iorque, que fazem uso de code-switching como estratégia marcadora de sua identidade. Em se tratando de hibridismos, parece haver movimentos de Tradição (resistência) e Tradução (ressignificação), conforme postula Hall (2005) e que retomarei mais adiante.

Nos parágrafos anteriores, explorei, sumariamente, os cinco níveis preconizados por Kroskrity (2004) para explorar a ideologia linguística e, na medida do possível, busquei ilustrar com exemplos abrasileirados. É importante frisar que, apesar da diversidade de caminhos para depreendê-la, o fim dos estudos em ideologia linguística acaba não sendo a língua por si mesma, mas

as relações entre identidade e poder que se travam em torno dela (WOOLARD, 1998).

McCarty (2011) aponta que, ao tratar de ideologia linguística, é importante relacioná-la com políticas linguísticas. As políticas linguísticas são mencionadas a partir da referência à metáfora das camadas de cebola, proposta por Ricento e Hornberger (1996). Assim como uma cebola apresenta várias camadas, as políticas linguísticas se constituem como um todo (um bulbo) que é um somatório de agentes que interagem entre si, por diferentes caminhos.

Estudar a ideologia linguística por esse viés é um dos percursos possíveis. McCarty (2011) sugere ainda que se some ao estudo das políticas linguísticas, a etnografia. Por meio dela, pode-se incluir o ponto de vista dos usuários sobre as políticas linguísticas. Assim, os estudos nesse campo deveriam contemplar as dimensões micro, meso e macro das relações envolvidas nos processos de planificação e implantação de políticas linguísticas.

Ainda sobre a possibilidade de alguns caminhos teórico-metodológicos para explorar a diversidade de ideologias linguísticas, Woolard (1998) aponta estratégias metapragmáticas, como a etnografia da fala; o viés da variação e mudança, no caso de estudo de línguas em contato; ou estudos históricos e historiográficos.

Independentemente do percurso teórico que se adote, o relevante de estudar ideologia linguística e sua materialidade em discursos do presente é “avaliar os ganhos políticos, epistêmicos e éticos de tais teorizações para as pragmáticas de nossas vidas” (MOITA LOPES, 2013, p. 104).