• Nenhum resultado encontrado

4 REPRESENTAÇÕES SOBRE AS IDENTIDADES DA FRONTEIRA

4.1 Ethos e estereótipos

4.1.3 Estereótipos em torno da fronteira

Estamos no exacto e preciso lugar da fronteira, a autêntica, a linha de separação, neste limbo sem pátria entre os postos das duas polícias, la aduana e la douane, la bandera e le drapeau.

Mais uma vez recorro à poética de José Saramago para falar das imagens da fronteira. O livro “A jangada de pedra” brinca com os efeitos da criação de um mundo sem fronteiras, a partir da criação da União Europeia, contexto vivenciado pelo autor. Na ficção do Nobel em Literatura, diferentes personagens praticam diferentes ações fantásticas em concomitância com o desmembramento da Península Ibérica do restante da Europa. Esse romper de fronteiras tem efeitos sobre a vida dos personagens que também veem romper suas fronteiras existenciais.

É a fronteira “limbo sem pátria”, diz Saramago. O projeto das fronteiras é a idealização máxima dos Estados modernos, representa uma expansão dos feudos. Mas, e em tempos de globalização, quando países se reúnem em blocos econômicos, tais como a União Europeia e o MERCOSUL? E o que significa a fronteira quando se vive nela? As respostas que nos dá Bauman faz bastante sentido se aplicados ao contexto fronteiriço do Brasil e do Paraguai, bem como dá respostas aos tempos globais:

As culturas reais ou putativas são atravessadas com tanta frequência que, em vez de falarmos em marcos divisórios que podem ser alternadamente preservados ou rompidos, é mais adequado descrever nossa situação como a de uma vida que se leva na zona de fronteira. Aquilo que os limites devem manter separado é misturado e espalhado de forma aleatória, e as linhas de divisão jamais passam de projetos inacabados que se destinam (e na verdade tendem) a ser abandonados antes de atingir qualquer coisa próxima à sua conclusão. Linhas são traçadas sobre areia movediça apenas para se apagar e ser retraçadas no dia seguinte. (BAUMAN, 2011, p. 76)

Zona de fronteira, de acordo com a legislação do Brasil, é termo constitucional para designar a extensão de 150 quilômetros a partir das bordas do país. Para Bauman, zonas de fronteira, em contextos variados, compreende a área movediça em constante reconstrução. Pela fala dos sujeitos da pesquisa, venho mostrando aspectos positivos apontados sobre a imagem da linha fronteira no que se refere, principalmente, à superdiversidade local. De outro

extremo, os sujeitos apontaram como imagem negativa da fronteira a associação que se faz com a criminalidade, entendendo-se a fronteira como “terra de ninguém”, como se pode confirmar nos excertos a seguir:

EXCERTO 27

LÍDIA: Olha... uma desvantagem... eu acho... que é por por ser

fronteira, mas eu acho que a desvantagem que eu encontro é mais disso de... hum... não sei como explicar, é mais de política, é... nesse lado que eu acho... que eu acho... a criminalidade

aqui é muito grande, esse que eu acho que é o ponto fraco da fronteira, é... não tem muita segurança...

EXCERTO 28

LÚCIO: Bem... Desvantagem também pela fronteira, é... o quesito segurança. As pessoas cometem crimes, atravessam do outro lado, cometem crime lá e vem pra cá...

O discurso da violência na/da fronteira, bastante comum na mídia nacional, aqui reaparece na fala dos estudantes brasileiros. Temos o estereótipo da fronteira como o lugar difícil de ser vigiado pela ação ostensiva do Estado: as pessoas cometem crimes, atravessam do outro lado, cometem crime lá e vem pra cá.

As falas dos excertos acima refletem uma imagem estereotipada da fronteira como locus da violência, como terra de ninguém:

Todas essas informações sobre a fronteira Brasil-Paraguai produzem generalizações e reforçam estigmas. As representações não significam ilusões ou mentiras construídas sobre uma realidade social verdadeira e concreta. Elas são parte da realidade social, são produções simbólicas repletas de significados. Essas imagens estão associadas a fenômenos de generalização e cristalização da pior ou da melhor parte de uma determinada configuração social (Elias, 2000). Desta forma, os jornalistas são provavelmente os principais responsáveis pela acentuação dessa imagem estigmatizada da fronteira Brasil- Paraguai. (ALBUQUERQUE, 2000, p.42).

A violência não foi lembrada como agravante ao convívio na fronteira pelos paraguaios e por um dos brasileiros, o José. Os paraguaios se queixaram mais da dificuldade em falar uma língua sem interferência de outra (Juan, excerto 18); das diferenças no tratamento interpessoal em detrimento da classe social das pessoas, independentemente da nacionalidade (Pablo, excerto 19); além da associação do Paraguai com a pirataria (Pablo, excerto 19 e Laura, excerto 23). Já José, se queixou do esquecimento da fronteira no que se refere a políticas públicas, o que, de certa forma, não exclui políticas de segurança pública.

O limbo sem pátria que é a fronteira ganha diferentes matizes, considerados em um continuum que tem como extremos a celebração da superdiversidade à imagem estigmatizada como terra de ninguém. As fotografias sociolinguísticas configuradas com as entrevistas desta tese revelam quão dinâmica e plural é a fronteira, a qual está em constante movimento (ALBUQUERQUE, 2010), dadas as múltiplas representações e o livre trânsito entre espaços que são demarcados apenas politicamente e não culturalmente. Os exemplos das entrevistas corroboram a assertiva de Schaffer: “A fronteira deixa de ser linha, limite, finitude, o lugar da diferença (...). Torna-se aberta, porosa, exemplo de integração e de aproximação”. (SCHAFFER, 1995, p. 25 citado por ALBUQUERQUE, 2010, p. 48).

A epígrafe deste tópico – na voz de Saramago – serve para exemplificar, também, o conceito de paratopia, de Maingueneau (2006; 2010). Saramago é o autor prêmio Nobel, mundialmente conhecido. Ele fala sobre um lugar – aquela fronteira com a França e seus personagens – que são parte de um mundo criado por ele. Saramago não está nesse mundo. Saramago está no mundo que faz deixar de existir as fronteiras, com a criação da União Europeia. Esse jogo de estar e não estar no mundo do discurso encenado é o que Maingueneau chama de paratopia.

A paratopia não se manifesta somente em discursos literários. Ela é parte constitutiva dos discursos de modo geral, que têm natureza heteroconstituinte. Ao se produzir um discurso não-tópico, universitário, por exemplo, pode-se

recorrer a discursos constituintes como o religioso, o político, o filosófico... Essa é outra forma de manifestação da paratopia.

Aqui, recorre a esse termo – paratopia – para provocar uma reflexão sobre a fronteira como espaço paratópico. Os sujeitos estão no Paraguai, mas estão no Brasil também. A fronteira é paratopia, é entre-lugar:

A paratopia pode assumir a forma de alguém que se encontra em um lugar que não é seu, de alguém que se desloca de um lugar para outro sem se fixar, de alguém que não encontra um lugar; a paratopia afasta esse alguém de um grupo (paratopia de identidade), de um lugar (paratopia espacial) ou de um momento (paratopia temporal). Acrescentem-se ainda as paratopias linguísticas, cruciais para o discurso literário, que caracteriza aquele que enuncia em uma língua considerada como não sendo, de certo modo, sua língua. (MAINGUENEAU, 2010, p. 161)

Estar e não estar em um dos países, falar uma língua e falar outra, são atividades corriqueiras que fazem da fronteira um não-lugar, que é lugar. Fazem da fronteira, paratopia.