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Mapeando o interdiscurso: posicionamento e ideologia linguística

3.2 Contexto de pesquisa e procedimentos de geração de dados

3.3.1 Mapeando o interdiscurso: posicionamento e ideologia linguística

A AD é uma área que estuda dispositivos de enunciação, os quais implicam textualidade e lugares sociais de onde se enunciam. Seu objeto de estudo é, portanto, não o discurso, mas as muitas camadas que ele entretece ao longo da história, de modo a constituir um objeto polifônico que tem se chamado de interdiscurso.

O entendimento do discurso sob uma perspectiva polifônica — em decorrência do princípio dialógico bakhtiniano, passando pelos estudos da enunciação e da semântica discursiva — contribuíram para a configuração da AD. Na esteira dos estudos de Maingueneau, o que importa não é o discurso aparentemente puro e assujeitado a uma ideologia. O que importa é a relação que se dá entre um discurso e outro, já que ele é fruto de uma heterogeneidade constitutiva (AUTHIER-REVUZ, 1990) e, para dar corpo ao que se diz, é necessária a recorrência a outros discursos.

Essa capacidade de apoiar-se no discurso do Outro para constituir o Mesmo é a chamada interdiscursividade. “Seria a relação interdiscursiva, pois, que estruturaria a identidade”, (MAINGUENEAU, 2007, p. 21). O interdiscurso precede o discurso, portanto, na teoria em questão, o que deve ser tomado como a unidade de análise não seria o discurso, mas sim, “um espaço de trocas entre vários discursos convenientemente escolhidos” (MAINGUENEAU, 2007, p. 21).

Mas o que levaria um sujeito a recorrer uns discursos e a negar outros? A resposta é o que Maingueneau chama de competência discursiva. Os enunciadores reconhecem em outros enunciados e optam por aquele que se enquadra em seu posicionamento. Um exemplo disso, ainda que no nível vocabular, mas marcador de um posicionamento, é que mencionei anteriormente sobre o uso do termo presidente ou presidenta e as implicações semânticas que ele tem acerca de um discurso em favor ao governo federal ou contrário a ele. Em documentos e discursos oficiais, por exemplo, usa-se presidenta; já em posicionamentos contrários ao governo, faz-se questão de marcar o comum a dois gêneros: presidente.

A noção de posicionamento está intrinsicamente ligada à competência discursiva. Aqui, atualizo o termo posicionamento, recentemente preferido por Maingueneau em vez de formação discursiva. Maingueneau (2008) começa a repensar o conceito de formação discursiva. Para ele, o termo foucaultiano- pechetiano, de dupla paternidade, não é dotado de muita clareza. Ao referir-se à formação discursiva como aquilo que pode e deve ser dito, articulado sob alguma forma, há a implicação de dois termos caros à AD, o conceito faz menção ao posicionamento (aquilo que pode e deve ser dito) e ao gênero (o que é dito é articulado sob uma forma). Maingueneau (2008, p.16) reconhece o uso embaraçoso do termo:

quando redigi o verbete “Formação Discursiva” para o Dictionnaire d’analyse du discours, co-dirigido com P. Chauraudeau, eu mesmo substituí “formação discursiva” por “posicionamento”, devido à incapacidade em que me encontrava de atribuir-lhe um estatuto bem claro.

Com vistas a desembaraçar os nós que se formam ao redor da terminologia, Maingueneau propõe a nomeação de duas grandes unidades, as unidades tópicas e unidades não-tópicas.

As unidades tópicas dizem respeito a um recorte de um fluxo de palavras que circulam em certos setores da sociedade: discurso administrativo, publicitário, políticos, judiciários. Esses tipos contemplam os variados gêneros de discurso e posicionamentos ligados ao aparelho institucional a que se veiculam os textos. Assim, as fronteiras são visíveis, já que os discursos fazem parte de espaços pré-delineados pela sociedade. Maingueneau exemplifica com dois tipos de discursos: o hospitalar e o comunista. No primeiro, poderá se verificar certa quantidade de gêneros que circulam naquele campo: reuniões de trabalho, receitas, consultas etc. No segundo, ao tratar do discurso de um partido x, poderia se verificar a existência de gêneros/suportes como panfletos, jornais, programas eleitorais. No caso do discurso hospitalar, opera-se uma lógica de funcionamento dos gêneros; já no campo político, a lógica se estabelece a partir de uma luta ideológica por posicionamentos distintos que disputam pelo mesmo campo. Entram em discussão, portanto, os dois níveis dessa unidade tópica: o do funcionamento institucional e do posicionamento em que ele se insere.

As unidades não-tópicas são unidades definidas pelo analista, que não são dados por espaços predelineados na sociedade. Ao se falar, por exemplo, em discurso racista, discurso xenófobo, não há uma ligação institucional como há nas unidades tópicas. São unidades estabelecidas, por meio de hipóteses que o analista elabora, considerando-se que o discurso é “uma dispersão de textos cujo modo de inscrição histórica permite definir como um espaço de regularidades enunciativas” (MAINGUENEAU, 2007, p.15). Portanto,

É necessário ressaltar o caráter dinâmico e agentivo do termo “formação” em “ formação discursiva”. Em vez de considerá-lo em uma perspectiva puramente estática como referindo-se a uma entidade já existente, o analista, em função de sua pesquisa, dá forma a uma configuração original. (MAINGUENAU, 2008, p.21-22).

Como visto, a AD nesta perspectiva, quer investigar as aproximações dessas ilhas movediças, formadoras de fractais que se materializam em textos, em que parte dela remete a um todo e o todo remete a uma parte. Portanto, o conceito de interdiscurso é ponto fulcral para sua teoria.

Essas noções de posicionamento e de unidades não-tópicas parecem ser bastante úteis para mapear as ideologias linguísticas cristalizadas nas representações dos fronteiriços sobre as línguas da fronteira. Um procedimento para identificar esses posicionamentos pode se dar por meio da interincompreensão.

Tal conceito está relacionado à polêmica constitutiva do discurso. Quando, por exemplo, um sujeito se posiciona contrariamente à aprendizagem do guarani, ele o fará defendendo, possivelmente, a aprendizagem do espanhol. O discurso se constituirá numa relação polêmica entre ser mais interessante aprender isto do que aprender aquilo, o modo como se referir ao “aquilo” constituirá num simulacro. Essa polêmica se fará por meio de marcas ou índices linguísticos, identificados na superfície discursiva através de simulacros (GOMES DA SILVA, 2008, p.31).

Há, de acordo com Maingueneau (2007), semas positivos e negativos num determinado discurso, favorecendo simulacros no enfrentamento com o outro. Retomando o exemplo possível, num discurso de reconhecimento e negação do guarani, poderiam aparecer os simulacros: +língua nacional, -dialeto; +língua indígena, - língua de bugre; +hibridismo cultural, -feiura, caos.

Os conceitos aqui apresentados podem funcionar como mecanismos para operacionalizar a análise dos dados, uma vez que eles se relacionam com os conceitos teóricos discutidos até agora. Especificamente sobre o conceito de posicionamento cabe uma relação com ideologia linguística, já que o sujeito da pesquisa pode se posicionar sobre uma das línguas da fronteira e, ao fazê-lo, marca ideologias linguísticas, possivelmente decorrentes das políticas linguísticas do Brasil e do Paraguai aqui rememoradas. Isso pode ser feito por meio de semas positivos que se opõem a semas negativos sobre a língua (ou vice-versa) estabelecendo uma relação de interincompreensão.