• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II: Licor Generoso A Sensibilidade Religiosa

4. A Liturgia como Espaço de Divulgação da Fé

4.1. O Espetáculo da Fé: As Exéquias de D Nery

De todas as celebrações ocorridas na diocese, a poliantéia fez questão de registrar, os funerais de D. Nery, como um grande espetáculo. Enquanto que a cerimônia de posse de D. Nery, como bispo de Campinas, mereceu apenas algumas linhas, enfatizando o tom solene de sua entrada na catedral de Campinas60 o desenlace dos últimos momentos de D. Nery, a sua morte, as exéquias e as homenagens póstumas foram destacados em quarenta e cinco páginas da poliantéia, com detalhes pormenorizados. Tal descrição demonstra a força de uma Instituição que através do ritualismo e, conseqüentemente, do uso dos símbolos sempre soube transformar todos os momentos, inclusive, os de perda e tristeza numa representação religiosa que expressava o poder e grandeza da sua mensagem.

Organizada nos mínimos detalhes, a celebração de exéquias contou, inclusive, com um fotógrafo para registrar a imagem do caixão com o corpo do bispo falecido.

O texto relata que D. Nery faleceu no palácio episcopal e que após ter sido colocado em caixão de primeira classe o seu corpo foi levado em procissão para a catedral. O percurso, que poderia ter sido feito em linha reta, dado que o bispo residia na mesma rua da Catedral, porém distante apenas algumas quadras; foi alongado e desviado para atravessar a

101

principal avenida da cidade para que o cortejo fúnebre atingisse a rua Conceição, a qual dá acesso frontal a Igreja. No dia seguinte, ainda de madrugada, deu-se início a seqüência de sete missas que se estenderam até o amanhecer, quando foi celebrada a missa de corpo presente, presidida pelo Arcebispo, a qual contou com a presença de muitos outros bispos e pessoas gradas, tendo sido concluída com um longo elogio fúnebre. Por fim, o arcebispo concluiu os ritos e o corpo de D. Nery foi colocado na cripta ao som da marcha fúnebre de Chopin.

Ainda foi relato que, passados sete dias, houve missa de Réquiem na catedral e, também, em todas as paróquias da diocese. Passado um mês, o arcebispo de São Paulo voltou a Campinas para presidir outra missa de Réquiem. Desta vez, a Catedral estava decorada com motivos fúnebres, símbolos do morto e um catafalco que representava seu corpo. Com a mesma pompa, nesta cerimônia religiosa, foram repetidos todos os ofícios realizados no dia do sepultamento, tendo sido dada, inclusive, a benção ao catafalco e encerrada a celebração com a marcha fúnebre de Pagella. Ainda, informa que, celebrações semelhantes aconteceram em São Paulo, Vitória, Pouso Alegre e Campanha, tendo inclusive, em duas delas, contado, também, com a benção do catafalco61.

Tais informações nesta dissertação, não teriam sentido se não tivesse a intenção de ilustrar o que tenho demonstrado desde o início, que a Igreja tem uma justificativa religiosa para a sua prática social. Em função da amplitude das práticas eclesiais, uma vasta gama de interpretações pode ser contemplada, e não seria possível atingi-las em poucas páginas e nem é esta a intenção. Mostrarei, em breves linhas, uma possível interpretação religiosa para aquelas práticas em trono da morte do bispo e do seu sepultamento.

Através de todos aqueles símbolos: procissões, missas, benção, orações fúnebres, músicas sacras, catafalco a Igreja pregava a sua fé que gira em torno do único dado objetivo, simbolizado naqueles dias: a morte. Por isso, o corpo do bispo foi transportado pelas ruas da cidade, velado, pranteado, sepultado e depois recordado através do catafalco, a representação do corpo do bispo. Durante todo aquele tempo, desde a morte de D. Nery, ainda no palácio episcopal, até a ultima benção dada ao catafalco, um mês depois, na mais distante igreja, através de seus ministros, mas principalmente, através do próprio morto, a

61 OCTÁVIO, Benedito, Saudosa Homenagem a Dom Nery, op. cit., pp. 374 - 419

Igreja pregava o centro da doutrina que justificava a sua existência neste mundo: a pregação do mistério da Vida, Morte e Ressurreição.

A tradição milenar da Igreja Católica sempre valorizou o dia da morte, considerado o verdadeiro nascimento para Cristo. A maioria dos santos católicos é lembrada pela Igreja, não pela data do nascimento daquele que se tornou santo, mas a data de sua morte. Esta preceptiva vem dos tempos dos primeiros mártires da Igreja que testemunhavam sua fé em Jesus Cristo com a entrega total da vida, através do martírio. A morte vista como novo nascimento; o nascimento para a vida eterna. Assim foram com os santos, assim a Igreja segue fazendo com os católicos. Durante um mês a Igreja catequetizou sobre o conteúdo da morte, da ressurreição, a centralidade da sua mensagem. Diferentemente de outras Instituições que homenagearam D. Nery, naquelas celebrações, a Igreja refletia e criava um senso católico sobre a morte enquanto experiência religiosa. A menção ao morrer cristão, com direito a confissão, a benção, com símbolos cristãos: cruz, vela, terço, orações, missa de sétimo dia, e a posterior benção exequial, realçava a dimensão antropológica, a valorização do ser humano, mas além disso, indicando a passagem desta vida para outra vida, tocava no mais profundo da experiência humana: a percepção religiosa da fragilidade humana. E isso significava muito para qualquer pessoa, mesmo àquelas que iam a Igreja.

Através daquelas cerimônias, ainda que possam ser vistas como espetáculos da fé, a Igreja cumpria a sua função religiosa no mundo, a afirmação de que a dimensão religiosa é constitutiva do ser humano.

5. A ESPIRITUALIDADE DE D. NERY ATRAVÉS

DE SEU BRASÃO EPISCOPAL

Desde o século XII, o uso de brasão como um dos símbolos do episcopado é uma prática comum na Igreja. A origem deles está ligada aos brasões de militares e, posteriormente de nobres da Alta Idade Média que adotavam o uso de brasões para indicar a ordem ou família a que pertenciam, bem como para distinguir o estrato social a qual pertenciam, o que em última análise pode ser entendido como símbolo de ostentação social. Por apropriação, também os eclesiásticos, os superiores de ordens religiosas masculinas e

femininas e associações ou congregações religiosas adota(ra)m brasões como símbolo daquilo que representavam62.

Por se tratar de recurso imagético, é, bastante, apropriado uma análise dos símbolos que compõem o brasão de D. Nery. Ainda que meus conhecimentos de Heráldica sejam limitados, obtive resultados satisfatórios que permitiram levantar hipóteses que ajudam a conhecer um pouco mais o universo social e religioso de D. Nery e a forma como ele construía as representações que justificavam o seu modo de ser e suas opções sociais e religiosas. É interessante perceber como D.Nery, e por extensão, a Instituição se apropriou de símbolos, quase sempre, considerados por ela, como pagãos e lhes atribuiu significados cristãos.

Todo brasão religioso segue as regras da heráldica eclesiástica, e é composto por duas partes distintas, uma externa e outra interna. A parte externa contém símbolos que identificam a função eclesiástica, os graus da ordem sacra, da jurisdição e da dignidade daquele que o possui, por isso possui símbolos fixos cuja disposição, cores e número de elementos são determinados pela Instituição. A parte interna, que nesta pesquisa, denominarei escudo, é confeccionada de forma livre porque apresenta elementos pessoais que identificam aquele que é simbolizado, muito embora, também, deva respeitar algumas regras da heráldica.

Como o interesse da pesquisa recai sobre o brasão de D. Nery, serão indicados os símbolos obrigatórios em um brasão episcopal e a interpretação ou interpretações que a Instituição lhe(s) confere. Posteriormente serão analisados os elementos pessoais do escudo.

62ALDRIGHETTI, Giorgio, Araldica Ecclesiastica, Istituto Araldico Genealógico Italiano, http://www.iagi.info/ARALDICA/ecclesiastica/index.html. Atribui-se nessa dissertação a nomenclatura brasão ao conjunto completo do símbolo religioso e escudo aquilo que está contido no centro do brasão. Todas as referências indicadas nessa dissertação sobre Heráldica Eclesiástica foram extraídas desse texto eletrônico, o que se faz desnecessário citá-lo inúmeras vezes.

Os símbolos exteriores de um brasão episcopal são: o chapéu episcopal preto, um cordão verde que envolve o chapéu e pende para os lados, com doze flocos, dispostos seis de cada lado. São as cores do chapéu, do cordão e o número dos flocos que distinguem as diversas funções dos prelados. Ainda, na parte interna, portanto, junto e acima do escudo, deve haver no lado esquerdo uma mitra e no lado direito um báculo e, por trás do escudo, uma cruz.

A mitra em sua forma atual é uma espécie de chapéu alto e largo que se afina no alto, é formado por duas metades iguais paralelas e separadas por um espaço, com duas fitas que devem cair sobre as espáduas. Ela é confeccionada com tecido e sua cor varia de acordo com as diferentes cerimônias religiosas. Símbolo de origem persa, posteriormente egípcia e assíria, a mitra foi incorporada pela Igreja Católica por volta do século XI para representar a dignidade eclesiástica e a plenitude do sacerdócio, exercido pelo bispo. As duas pontas simbolizam o conhecimento do Antigo e do Novo Testamento e as duas fitas significam o Espírito e a Letra, ambos constituintes da Sagrada Escritura.

Já o báculo tem o formato de um cajado, cuja extremidade superior termina em forma de curva. Sua origem está ligada à atividade pastoril e, apropriado pela Igreja, passou a simbolizar o pastoreio espiritual, sua haste simboliza a função daquele que guia e orienta. A interpretação mais comum afirma que o lado do cajado que possui a curva, serve para que o bispo, que é o pastor, traga para perto de si as ovelhas dispersas, a outra ponta serve para afastar os lobos que ameaçam as ovelhas, os inimigos da Igreja. A Igreja, oficialmente, interpreta que ele é símbolo de uma autoridade, cuja origem é divina, ainda, o considera como símbolo da fé, da qual o bispo é o fiel interprete e, por ter a plenitude do sacerdócio, pode submeter os fiéis da diocese a qual lhe foi confiada ao seu ministério. Segundo a tradição eclesiástica cada diocese é considerada uma Igreja particular, portanto, nela, há um único báculo, símbolo de um único pastor que, por sua vez, não pode ser usado por um pastor que não seja o pontífice daquela diocese.

A cruz é o símbolo cristão por excelência, o qual não poderia faltar em um brasão episcopal. Ela deve ser simples e com uma única haste transversal e seu simbolismo está associado ao mistério da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, do qual o bispo deve dar testemunho pela fé, e ensinar o seu significado.

Na parte interna do brasão episcopal há o escudo pessoal do bispo e na parte inferior dele, há uma divisa, ou nastro, com uma frase breve ou palavra, escrita em latim que expressa o programa episcopal ou ainda a espiritualidade do bispo. Embora, ambos devam seguir algumas regras da heráldica, tais elementos são escolhidos segundo a vontade daquele que o utiliza, conferindo ao brasão episcopal uma singularidade pessoal.

Como a maioria dos bispos descendia de famílias tradicionais, seus brasões continham quase sempre o escudo da família, os quais eram, quase sempre, isentos de simbologia religiosa. Talvez isso, justifique a inclusão dos elementos externos, fixos e religiosos, garantindo a interpretação eclesiástica, apesar dos símbolos familiares. Também, nos brasões dos bispos brasileiros isso é confirmado. O brasão de D. Mateus de Abreu Pereira, bispo de São Paulo, tinha, no seu lado direito, as armas da família Pereira e no seu lado esquerdo, as armas da família Abreu. Símbolos religiosos eram, também, utilizados por membros de ordens ou congregações religiosas que, colocavam ao lado das armas da família as armas ou símbolos da família religiosa a que pertenciam, mostrando a sua dupla ascendência. Como é o caso do brasão de D. Manuel da Cruz Freire, bispo do Maranhão, entre 1739 e 1747, que tinha na parte superior o símbolo da Ordem Cisterciense e na parte inferior, as armas da família Freire. Especialmente, a partir do século XIX, bispos diocesanos passaram a incorporar ao lado dos símbolos da família os símbolos religiosos, como foi o caso de D. Duarte Leopoldo e Silva, arcebispo de São Paulo e D. Joaquim Arcoverde de Albuquerque; o primeiro, ao lado dos símbolos das famílias Leopoldo e Silva traz um monograma mariano, e o segundo traz, ao lado das armas das famílias Arcoverde e Albuquerque, um símbolo eucarístico63.

Com o passar dos tempos os brasões passaram a incorporar elementos religiosos que podem significar tanto a ausência de uma linhagem ascendente tradicional como a crescente força da Instituição, e que, especialmente no Brasil, fazia o bispo a assumir os seus símbolos, como expressão de fidelidade e de sua íntima união eclesial. Bem como, pode representar o conjunto das renovações: litúrgica, espiritual e pastoral ocorridas no século

63 RUPERT, Arlindo, Expansão Territorial e absolutismo Estatal (1700-1822) – A Igreja no Brasil, Volume III, Santa Maria, Editora Pallotti, 1988, p. 149, 74 e MICELI, Sergio, A Elite Eclesiástica Brasileira, op. cit., p. 79, respectivamente. Conferir outros brasões indicados no mesmo volume de Rupert, pp. 20, 28, 36, 38, 42,45, 48, 50, 54, 56, 61, 63, 66, 68, 72, 80, 143, 155,158 e 159. Também no volume II, do mesmo autor, pp. 79, 34, 53, 55, 71, 160, 161, 170 e 171.

XIX e que os bispos faziam questão de demonstrar sua adesão através dos símbolos daquele movimento, especialmente os símbolos ligados a eucaristia e a Virgem Maria.

Para a análise dos símbolos do escudo de D. Nery será assumida, integralmente, a interpretação dada pela poliantéia, , e ampliada segundo o objetivo desta pesquisa.

Interpretação do brasão de D. Nery, segundo a poliantéia:

Sob os atributos episcopais (chapéu e flocos), o escudo tripartido, contendo: Parte superior, primeiro quartel esquerdo: Nossa Senhora Auxiliadora, de azul e branco sobre o fundo de nuvens. Eram as armas que usou no Espírito Santo. – 2º quartel a direita – Chagas, quinas de vermelho (goles) em campo amarelo (ouro) sobre fundo vermelho. Referem-se ao Bispado de Pouso Alegre, cujo padroeiro é o Senhor Bom Jesus dos Mártires (sic). Entre os dois quartéis, um lírio, símbolo de S. José. Parte inferior (ponta) Fenix de outro em campo azul - Brasão da cidade Campinas, sede do bispado. Por timbre, sobre uma coroa de conde, a cruz episcopal ladeada pelo báculo e pela mitra.

Divisa: Spiritus Domini ductor64

Quando D. Nery assumiu a diocese de Campinas, ele alterou seu brasão episcopal de duas formas. Ele modificou a estética do escudo e incluiu novos símbolos. O escudo original era muito simples e continha apenas um elemento decorativo, a imagem da Virgem Maria.

Na nova reformulação, ele adotou um escudo mais sofisticado, totalmente dourado e incluiu dois novos elementos ao lado da Virgem Maria, o símbolo da diocese de Pouso Alegre e o símbolo da cidade de Campinas, tornando-o tripartido. Acima do escudo, incluiu uma coroa. As razões para tais modificações serão abordadas, oportunamente. A princípio,

107

tais modificações permitiriam pensar que D. Nery acolheu as várias mudanças ocorridas em sua vida, as quais teriam sido simbolizadas em seu brasão, mas ao mesmo tempo, poderiam indicar o desejo de marcar aquele novo tempo, no qual se tornara o bispo de Campinas.

É bastante provável que a família de D. Nery não tivesse brasões. Miceli em sua análise, já indicada anteriormente, identificou D. Nery como um bispo de origem pobre e dedicado à Igreja, o que permitiu denominá-lo de servo da Igreja, razão pela qual aquele autor justificou a dedicação do bispo à instituição65. Para aquele autor, tudo se explicaria pelos jogos de interesses da instituição e das pessoas envolvidas. Ainda que consideremos a hipótese de Miceli, é possível pensar que a dedicação de D. Nery à Igreja possa ser buscada, não como forma de retribuição por ter sido feito bispo, mas justamente pela possibilidade de que sua vocação possa ter sido motivada por um desejo religioso e, por isso, sincero, e não fruto de arranjos sócio-políticos de ricos fazendeiros que determinavam qual de seus filhos deveria seguir a vocação sacerdotal para, posteriormente, fazer articulações políticas para alcançar o episcopado. Nesta perspectiva, assumir-se como filho da Igreja não poderia indicar uma mudança na espiritualidade, na qual uma pessoa abandona a sua vida para dedicar-se, exclusivamente, à Igreja, como fez D. Nery? Esta parece ter sido a preceptiva que iluminou a interpretação do autor do texto da poliantéia, o que, por sua vez, permite refletir sobre a existência de um contexto religioso que, provavelmente, gerou tanto o idealizador quanto o interprete do brasão.

5.1 - A ANÁLISE DOS SÍMBOLOS: