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CAPÍTULO III: Novos Leitores Novos Textos

2.2. A Questão Operária e a Ação Salesiana

Em oito de março de 1919, D. Nery proferiu uma conferência na Assembléia Geral dos Cooperadores Salesianos de São Paulo com o título A Questão Operária e a Ação

Salesiana. Uma breve análise deste texto colaborará para reforçar o que já foi explicitado

na carta de 1908: a Igreja como única portadora da verdade.

Tendo presente as informações de Ataliba Nogueira sobre as pregações de D. Nery, sua empolgação ao falar, ao gesticular, a alternância modular da voz, próprias de quem sempre teve apreço à dramaturgia, tendo presente a disposição ortográfica do texto que indica a necessidade de pausas, de interrogações, de elevação da voz nas afirmações retóricas, os fortes e hiperbólicos exemplos utilizados, ao ler o texto, é possível, imaginar o impacto que aquela pregação causou naqueles cooperadores salesianos.

Já no início de sua conferência, D. Nery, utilizando a preceptiva católica, apresentou o socialismo como oposição ao cristianismo, uma imagem recém-construída pela Igreja. Afirmou que esta oposição residia na rejeição da doutrina católica sobre o pecado que tornara o homem um ser decaído e que devia viver neste mundo, auxiliado pela religião, lutando contra as más tendências e aspirando à perfeição. Segundo o autor, ao combater a religião, o socialismo pregava a busca da satisfação pessoal e a revolução na sociedade através da disseminação do ódio contra as instituições, o que provocava a inversão dos valores defendidos pela religião40. Para D. Nery a falta de uma perspectiva, de um ideal

maior, era a responsável pelos males da sociedade moderna. Segundo ele, a religião católica tinha a função social de evitar, através do controle das consciências, as convulsões sociais.

O operário que não tem nenhum dique para refrear-lhe as paixões e impedi-lo de experimentar as excitações de seus mentores, carece do ideal sublime do Cristianismo para não desesperar41.

Como recurso persuasivo, D. Nery utilizou uma metáfora bíblica para afirmar que o socialismo cegava e despertava o ódio nos trabalhadores. Em breves palavras, omitindo a maior parte do texto, destacando algumas passagens, e enriquecendo-as com detalhes dramáticos, ele re-contou a história de Sansão, narrada no livro dos Juízes. Segundo, por vencer seus opositores Sansão foi por eles atraído através de Dalila, os quais lhe-cegaram e

40 NERY, J. B. C., A Questão Operaria e a Ação Salesiana, Gráfica Salesiana, S. Paulo 1919, pp. 6-10. 41 Idem, p. 10.

o fizeram escravo. Aprisionado, e com ódio de seus algozes, Sansão reuniu forças e destruiu o local onde estava, matando a si e a seus exploradores. Ao encerrar aquela narração, D. Nery completou evitemos semelhante desastre, restituindo ao povo, este

infeliz cego, a este novo Sansão, fascinado e aprisionado, a luz da fé e o conforto de nossa

assistência42. Cabe lembrar que a palavra exploradores está mais próxima da preceptiva socialista do século XIX do que da preceptiva bíblica.

Esta representação hiperbólica do socialismo, como símbolo do mal, dominava as mentes católicas, a qual, por sua vez, era propagada nas casas, nos ambientes de trabalho e nas escolas.

D. Nery, como homem do seu tempo, fiel defensor da doutrina social da Igreja apregoava que algumas coisas precisavam ser feitas. A solução para o problema social era a melhoria das condições de vida e de trabalho que custaria o sacrifício de algum bem

particular pelo bem coletivo43. Com a finalidade de mostrar à sociedade que a Igreja oferecia uma alternativa para aquele conflito social, o bispo recorria aos trechos da encíclica Rerum Novarum que responsabilizava a busca de lucros desenfreados dos liberais à custa dos baixos salários, pela existência dos movimentos operários que exigiam o que era de direito do trabalhador. D. Nery reproduzia as palavras daquela encíclica: o homem

não deve ter coisas exteriores por particulares, mas sim por comuns, de tal sorte que facilmente dê parte delas aos outros em suas necessidades [...] dar ao próximo não é dever de justiça, mas de caridade cristã.

Porém, com receio que aquelas palavras pudessem causar mal estar entre os católicos, D. Nery recordava, também, o caráter conservador do documento papal sobre a defesa da propriedade privada, o que comprometia todo o discurso social. Assim D. Nery recordava: é indubitável que aquilo que o homem acresce ao trabalho comum da natureza

lhe pertence com próprio, pois é uma extensão de seu ser44. D. Nery reproduzia o discurso

contraditório da instituição que abusava das conjunçõesna elaboração de seus textos, o que

42 Ibidem, p. 11. A cena bíblica recontada por D. Nery encontra-se em Juízes 16, 4 -30, Bíblia de Jerusalém, op. cit. (Os grifos são meus).

43 NERY, J. B. C., A Questão Operaria e a Ação Salesiana, op. cit., p. 13.

44 Rerum Novarum, apud NERY, J. B. C., A Questão Operaria e a Ação Salesiana, op. cit., pp. 14 e 15.

permitia aos seus leitores escolher os trechos avançados ou conservadores, segundo suas conveniências. Desta forma, a instituição construía a sua unidade.

Nas duas primeiras décadas do século XX, Campinas foi uma das cidades que apresentou maior índice de crescimento populacional. Explica isso se explica pelo fato de que, embora concentrasse a atividade agrícola na produção de café, algodão e açúcar, ela se transformou em um dos grandes centros ferroviários e industriários do Estado de São Paulo, o que possibilitou que a cidade adquirisse contornos cada vez mais urbanos, o que teve como conseqüência o surgimento de uma classe operária que alcançava 2865 trabalhadores, em 192045. Muitos desses operários participaram ativamente da Greve Geral de 1917, que fora convocada em resposta ao assassinato do jovem sapateiro José Martinez que morreu ao participar de uma manifestação grevista em São Paulo. A polícia campineira reprimiu duramente os manifestantes, o que foi reprovado por D. Nery. Em uma entrevista dada ao jornal carioca A Noite, D. Nery vangloriava-se do fato que os operários campineiros, associados ao Centro Operário São José, não participaram da greve devido à instrução religiosa recebida46. Seu pensamento expressava a doutrina da Igreja que propunha uma ética do trabalho baseada no dever moral, a qual incutia no trabalhador um papel disciplinador e normatizador.

D. Nery refletia os interesses do lugar social que ocupava. Embora ao longo de sua vida, em contato com outros segmentos sociais, mesmo no interior da instituição, ele tenha tido possibilidade perceber as distintas propostas políticas e religiosas, ele assumiu como sua a preceptiva dominante na Igreja. Para que ele continuasse utilizando-se das prerrogativas e do status que a função lhe concedia, ele fez sistemática oposição ao socialismo. Como sua principal arma era a prática discursiva religiosa, sempre que podia, ele recorria ao dualismo maniqueísta opondo o mal ao bem. Se o bem estava do lado da Igreja, conseqüentemente, o mal estava nas instituições que lhe contestavam. Ao afirmar que o socialismo impelia os operários contra as autoridades, contra a propriedade

privada, contra o Estado e contra a Igreja, D. Nery defendia a posição da Igreja e defendia,

também, a manutenção daquela sociedade civil na qual ele estava inserido. Como membro

45 BENCOSTTA, Marcus Levy Albino, Igreja e Poder em São Paulo: D. João Batista Correa Nery e a

Romanização do Catolicismo Brasileiro (1908-1920). op. cit., 201-206, cf. notas 75 a 77.

46 idem, pp. 206-210.

da Conferência de 1910, D. Nery foi signatário do documento que emanou: os padres

lembrem às classes inferiores, que se abstenham desses conluios para em hora determinada cessarem todos de trabalhar,[…], dando enormes prejuízos aos patrões, […], e ameaçando a tranqüilidade pública47. D. Nery, até por conveniência política, defendia que se fossem cumpridas as sugestões da encíclica Rerum Novarum haveria concórdia entre patrões e empregados. Nesta proposta católica para o mundo do trabalho, a Igreja ao exercer o papel de guardiã dos princípios dos enquadramentos disciplinares necessários à sociedade, defendia a possibilidade de continuar participando dela48.

Seguindo o pensamento de Leão XIII, D. Nery responsabilizava os liberais pelo crescimento das idéias socialistas que se disseminavam entre os trabalhadores, causadas pela total ausência de políticas sociais que garantissem condições mínimas aos trabalhadores. Para ele, somente através de uma pequena participação nos lucros é que aquele problema social poderia ser resolvido. Caso contrário, o ódio semeado pelos socialistas contra os patrões levaria todos à ruína.

Senhores, em nome de Cristo é urgente um remédio para este estado aflitivo de coisas e ele não

poderá vir senão de uma forma de pequena participação nos lucros verificados de seus patrões […] essa medida liberal vai sendo tomada por alguns deles, e no dia em que for generalizada em todos os centros de trabalho, raiará a aurora da justiça para a pacificação do gênero humano49.

D. Nery parece ter elaborado este trecho do seu texto a partir de um texto que D. Bosco escreveu em 1883, quando pronunciou:

a salvação da sociedade está, oh senhores, nos vossos bolsos. Estes meninos mantidos pelas Obras das escolas Profissionais, esperam os vossos auxílios. Se agora vos retirais, se deixais que esses meninos tornem-se vítimas das teorias comunistas, os benefícios que hoje lhes recusais, eles virão a pedir-vos um dia, não mais com o chapéu nas mãos, mas colocando a faca no vosso pescoço, e talvez juntamente com vossos bens haverão de querer também a vossa vida50.

Tanto D. Bosco, quanto D. Nery foram herdeiros de uma cultura católica a qual, para convencer os membros da Igreja, carregou nas cores na apresentação de uma imagem

47 Pastoral Coletiva de 1910, op. ct., cânon 1215 e 1226.

48 SOUZA, Jessie Jane de, Círculos Operários, A Igreja Católica e o Mundo do Trabalho no Brasil, op.cit, p. 51.

49 NERY, J. B. C., A Questão Operaria e a Ação Salesiana, Gráfica Salesiana, op. cit., p. 17.

50 NEGRÃO, Ana Maria Melo, Educar para a Cidadania através de valores católicos: Liceu Nossa Senhora

Auxiliadora, em DEMARTIANI, Zélia de Brito F., (org.) Memórias da Educação Campinas (1850-1960) op.

cit., p. 200.

do socialismo e do comunismo como frutos do mal. Esta falsa imagem construída pela Igreja e veiculada pela sociedade liberal ainda exerce forte impacto na sociedade brasileira.

No final do texto, D. Nery completava como entendia a função social da Igreja. Ao conscientizar seus fiéis dos seus deveres fazia do homem trabalhador, um respeitador da

propriedade privada, preparava para o Estado um cidadão honesto, obediente e devotado51.

D. Nery, assim como o papa Leão XIII, colocava a Igreja como pacificadora das classes, como aquela que tinha as respostas para todos os males morais da sociedade. Para uma boa convivência com os detentores do poder, seu discurso tinha que ter um tom evasivo, desterritorializado e atemporal que falasse para todos e, ao mesmo tempo, a ninguém diretamente, além disso, o discurso feito daquela forma não comprometeria o conferencista. Naquele auditório, provavelmente a maioria dos católicos só conhecia o socialismo através das imagens transmitidas pela Igreja. Sendo assim, ao atribuir a responsabilidade dos problemas da sociedade ao socialismo, o bispo isentava os liberais das responsabilidades sociais.

De acordo com o papado, D. Nery indicava que cabia à Igreja arrecadar as sobras

dos opulentos para construir hospitais, asilos, orfanatos e abrigos de assistência e

instrução52. Ao pedir a ajuda dos liberais para suas obras caritativas, a Igreja legitimava a

exploração social produzida pelo capitalismo. Ainda que o papado tenha sugerido, timidamente, um envolvimento dos católicos junto aos operários, D. Nery, ao traduzi-lo, o fez da forma mais conservadora possível, reduzindo aquelas propostas à caridade, às esmolas dos ricos. Era preciso relacionar-se bem com os detentores do poder econômico e político, pois, o bom relacionamento, com aquele segmento social, garantiria a subvenção às suas obras caritativas, além de um profícuo apoio político quando lhe fosse necessário. Desta forma a Igreja deixava claro que a luta contra o socialismo era uma luta contra o mal. E nesta luta o bem venceria, desde que os liberais católicos se perfilassem ao lado dela.

51 NERY, J. B. C., A Questão Operaria e a Ação Salesiana, Gráfica Salesiana, op. cit.,19. 52 idem, p. 19.

2.3 A ORIENTAÇÃO POLÍTICA DE D. NERY, UMA POLÍTICA DE DEUS53