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Espetáculo e musealização: a renegociação com o museu

Apêndice X – Depoimento de Justo Werlang

2.1 A configuração do museu contemporâneo

2.1.4 Espetáculo e musealização: a renegociação com o museu

Em uma reflexão sobre arquitetura e comunicação, Rolland Barthes lembra que a cidade pode ser vista como forma discursiva, pois é repleta de mensagens e significados. Com isso, o teórico considera que, a partir dos pós-modernismo, os museus destacados nas cidades pela suas arquiteturas singulares se transformam em um dos espaços mais emblemáticos da cultura contemporânea.120 Também situando o museu na pós- modernidade, Andreas Huyssen o aponta como um paradigma-chave das atividades culturais contemporâneas. Sua abordagem problematiza as transformações da sociedade e não somente da atividade artística. Se as mudanças das prioridades das novas artes sempre encararam o museu como um terreno de disputa e tensões, o mesmo vale para o novo público, que emerge como novos estímulos gerados pela condição pós-moderna.

O papel do museu como um local conservador elitista ou como um bastião da tradição da alta cultura dá lugar ao museu como cultura de massa, como um lugar de uma mise-en-scène espetacular e de exuberância operística. Essa surpreendente transformação requer uma reflexão, uma vez que parece ter causado um impacto profundo na política de exibir e ver.121

A política de exibição, conforme o autor, deve ser pensada em vários aspectos, especialmente os que envolvem a arquitetura pós-moderna, o uso do espaço pelas curadorias, as relações entre arte e poder. E sua análise deve partir da tendência de o público ser atraído pela experiência do espetáculo. Para Huyssen, "o novo museu e as novas práticas de exposição correspondem à mudança de perfil dos frequentadores, o que é demonstrado na busca de experiências simbólicas que tangenciam a apropriação do

conhecimento cultural em si.122 Mas como o museu também permanece com sua natureza dialética, ele hoje se configura como um espaço híbrido, que sugere uma problemática ainda mais ampla.

O museu, de certa forma, mantém o paradigma que estabeleceu com a modernidade e a arte moderna. A negação do passado ou sua afirmação como cânone são divergentes, e seu embate parece encontrar no próprio museu seu campo de manifestações

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Cf. BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: Bertrand, 1989.

121 HUYSSEN, Andreas. Memórias do modernismo. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1997, p. 223. 122

mais visíveis. Entretanto, Huyssen procura mostrar que, na contemporaneidade, o museu lida com o acréscimo de funções além dessa tradicional dicotomia moderno/contemporâneo. O autor fala de "necessidades antropológicas" como a origem de uma negociação do presente com o passado na pós-modernidade – embora não discuta seu conteúdo. Importa assinalar que, mesmo com a força de legitimação de ordem simbólica, o museu não anula múltiplos efeitos relacionados ao desejo do espectador, uma constatação filosoficamente entendida pelo autor a partir da "transformação do status da memória e da percepção temporal na cultura consumista contemporânea".123

Para Huyssen, a crítica institucional aos museus deve permanecer, embora com outra orientação, pois a busca de valores absolutos da qual tentou se encarregar o modernismo não constitui mais um modelo de grande validade para os museus. Na pós- modernidade, o debate parte então de intervenções específicas e não mais universalizantes. E a passagem do museu de um bastião da alta cultura para uma zona de influência da indústria cultural é muito sintomática a respeito da contemporaneidade.

Minha hipótese é que, na era da pós-modernidade, o museu não foi apenas deslocado para uma posição de autoridade cultural tradicional, como afirmam alguns críticos, mas vem sofrendo um processo de transformação que pode assinalar, de uma forma específica, o fim da dialética museu/modernidade.124

Entretanto, o gradual enfraquecimento das vanguardas e a negação das práticas contemporâneas criaram uma área difusa de fronteiras entre o museu e os projetos de exposição. Paralelamente, a cultura do espetáculo passou a atingir as exposições de forma impactante. O espaço para os antigos experts se abriu para um grande público seduzido pelo consumo simbólico de uma experiência sedutora. A chamada museumania está relacionada à institucionalização da arte e da cultura para fins políticos e econômicos. Ao mesmo tempo em que exerce essa legitimação simbólica propagandeada como democratizadora do acesso cultural, a indústria cultural não apenas seduz, manipula e explora, mas alimenta um desejo que assinala mudanças culturais. E descartar ou desqualificar a atração do público pela cultura do espetáculo é ignorar um importante aspecto sobre os museus na contemporaneidade. Se já se constatava a inviabilidade da teorização artística dentro de um

123 Ib., id., p. 226-227. 124

programa de uma história da arte única, a cultura midiática e a sociedade de consumo se tornaram importantes ao colocar uma profusão de símbolos e significados em circulação.

Huyssen articula três modelos explicativos para dar conta do que considera ser a recente mania por museus e exposições alimentada pelo mise en scène espetacular. Confrontando as posições neoconservadora, pós-estruturalista e crítica da mídia, acredita chegar a uma compreensão da musealização como sintoma-chave da cultura pós-moderna. A visão neoconservadora trata do museu como compensação dos prováveis estragos da velocidade da modernização. Localizado entre o interesse pelo novo e pelo passado, o presente é comprimido pelo provisório, algo que, para Huyssen, ainda é impedido de uma maior análise por força do velho conceito de cultura, baseado em continuidade da tradição. Para o autor, "tudo isso pode ser interpretado como uma reação à altíssima velocidade da modernização, como uma tentativa de se libertar do espaço vazio do cotidiano e reivindicar um sentido de tempo e memória".125 Mas a pós-modernidade mostraria que não há como compensar as transformações da modernidade. Daí, a oposição dos pós-estruturalistas, com as teorias sobre simulação e catástrofe dos museus. Nessa corrente, a musealização é estendida às práticas do cotidiano. Huyssen lembra de Baudrillard, que encara a museificação como uma tentativa de controle e domínio do real, em um processo de reação à expansão da simulação. O museu, assim, surge com uma visão apocalíptica, que demonstra a agonia do real. Entretanto, essa postura parece não reconhecer tentativas de se articular o passado reprimido ou marginalizado, bem como as que envolvem atividades alternativas nos museus.126 A sobrevivência e a gradual espetacularização do museu sugerem que a teoria apocalíptica não encontra uma permanente sustentação.

Já a teoria crítica da mídia e da indústria cultural, segundo Huyssen, permite focalizar a relação entre o museu e o consumo. Não se trata de buscar uma compensação que restabeleça o equilíbrio ou uma constatação de que a simulação substituiu a realidade. Segundo o autor, a mídia e o consumo criaram um desejo permanente de experiências e

acontecimentos, com a consequência do aumento do nível de expectativa visual da

sociedade pós-moderna.

125 Ib., id., p. 242. 126

(...) a finalidade frequente das exibições era esquecer o real, retirar o objeto de seu contexto e de sua função original e cotidiana ressaltando a sua alteridade e abrindo um diálogo potencial com outras épocas: o objeto de museu é mais um hieróglifo histórico do que uma simples peça de informação. Sua leitura passa a ser um ato da memória e sua verdadeira materialidade assume a aura de distanciamento histórico e transcendência no tempo. 127

O fim da aura anunciado por Benjamin diante da reprodução em série é reivindicado por Huyssen. A retomada do passado e seu reconhecimento como não obsoleto reencantam uma aura que se mantém além de qualquer função instrumental que exerceu anteriormente. O olhar museico permite a experiência do reencantamento da aura por meio do isolamento do objeto em seu contexto genealógico. Surge daí um fetichismo que não pode ser associado diretamente ao que Marx e Adorno se referiam. É um fetichismo que ultrapassa a questão de troca como mercadoria, originando-se em uma dimensão

anamnésica, relacionada a valor de memória. A aura, assim, está relacionada a uma

experiência temporal do autêntico, do singular e do original. Mas ao contrário da televisão e outras mídias de simulação, o olhar sobre os objetos museicos se mantém também material diante da tendência da imaterialidade. Para Huyssen, isso pode fornecer um sentido de materialidade opaca e impenetrável, assim como um espaço anamnésico dentro do qual a transitoriedade e as diferenças entre as culturas humanas podem ser compreendidas. Dessa forma, o autor delega à cultura do museu e das exposições o aperfeiçoamento de um terreno de negociação e contestação cultural que acolhe e oferece múltiplas, heterogêneas e até incompatíveis narrativas de significados que habitam o olhar e a memória do espectador na pós-modernidade.

O olhar mais aproximado à filosofia de Huyssen, bem como a teorização histórica anterior a respeito da configuração do museu pós-moderno, tem como objetivo situar um breve panorama da problemática que envolve as instituições como a Fundação Iberê Camargo no campo artístico contemporâneo. Espera-se ter esboçado um painel aplicável, de forma a podermos, a seguir, refletir sobre a constituição de uma geopolítica institucional a partir de uma descrição analítica e panorâmica do projeto curatorial.

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2.2 A constituição de uma geopolítica institucional: análise das exposições