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Museu modernista e arte contemporânea: autonomia, crítica e institucionalização

Apêndice X – Depoimento de Justo Werlang

2.1 A configuração do museu contemporâneo

2.1.2 Museu modernista e arte contemporânea: autonomia, crítica e institucionalização

Para situar o museu da Fundação Iberê Camargo, é útil também considerar a referida revisão da natureza dessas instituições em relação ao percurso e às novas demandas da arte, especialmente entre os séculos XIX e XX, com a arte moderna e a arte contemporânea. Foi a partir da veiculação pública de suas obras que os vanguardistas assumiram uma nova posição social. Paralelamente às transformações relativas à arte, esses artistas também imprimiram mudanças significativas nas concepções expositivas e no papel dos museus ao longo da história da arte.

A constituição de uma esfera de apresentação e julgamento públicos das produções artística foi possível a partir dos primeiros salões, em fins do século XVII, e posteriormente com as exposições individuais e independentes, como as de Courbet, em 1855, e de Manet, em 1874.98 Anteriormente, e praticamente até o fim do século XVIII, os salões pertenciam ao monopólio da academia, que os usava em defesa de padrões estéticos rígidos e certos princípios hierárquicos de organização e disposição das obras. No fim do século XIX, em contraponto, os artistas modernos começaram a promover a autonomia do circuito da arte e, assim, mudanças nas concepções expositivas, muitas delas significativas ainda hoje.

Desde os primeiros salões e à medida que as propostas artísticas rompiam com modelos tradicionais, a realização de exposições assumia um papel cada vez mais importante para a veiculação da produção artística, sobretudo no que se refere à devida compreensão das obras pelo público. Em resposta a isso, gradativamente as montagens expositivas promoviam a intelectualização do público, a institucionalização da arte e, portanto, a autonomia do circuito, que, por meio dessas mostras, tornava a afirmação do projeto moderno uma conseqüência. Nesse contexto de ascensão artística coletiva, era inevitável que os artistas voltassem seus olhos para os museus, uma vez que neles, de forma análoga a tais conquistas, residiria o reconhecimento máximo: a posteridade. 99

É preciso lembrar que, quando das primeiras manifestações modernistas em arte, o museu se limitava a conservar e apresentar suas coleções, conforme o modelo estabelecido no século XVIII. Assim, as vanguardas modernas primeiramente se encarregaram de questionar esse museu tradicional, comparando-o a cemitérios e mausoléus. O que se

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CINTRÃO, Rejane. “As montagens de exposições de arte: dos Salões de Paris ao MoMA”, p. 22. In: RAMOS, Alexandre Dias (org.). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre: Zouk, 2010, p. 15-42.

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testemunhava era a reivindicação de que a mesma efervescência das proposições artísticas se transferisse para os espaços dos museus de forma a servir de veículo para concretizar a inserção e o reconhecimento públicos dos novos modos de arte. Tal afirmação do circuito artístico moderno se vincula a um processo de consumismo cultural, que “gerou mudanças nas concepções das exposições de arte, criando paradigmas significativos para o contexto expositivo atual”.100 Impulsionada pelo estágio do capitalismo na primeira metade do século XX, a lógica de consumo tornou possível a criação de concepções expositivas que consolidaram o programa modernista.

Assim como os salões foram fundamentais para as primeiras manifestações modernistas contra a arte acadêmica no século XIX, o museu se transformou em espaço legitimador das primeiras vanguardas artísticas do século XX, mas ainda em uma narrativa evolutiva da história conforme herdada do iluminismo. Como afirma Ricardo Basbaum:

Pode-se dizer que a origem do museu é moderna (se tivermos como referências a Renascença, a invenção da imprensa e as conquistas do novo mundo) e enciclopédica: se avançarmos para além dos gabinetes de curiosidades e chegarmos até a revolução burguesa, veremos que uma das vertentes que conduzem à formação da ideia de museu é exatamente o impulso em conceituar com clareza uma ordem das coisas e do mundo, em que uma forma de pensamento conduz à verdade – e a obra de arte é uma das expressões desta procura e deste encontro, articulando de forma singular autonomia plástica e recortes de possibilidade discursiva.101

Em tal paradigma de museu moderno do século XX, é possível eleger o The Museum of Modern Art (MoMA), criado em 1929 em Nova York, como um dos primeiros representantes históricos, responsável por instaurar uma nova ideologia para o espaço da arte, o chamado “cubo branco”. Conforme Brian O’Doherty, em seu clássico texto a respeito, o espaço totalmente branco e neutro foi responsável por legitimar e enquadrar a exibição da arte moderna, direcionando o olhar para dentro das obras com o objetivo de destacar as inovações modernistas nos aspectos formais. De certa maneira, o canônico cubo branco ainda pode ser verificado em grande parte dos museus, sendo também o formato de espaço expositivo que se relaciona com o que foi concebido por Álvaro Siza na Fundação Iberê Camargo.

100

Id., ib., p. 99.

101 BASBAUM, Ricardo. “Perspectivas para o museu no século XXI”, p. 185. In: GROSSMANN, Martin; e

A história do modernismo é enquadrada por esse espaço intimamente; ou melhor, a história da arte moderna pode ser correlacionada com as mudanças nesse espaço e na maneira como o vemos. Chegamos a um ponto em que primeiro vemos não a arte, mas o espaço em si. (...) Vem à mente a imagem de um espaço branco ideal que, mais do que qualquer quadro isolado, pode constituir o arquétipo da arte do século XX; ele se clarifica por meio de um processo de inevitabilidade histórica comumente vinculado à arte que contém. 102

As vanguardas e os “ismos” do início do século XX estimularam uma profunda discussão sobre a crítica das instituições. Os futuristas italianos foram a extremos, pregando o fim dos museus. No Manifesto Futurista de 1909, Filippo Marinetti chamava os museus e as bibliotecas de cemitérios e exigia que fossem destruídos. Atos históricos como os de Marcel Duchamp mostraram que a arte não era exatamente uma criação plástica do artista, mas um objeto nominado e designado pelo mesmo ao ser inserido no sistema de legitimação da arte.

Já as neovanguardas, ao irem contra a ideia de autonomia da arte em favor de um conceito que se integrasse com a vida, encontraram no museu um foco de resistência e descompasso. Diante do enfrentamento à tradição normativa, os artistas se indispunham à ideia do museu de cubo branco modernista. Vale lembrar Paul Valéry ao dizer: “Não gosto de museus. Alguns deles são admiráveis, mas nunca deliciosos. As idéias de classificação, de conservação e de utilidade pública são justas e claras, mas têm pouca relação com as delícias”.103 Ou a sentença de Robert Smithson: “Visitar um museu é uma questão de ir de vazio a vazio”. 104

Analisando-se hoje, com a vantagem do olhar retrospectivo, é possível entender que a sacralização dos museus foi uma consequência do distanciamento que o modernismo operou na intelectualização da arte na alta cultura. Como reação, muitas das expressões da arte contemporânea, com suas experiências de ir ao cotidiano e buscar contato com as pessoas, relegaram ao museu um segundo plano, mas certamente não lhe tirou a importância no sistema artístico.

Houve uma grande aversão aos museus e à institucionalização, principalmente pelas vanguardas modernas e seus refluxos. Isso ocorreu inclusive no Brasil (...). Não foram poucos os artistas que execraram os espaços institucionais de arte.

102 Cf. O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco - a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes,

2002, p. 3.

103

Cf. VALERY, Paul. “O problema dos museus”. IN: Revista do patrimônio histórico nacional. RJ: 1996, nº 32.

104 SMITHSON, Robert; KAPROW, Allan. “What is a museum”. In: HOLT, Nancy. The writings of Robert Smithson.

Desde então, é comum a ideia de que uma exposição ou o próprio circuito de arte teria o poder de neutralizar a força de um trabalho. A isso se acrescente a postura, que hoje se evidencia como ingênua, de que o espaço público, a rua, seria um espaço genuíno, livre e à margem do circuito e do mercado, como se o mercado não estivesse presente em todos os campos.105

Teóricos inseridos nos desdobramentos da arte moderna perceberam que a ideia de museu não chegava exatamente ao fim, mas passava por uma transição. Ao mesmo tempo em que o museu tradicional era colocado em xeque, novas linguagens de natureza diversa solicitavam a reformulação das estratégias e demandas museais, ou seja, um novo modelo museológico e museográfico. O museu do passado, como centro de conhecimento, parecia dar lugar a um novo modelo de museu, em que o espaço expositivo é visto não só como um modo de aprendermos a entender a arte, mas também para colocá-la em perspectiva, percebendo como pode nos informar sobre as culturas das quais faz parte. Douglas Crimp, autor de outro clássico, observou que a reconciliação dos artistas com o espaço dos museus e galerias está implícita na tentativa de recuperar nostalgicamente a aura da obra de arte, com o ressurgimento da pintura e o triunfo da fotografia. Nesse movimento, as instituições voltavam a ser, conseqüentemente, espaços fomentadores e enunciadores da produção recente.106 Já Arthur Danto, em sua defesa da possibilidade de um museu de acordo com os desdobramentos da arte pós-moderna, vê a arte em espaços expositivos como um fim e um meio, em que os modelos formal e cultural se entrelaçam.107

Um panorama das transformações pelas quais a obra de arte passou nos últimos 200 anos é traçado por Ricardo Basbaum de modo a evidenciar que o museu, de maneira análoga, também as acompanhou. O autor elabora a seguinte periodização em forma de síntese: a) conquista de autonomia (academicismo e romantismo até Cézanne), b) ruptura com a tradição e utopias (cubismo e vanguardas até Pollock), c) constituição de um circuito de arte (das vanguardas às neovanguardas, sobretudo a arte conceitual), d) relações com o real (a partir da pop arte e do conceitual), e) virtualidade imagética e conceitual e espetacularização (a partir de fins do século XX).108 Essa breve e didática descrição sinaliza o

105

ALVES, Cauê. “A curadoria como historicidade viva”, p. 47-48. In RAMOS, Alexandre Dias (org.). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre: Zouk, 2010, p. 43-58.

106

Cf. CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. SP: Martins Fontes, 2006.

107

DANTO, Arthur C. El abuso de la belleza. Barcelona: Paidós, 2003, p.191.

108 BASBAUM, Ricardo. “Perspectivas para o museu no século XXI”, p. 186. In: GROSSMANN, Martin; e

quanto as mudanças artísticas contribuem ao esclarecimento na reflexão sobre os direcionamentos da concepção museológica.109

A reflexão contemporânea sobre a finalidade dos espaços de museus e o questionamento do paradigma do cubo branco remete, entre diversas referências, aos debates artísticos surgidos entre os anos 1950 e 1960. As novas modalidades de manifestações artísticas e seus questionamentos aos museus geraram um processo que, nas décadas seguintes, acarretaria em alterações que configuraram uma nova ideia da finalidade das instituições culturais e dos espaços expositivos. Até o final dos anos 1970, é possível apontar a existência de uma crítica institucional que partiu de questionamentos dos próprios procedimentos artísticos, especialmente da arte conceitual, minimalismo, body art, performance, happening, land art, entre outros. Diante das novas opções estéticas e experiências artísticas em processo, surgiu um novo conceito do que vem a ser obra de arte. Muitas vezes a ênfase não está na obra em si, mas em seu processo e em seus desdobramentos – ou apenas no seu conceito e/ou na proposição, permitindo quem nem mesmo precise existir fisicamente ou como imagem. Com o deslocamento dos suportes tradicionais, como pintura e escultura, as novas práticas artísticas também mostraram que não existiam mais limites para a invenção da obra – nem para sua apresentação e validação.

Por fim, é interessante considerar que, ao mesmo tempo em que a arte contemporânea se colocou contra o modernismo e as instituições, a pós-modernidade trouxe um paradoxo nos anos 1980 e 1990: de que muitas das práticas selariam uma convivência pacífica com as instituições, no que diz respeito aos aspectos positivos que lhe garantissem reconhecimento e existência artística. Como afirma Teixeira Coelho:

O museu não foi derrotado. Nem o mercado de arte. Nem as instituições, como um todo. Mesmo porque, no final da década de 1970, uma nova atitude diante das instituições despontava: não se tratava mais de contestá-las, destruí-las, travava-se agora, um tanto cinicamente, de aproveitar os aspectos positivos que podiam oferecer a cada um individualmente.110

Os encaminhamentos da cena artística a partir do final do século XX indicam que o museu passou a se remodelar para atender às solicitações da própria arte e para dialogar

109 Deve-se considerar que o autor não apresenta períodos seqüenciais, pois há superposições complexas que

assinalam algumas das principais mutações da arte moderna/pós-moderna, e que o esquema se aplica mais a um modelo euro-americano e menos aos países periféricos, onde o modernismo aconteceu de forma tardia e com aspectos específicos.

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com um público que já não respondia às linguagens da tradição modernista. Com a visibilidade que a cultura foi adquirindo por meio da indústria cultural, os espaços museais se tornaram uma engrenagem econômica, incorporando algumas características que atendessem ao novo apelo consumista que se esperava desses edifícios.

Ao fazer esse breve comentário sobre as mudanças nos paradigmas do museu de arte, busca-se compreender algumas das causas, traçando um paralelo que permita entender que as mudanças de concepção museológica basicamente acompanham as transformações artísticas e em outros campos. É no século XX que se encaminha a grande transformação da museologia, do papel do museu e de sua função pública.