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Estetização e monumentalismo: a arquitetura pós-moderna

Apêndice X – Depoimento de Justo Werlang

2.1 A configuração do museu contemporâneo

2.1.3 Estetização e monumentalismo: a arquitetura pós-moderna

Enquanto as novas formas de arte imprimiam desafios para os museus se manterem ativos e relevantes, e as instituições repensavam suas finalidades e relações com a sociedade, paralelamente o próprio processo cultural encaminhado pelo capitalismo tardio também trouxe um quadro de mudanças. As teorias da pós-modernidade apresentadas no primeiro capítulo ajudam a perceber o novo papel que a cultura passou a representar com a globalização e a sociedade de consumo. Como efeito, tem-se o advento da profusão da produção de símbolos culturais para mover a economia. Como afirma Otília Arantes:

(...) a partir da desorganização da sociedade administrada do ciclo histórico anterior, cultura e economia parecem estar correndo uma na direção da outra, dando a impressão de que a nova centralidade da cultura é econômica, e a velha centralidade da economia tornou-se cultural, sendo o capitalismo uma forma cultural entre outras rivais. (...) hoje em dia, a cultura não é o outro ou mesmo a contrapartida, o instrumento neutro de práticas mercadológicas, mas ela hoje é parte decisiva do mundo dos negócios e o é como grande negócio.111

Após o racionalismo moderno potencializar as especificidades artísticas, os desdobramentos pós-modernos às diluíram em uma fusão multidisciplinar que desdobrou o processo de estetização geral, responsável por horizontalizar o programa estético antes determinado pela sucessão de estilos.112 Em um processo de reconfiguração de contornos

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Cf. ARANTES, Otília. “A virada cultural do sistema das artes”. In: São Paulo S.A. Situação #3 Estética e política. São Paulo: SESC, abril 2005. Disponível em www.sescsp.org.br. Acesso em 10/12/2012.

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mais maleáveis e híbridos, o museu intensiva, no período do pós-guerras, uma gradual abertura, a partir de uma visão global, pragmática e mercadológica. A ideia de “museu dinâmico” envolve, além da manutenção dos acervos, a necessidade de oferecer serviços variados ligados tanto à educação e à cultura, quanto ao entretenimento. O MoMA, por exemplo, usa essa nova abordagem ao se estruturar com exposições temporárias, debates, palestras, eventos e programas de arte-educação. Esse modelo institucional se reflete no Brasil com o Museu de Arte de São Paulo (MASP), fundado em 1947. A partir da década de 1960, com os temas mais ligados ao cotidiano, surgem novas experiências, e o museu extrapola o seu limite alcançando o público até mesmo fora de suas instalações. As sedes recebem adaptações em função de uma democratização do público, fazendo transformações em função da acessibilidade universal.

Nas décadas seguintes, a discussão em torno do papel do museu nas sociedades contemporâneas encontrará no público seu objetivo maior, conforme destacamos anteriormente, gerando reformulações não só institucionais, mas especialmente espaciais. Com maior diversificação nas formas de representação e de produção de sentido, e o revigoramento da centralidade de soberania e legitimação, o museu testemunha o internacionalismo do modernismo dar lugar à globalização da contemporaneidade. Nesse percurso, cultura e mercado estreitam laços, vinculando realizações a uma postura ligada ao consumo cultural. As mega-exposições atraem um novo público, que antes não freqüentava museus, mas, muitas vezes, promovem espetáculos desprovidos de criticidade, em uma

lógica espetacular para alimentar o lazer cultural.

Se pensarmos no que foi a indústria cultural nos anos 50 e 60, veremos que o processo se inverteu. Não se trata mais de trazer a cultura de massa, mas de introduzir o universo quotidiano no domínio antes reservado da alta cultura. À desestetização da arte segue-se um momento complementar de estetização do social, visível no amplo espectro que vai dos museus de fine arts aos museus de história da vida quotidiana.113

A feição de espetáculo que passou a ser incorporada pelos eventos e mostras artísticas, a exemplo do fenômeno ocorrido com as Bienais, é mediada em grande parte, no caso dos museus, pela potência da arquitetura, em muitos casos concebida como monumento pós-moderno, como é o caso da Fundação Iberê Camargo. O chamado

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monumentalismo ganha ênfase junto ao gradual interesse de os museus se colocarem como símbolos e referências urbanas e se comunicarem para as massas com novas modalidades de exposição. Lisbeth Rebollo Gonçalves afirma que a tendência se firmou a partir dos anos 1970, na medida em que:

Os museus passam a ser monumentos, ícones da modernização da sociedade, emblemas da identidade cultural urbana, lugar obrigatório para a freqüência turística e de lazer e diversão para o cidadão. Os museus tornam-se pontos de referência centrais para a cultura. Passam também a ocupar um importante lugar na história da arquitetura.114

Demonstrando sua relevância para o sistema da arte ao problematizar os binômios forma-função, espaço-evento, público-privado e fruição-espetáculo, o museu permanece como lugar privilegiado para o contato entre arte e público. Assim, a arquitetura torna-se um agente de inserção e legitimação das instituições no mundo da arte.

Conforme David Moreno Sperling, a reflexão contemporânea sobre os conceitos vigentes de arquitetura de museus parte exatamente do paradigma do cubo branco modernista e do debate arquitetônico surgido nos anos 1960.

O qual pode ser posto, sinteticamente, pela oposição cubo branco cubo decorado. O primeiro, decorrente do mote moderno a forma segue a função proposto pelo arquiteto norte-americano Louis Sullivan, sugere a conformação do espaço a partir da estruturação de um programa (função) legível em uma forma pura (racionalidade como critério de beleza). O segundo, germinado pelo arquiteto norte-americano Robert Venturi, advoga pela complexidade e contradição, pela livre dissociação entre os aspectos formal e funcional-espacial da arquitetura. Com grande prevalência do aspecto formal, destinado à fruição leiga, em detrimento do aspecto funcional-espacial, associado à fruição culta, caberia à arquitetura promover a visualidade do objeto arquitetônico por meio da replicância das estruturas comunicativas orientadas pelo e para o mercado e a indústria cultural.115

Ao tratar da estetização pós-moderna, Otília Arantes considera o fato de o tipo correspondente de arquitetura se apresentar como um valor em si, uma espécie de obra de arte que deve ser apreciada não só como espaço que abriga arte. 116 O museu de arquitetura pós-moderna, aos moldes do projeto de Álvaro Siza para a Fundação Iberê Camargo, apresenta-se como uma atração urbana diferenciada e espetacular, destinada a receber

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GONCALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2004, p. 66.

115 SPERLING, David Moreno. “As arquiteturas de museus contemporâneos como agentes no sistema da arte”,

p. 176-177. In: GROSSMANN, Martin; e MARIOTTI, Gilberto (Orgs.). Museu arte hoje. São Paulo: Hedra, 2011, p. 171-184.

116 Cf. ARANTES, Otília. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo: Edusp/Studio Nobel/Fasesp,

grandes públicos movidos não só pelo desejo de se aproximar da arte, mas pela vontade de acessar um estilo de vida conforme referências culturais e artísticas moldadas pela espetacularização. Atrelado às lógicas da sociedade de consumo, o museu/monumento urbano transforma-se em signo de distinção, imaginário social e memória cultural, posicionando as cidades no circuito da cultura global. Retomando a argumentação de Lisbeth Rebollo Gonçalves, estabelece-se uma dinâmica que interessa observar no momento em que se institui como um produto cultural operativo tanto no circuito global como no circuito local da cultura:

O museu/monumento torna-se cenário para uma experiência espetacular; é um código cultural, que aparece antes mesmo da práxis estética, do contato com as exposições que apresenta ao público. Entre a noção de monumento e a ideia de código cultural, existe um ponto de relação inegável: em ambos, passado e atualidade são alavancas do futuro. O novo museu passa a ser importante para reificar a memória cultural. (...) o perfil do museu na atualidade, como museu/monumento, evidencia-se numa ordem social também “monumental”, no sentido de ter a marca de um estilo de poder econômico multinacional. Com tal imagem, é possível depreender que o novo museu é um produto cultural que legitima a modernização global como estilo de vida. Esse museu torna-se claramente um signo dos novos tempos. Torna-se uma cenografia para a experiência cultural contemporânea.117

A escolha de um arquiteto de reconhecimento internacional para o projeto da sede da Fundação Iberê Camargo deve ser vista, como apontamos no capítulo anterior, como uma estratégia de visibilidade institucional por meio da arquitetura urbana. Afinal, além de atender a um programa arquitetônico e museográfico de acordo com os grandes projetos do gênero, buscou-se um profissional cuja reputação gerasse visibilidade global a partir de uma região periférica do país, como é o Rio Grande do Sul. Em tese, a grife arquitetônica faz parte de uma estratégia com lógica verificada em uma espécie de tendência mundial. Em acordo com o que se colocou no capítulo anterior, tudo o que envolve a construção de um museu aos moldes da Fundação Iberê Camargo tem potencial para se transformar em um espetáculo em si.

Dentre os impactos desejados, busca-se conseguir o maior espaço possível nos meios de comunicação, transformando a construção do edifício em notícia, espetáculo, em signo, pelo simples fato de ser a autoria deste ou daquele profissional. Esta estratégia é facilmente verificada nos casos do Guggenheim

117 GONCALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo:

Bilbao, com a escolha do arquiteto Frank Owen Gehry; no Museu de Arte Contemporânea de Barcelona, com Richard Meyer, na Cidade das Artes e da Ciência, em Valência, com Santiago Calatrava, também autor do Museu de Arte de Milwaukee (...) ou ainda o projeto do novo Whitney Museum de Nova York, de autoria de Rem Koolhaas (...). No Brasil, pode-se observar o reflexo desse fato nos recentes casos do Museu de Arte Contemporânea de Niterói e no novo museu de Curitiba (...). 118

Ao destacar o debate em torno do cenário de espetacularização da arquitetura dos museus e a busca por uma equivalência do edifício como obra de arte, deve-se destacar que o projeto em particular no nosso estudo de caso, o da sede da Fundação Iberê Camargo, descarta exageros formais, privilegiando uma investigação sobre o espaço da arte e sua articulação com o contexto, com salas neutras e flexíveis para receber diferentes modos e conteúdos de exposição. Como comentou Siza:

Nos museus de arte contemporânea, o problema é cada vez mais o da organização de exposições temporárias. Mesmo nos museus que possuem boas coleções permanentes, e organizam manifestações temporárias a partir de suas coleções. O problema dos museus não é criar um cenário para obras específicas, mas espaços que permitam diferentes utilizações; é preciso flexibilidade e certa neutralidade. Mas não a neutralidade desejada por alguns conservadores, que é uma não arquitetura ou um vazio. Penso que um museu deve possuir o seu caráter próprio e manter as ligações com o meio a que pertence. Deve igualmente ser capaz de acolher o que quer que seja.119

Apesar da tendência contemporânea ao espetáculo, alimentada pela cultura de consumo e pela estetização geral promovida pela pós-modernidade, a arquitetura do museu/monumento pode se manter como espaço para criação e entendimento crítico a respeito da arte. Isso só será possível com uma gestão e uma política cultural que dêem conta da problemática que envolve a atividade dessas instituições na atual situação do campo artístico contemporâneo.

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FALCÃO, Fernando Antônio Ribeiro. Uma reflexão sobre a utilização de museus como vetores de operações urbanas: os casos dos museus Iberê Camargo e Guggenheim Bilbao. 123 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2003.

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