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O antigo e o novo museu: do colecionismo às funções sociais

Apêndice X – Depoimento de Justo Werlang

2.1 A configuração do museu contemporâneo

2.1.1 O antigo e o novo museu: do colecionismo às funções sociais

A origem da sede da Fundação Iberê Camargo se situa em um momento apontado como a segunda era dos museus, na qual se coloca em prática uma profunda revisão de seu papel, do redimensionamento de sua relação com a sociedade e da aproximação do público por meio de estratégias de mediação e recepção estética.88 Tal era é marcada por mudanças significativas que deram prestígio aos museus e os transformaram em instituições culturais referenciais para as cidades no contexto da globalização cultural. Em tese, o modelo institucional que se desenvolveu está vinculado à expansão do mercado de bens simbólicos e de uma indústria cultural das exposições de arte, ao mesmo tempo marcado por modos de mediação operacionalizados com base em princípios democráticos por meio de processos e relações mais horizontais na articulação com os públicos, inclusive os formados por minorias e marginalizados do sistema artístico.89

Em um texto voltado às relações entre museu e arte contemporânea, publicado na revista do Atelier Livre de Porto Alegre, o artista Almandrade defende que o primeiro deva constituir um espaço de pensamento crítico e educativo, freqüentado por um público ativo e não mero observador do que está exposto. Entretanto, a ideia de um modelo de museu adequado para a situação contemporânea esbarra na difícil conciliação entre cultura e economia, na medida em que a responsabilidade delegada à iniciativa privada encaminha o estabelecimento de uma indústria de museus voltada prioritariamente ao serviço de entretenimento e turismo, alimentando somente o setor econômico e deixando de lado a memória, a história e a experiência que se reflete no exercício de cidadania. Diante disso, seria fundamental o amparo de uma política pública de cultura que mobilize técnicos e intelectuais de forma a estabelecer relações mais sólidas com a comunidade onde dado museu existe e realiza suas atividades.

88

Cf. GONCALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo: Edusp/FAPESP, 2004.

89 Cf. SPRICIGO, Vinícius. Modos de representação da Bienal de São Paulo: a passagem do internacionalismo

Originário do ato de colecionar e preservar, os museus chegaram ao século XXI como instituições indispensáveis à vida e à memória das comunidades, pelo menos em teoria. Inseridos na vida das cidades e amparados por políticas públicas de cultura, muito bem argumentadas no papel, mas sem atrativos para atrair o grande público, que prefere o espetáculo dos shoppings ou o paraíso dos templos evangélicos, que oferecerem muito mais em troca de um pequeno dízimo: a memória do futuro, a esperança de vida eterna.90

De forma a situar o estatuto do museu na atual configuração contemporânea, é útil colocar em perspectiva a trajetória dessas instituições. Desde sua origem, diversos conceitos e configurações deram conta da ideia a respeito do lugar da arte, algo que passou por um constante processo de alterações com as novas solicitações artísticas, bem como com as questões de arquitetura e as condições político-econômicas e sócio-culturais. De local sedimentado para a contemplação por parte apenas de iniciados, os espaços expositivos passaram a oferecer entretenimento e espetáculos para grandes públicos.

A origem do museu envolve o desenvolvimento das práticas de colecionismo, acervo e exibição pública ao longo de séculos. A palavra tem origem na Grécia antiga, referindo-se às musas, filhas de Zeus e Mnemosine, a divindade da memória. O Museion é a casa das musas, deusas ligadas às práticas culturais e destinadas aos cânticos. O primeiro museu teria surgido em Alexandria, no Egito, no século II a.C., ligado à preservação do saber enciclopédico. Os egípcios já possuíam o hábito do colecionismo de diversos tipos de objetos e conhecimentos - de instrumentos cirúrgicos e astronômicos a peles de animais raros.

No fim da Idade Antiga, os romanos foram os grandes colecionadores, em função da expansão dos domínios imperiais, o que fez com que reunissem vasta diversidade de objetos vindos dos mais variados territórios conquistados. Na Idade Média, intensifica-se a prática de reunir obras de arte em um determinado local, embora as coleções e os acervos tenham se tornado mais restritos, na medida em que passaram a pertencer aos domínios religioso e monárquico. Obras de arte, objetos preciosos, relíquias e raridades eram exibidos nos corredores e nos jardins dos palácios, disponíveis para um seleto grupo. Considerados tesouros, garantiam aos seus colecionadores uma posição social de destaque e status, alimentando disputas e competições.

90 ALMANDRADE. “O museu e a arte contemporânea”. As partes - revista do Atelier Livre da Prefeitura de Porto

Com o Renascimento, na Idade Moderna, o colecionismo ganhou ênfase por parte de príncipes e burgueses interessados em antigüidade, arte, filosofia, literatura e tudo o que pudesse agregar conhecimento e valores formativos e científicos ao homem interessado nos clássicos retomados da cultura grega. Por volta dos séculos XV e XVI, proliferaram-se os

gabinetes de curiosidades e as coleções científicas, então formadas por todo o tipo de

objetos e amostras reunidas nas catedrais e nos palácios. A criação da Galeria Uffizi, no final do Cinquecento, é considerada hoje o primeiro registro de museu de arte da história.91 O colecionismo se concretizou como origem da concepção de museu de arte em fins do século XVIII, quando os tesouros das catedrais e das coleções particulares transformaram-se em museus públicos. Assim, desenvolve-se de fato a chamada primeira era dos museus com a abertura do British Museum, em 1753, e do Louvre, em 1793.92

Desde então, os museus se multiplicaram pelo planeta, acompanhando os desdobramentos das transformações artísticas, que acabaram lhes imputando também questionamentos e mudanças ao longo de sua história. Essa trajetória, cabe ressaltar, foi acompanhada por mudanças entre o acesso privado e público aos objetos artísticos, dicotomia que remete diretamente à finalidade dos museus na contemporaneidade que privilegiam uma atuação a serviço do público. O acesso restrito a privilegiados dá lugar, ao longo dos séculos, à ideia de público como razão principal da existência dessas instituições.

Entretanto, diante das complexas relações entre museus e mercado, a obra artística está submetida à possibilidade de ser operacionalizada como mercadoria, espécie de moeda de troca dinamizada por estratégias de marketing cultural praticadas por empresas e instituições. A esse aspecto do culturalismo de mercado, já apresentado no capítulo anterior, deve-se acrescentar a problemática que envolve a crescente preocupação pelo aumento do público em detrimento da qualidade; ou da valorização de conteúdos artísticos facilmente acessíveis em lugar do ato de proporcionar experiências mais críticas.

Na atualidade, os museus também passaram a reconhecer seu papel social em relação às comunidades onde estão inseridas – ainda que nem sempre cumpram essa missão. Ao mesmo tempo em que preservam a herança estética e cultural de um passado, possuem o papel de resignificar o presente e especular o futuro. As novas tendências

91

RAMOS, Alexandre Dias (org.). Sobre o ofício do curador. Porto Alegre: Zouk, 2010, p. 9.

92 LEENHARDT, Jacques. As novas funções sociais do museu. Disponível no endereço eletrônico

artísticas que emergem especialmente nos anos 1990, após a Queda do Muro de Berlim, registram a onda de mudanças sociais e políticas, buscando um relacionamento mais oblíquo com a sociedade. Esse mesmo período é marcado por uma nova crítica aos sistemas de

produção e distribuição da arte contemporânea, dirigida não só às instituições, mas a todas

as estruturas de validação das obras e das práticas artísticas.93

O museu de matriz moderna, desenvolvido entre os séculos XVIII e XIX, foi concebido como instituição pública voltada a um papel social e educacional, mas se alterou no decorrer do século XX com a autonomização da arte moderna. Nos anos 1960, a nova

museologia passou a defender o museu como um instrumento que provoque mudanças e

desenvolvimento social, “propondo que sua organização e suas atividades estejam baseadas nos problemas e demandas da sociedade, e não exclusivamente em suas coleções”.94

Desde sua fundação, em 1946, o International Council of Museums (ICOM) vem discutindo as transformações relativas ao conceito de museu, tentando acompanhar as principais transformações ocorridas, sobretudo, com o advento da eletrônica, da informática e da biotecnologia. A partir de uma perspectiva contemporânea de ruptura com a ideia de culturas hegemônicas e horizontalizando o programa estético, as novas concepções de museu passaram a valorizar e incorporar o maior número de manifestações culturais. O museu especializado e intocado do passado dá lugar ao museu aberto às diferenças sociais e às demandas de diferentes públicos.

Os museus são questionados como instrumento cultural e acusados de serem instituições passivas, voltadas para as camadas sociais mais privilegiadas. Pretende- se, com esse “grito de guerra”, arejar os museus e a arte nos museus. (...) O ICOM de 1974 propõe a definição de museu como “uma instituição permanente, sem finalidade lucrativa, a serviço da sociedade e de seu desenvolvimento, aberta ao público; que adquire, conserva, investiga, comunica e exibe, para fins de estudo, de educação e de deleite, testemunhos materiais do homem e do seu entorno.95

Essa colocação é útil ao proporcionar um ponto de vista crítico para a atividade realizada pelas instituições museológicas contemporâneas. No caso da Fundação Iberê Camargo, é fundamental problematizar se ou o quanto o seu programa se volta aos

93

MEYRIC-HUGHES, Henry. “A história e a importância da Bienal como instrumento de globalização”. In: BERTOLI, Mariza; STIGGER, Verônica (orgs). Arte, crítica e mundialização. São Paulo: ABCA – Imprensa Oficial do Estado, 2008.

94

AIDAR, Gabriela. O papel social dos museus. Ciências e Letras – Revista da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras, Porto Alegre, n. 31, p. 53-62, jan/jun, 2002, p. 53.

95 GONCALVES, Lisbeth Ruth Rebollo. Entre cenografias: o museu e a exposição de arte no século XX. São Paulo:

interesses das corporações que a administram. E se a instituição se dedica a atender as demandas culturais da sociedade onde está inserida, cumprindo, assim, uma finalidade social de cidadania em uma perspectiva democrática. Para isso, é necessário se pautar pela função crítica do museu, de forma a dissolver a noção de consumo que permeia as atividades museológicas.96

Para concluir as colocações a respeito da revisão do papel dos museus na contemporaneidade, é importante ainda ressaltar as diferenças existentes nas concepções e aplicações dos temos inclusão social e desenvolvimento de público:

O desenvolvimento de públicos pode ser entendido como a identificação das diferentes barreiras que acabam por excluir indivíduos ou grupos da freqüência aos museus, e o posterior desenvolvimento de estratégias que superem essas barreiras, trazendo para os museus públicos tradicionalmente não visitantes. Isso se dá pela eliminação dos obstáculos para o seu acesso, obstáculos que podem ser físicos, financeiros, atitudinais etc. Por sua vez, a inclusão social propõe, para além de uma maior acessibilidade às instituições museais, o desenvolvimento de ações culturais que tenham impacto político, social e econômico, e que podem ter alcance tanto a curto quanto a longo prazo.97

As práticas sociais inclusivas por parte dos museus não envolvem a eliminação de suas atividades tradicionais, mas, sim, mudanças na organização institucional para dar conta de novas demandas. Essa revisão permite a reflexão de práticas estabelecidas para que as mesmas sejam adequadas à realidade dada em cada contexto. Nessa visão, colecionar, documentar, conservar e interpretar seriam práticas e não finalidades dos museus, de forma a acompanhar programas que contribuam para a igualdade social, o fortalecimento dos indivíduos e da comunidades e para os processos democráticos na sociedade.

Entretanto, uma das principais barreiras para que isso se efetive em instituições como a Fundação Iberê Camargo, a propósito do nosso estudo, é o fato de as decisões serem tomadas por um grupo, sem a participação direta de outros setores do tecido social e sem a divulgação de uma política cultural com clareza, critérios, metas e objetivos. Por enquanto, o Programa Educativo é o depositário das expectativas relacionadas aos processos de inclusão social por parte da FIC.

96

Cf. LEENHARDT, Jacques. As novas funções sociais do museu. Disponível no endereço eletrônico http://www.joycelarronda.com.br/2bienal/museupor.htm. Acesso em 9/10/2011.

97 AIDAR, Gabriela. O papel social dos museus. Ciências e Letras – Revista da Faculdade Porto-Alegrense de