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CAPÍTULO 1 O ESTADO BRASILEIRO E AS POLÍTICAS PÚBLICAS DE

1.1 ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O artigo 1º da Constituição Federal de 19883 dispõe que a República

Federativa do Brasil constitui-se um Estado Democrático de Direito, cujo poder emana do povo.

Entende-se que o Estado é de direito no sentido de estabelecer limite na dicotomia do direito público/privado: enquanto o direito público através de leis limita e restringe o poder e o domínio do Estado em favor da liberdade do indivíduo e da realização do direito material, o direito privado é detentor de verdades racionalmente positivadas, codificadas em um documento legal que organiza toda a atividade dos indivíduos em suas inter-relações privadas e protegidas da ingerência estatal.

A concepção do Estado de Direito construiu ao longo da história moderna diferentes modelos de Estado, desde o Estado Liberal, no século XIX, a partir da Revolução Francesa passando posteriormente para o Estado Social ou Estado Providência, e posteriormente, para o de Bem-estar Social e Estado Democrático de Direito, a partir de meados do século XX.

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Artigo 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V - o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.

As transformações decorrem das mudanças conceptivas do Estado de Direito instituído, moldando-se conforme os anseios da sociedade. Este processo acontece, embora entenda-se Estado de Direito como aquele que submete o governo e sociedade às leis, como forma de evitar governos absolutistas e restringir o poder e domínio estatal em prol da liberdade do indivíduo, preservando a soberania sob a égide das normas, como estatutos que representam a vontade e interesse dos cidadãos.

Após o término da Primeira Guerra Mundial (1914-1918), este modelo de Estado de Direito sofreu influência da transformação da sociedade moderna. Foi um período de transformações, em que vigora a crise da democracia e a impopularidade do Estado de Direito, considerado como um estado estático, com normas obsoletas, não adequadas às transformações econômicas e sociais que passam a ocorrer.

A transformação advinda disso decorre das novas condições sociais da civilização industrial e pós-industrial visando também à sobrevivência do Estado nos

tempos modernos.4 O Estado passa a ser vinculado com as normas voltadas às

garantias sociais absolutas e essenciais do ser humano.

Morais (1996, p. 80) comenta que “a atuação do Estado passa a ter um conteúdo de mudança do status quo, a lei aparecendo como um instrumento de transformação por incorporar um papel simbólico prospectivo de manutenção do espaço vital da humanidade.” Nesta atuação o ator principal é a coletividade difusa a partir da compreensão da partilha comum de destinos.

Silva (2009) comenta que para esta constatação, foi preciso compatibilizar, em um mesmo sistema dois elementos: o capitalismo, como forma de produção, e a consecução do bem-estar social geral, servindo de base ao neocapitalismo típico do Welfare State.

A partir de então, o Estado Social de Direito apresentou como traço

distintivo a empresarialidade5 e a primazia da função social da propriedade6. Os

direitos individuais são limitados em prol da sociedade (SOUZA, 1999).

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A Revolução Industrial impôs a necessidade de uma previdência social, em função dos riscos que apresentava o que levou a Inglaterra a criar uma legislação para a atividade fabril, enquanto a Alemanha desenvolveu um sistema de previdência, consolidado em 1889, que incluía seguro obrigatório contra doenças, velhice e invalidez, modelo copiado posteriormente por outros países como Dinamarca, Bélgica e Suíça (DAL BOSCO, 2007, p. 47).

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O estado participa com um capital privado em empresas mistas, promovendo a estatização das empresas.

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No entanto, o Estado Social de Direito sofre ambigüidades, primeiramente em virtude das diferentes conotações que possam ser dadas à palavra social, como destaca Silva (2009) que “o social” variava de acordo com os regimes políticos antagônicos adotados por cada nação, e pela condição de poder mascarar as medidas conforme os interesses capitalistas. Por outro lado, apesar da conjunção que procura investir uma conotação social ao Estado, não se pode negar que o Estado de Direito, como Estado Liberal de Direito ou como Estado Social de Direito, nem sempre caracterizava “Estado Democrático” que impõe a participação efetiva e

operante do povo7.

Neste contexto pode acontecer aquilo que Leal (1997, p. 184) observa em relação à efetivação de democracia, quando diz

... a garantia dos direitos fundamentais e da própria democracia, sob a ótica jurídica, não está na lei, mas no modo como se aplica a lei, pois é de relevância política e prática não apenas saber o que está escrito, mas principalmente como vem sendo tomadas as decisões a respeito da matéria.

Se os poderes instituídos não agirem conforme o cumprimento da lei há uma exigência jurídica com força normativa para este cumprimento. Isto segundo Lefort (1991) não significa que o Estado de Direito está sempre a servir a todos de forma democrática, pois que deve ser considerada a “invenção democrática”, o que significa que há na sociedade um processo contínuo de refazimento da democracia, ou seja, várias formas são erigidas para consolidar os direitos adquiridos e mais, novos direitos estão sempre surgindo.

A construção do Estado Democrático de Direito, como Estado de legitimidade de uma sociedade democrática, permite a efetiva participação do povo nos mecanismos de controle das decisões, e nos rendimentos da produção. Na visão de Bobbio (2000), a democracia designa a forma de governo na qual o poder político é exercido pelo povo. No Estado Democrático de Direito impõe-se uma

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“O Estado social depara-se então com elementos liberais, mas enfrenta uma antinomia de difícil resolução: de um lado, deve oferecer o bem-estar comum e a justiça social da forma mais completa possível, de outro, só atinge tais objetivos em detrimento de direitos e da liberdade dos indivíduos. A incapacidade do sistema de responder às necessidades da realidade econômica e social transformou a ação estatal, liberal e alheia, em social e interventora, provocando o aumento desmedido das funções administrativas, abrangendo quase todos os ramos da atividade de interesse coletivo.” (DAL BOSCO, 2007, p. 48).

participação real do povo nos interesses públicos. O Estado não serve apenas como mero objeto de realização do poder, mas um sujeito ativo na convivência social.

A disposição do artigo 1º da Constituição Federal de 1988 de que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático que vincula o Estado em preceitos democráticos e às normas do Direito. Atente-se que neste mesmo artigo, o parágrafo único ao dispor que o poder emana do povo foi traçado pelo constituinte um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: a construção de uma sociedade livre, justa, solidária e participativa, porque a participação do povo seria integrada no processo decisório e na formação dos atos de governo; e também uma sociedade pluralista porque deve respeitar a pluralidade de idéias, culturas e etnias, pressupondo a conciliação de opiniões e pensamentos divergentes e a convivência de formas de organização e interesses diferentes na sociedade.

O Poder Constituinte brasileiro traçou o perfil do Estado Democrático de Direito sustentado pelo poder de coerção que representa a burocracia e a legalidade, cuja construção possui raízes no Estado liberal defendido pelo ideal democrático.8

Este traçado do constituinte depara-se com a realidade fática de que o Estado é pautado em normas da lei com limitações de poder, submetido ao princípio da legalidade. No Brasil considera-se o conflito legítimo, não só trabalhando politicamente os diversos interesses e necessidades particulares existentes na sociedade, como pela instituição dos direitos universais reconhecidos formalmente.

Ressalta-se que o Brasil representa uma sociedade em que a desigualdade social é expressiva, o que dificulta a universalização e alcance da plena igualdade. Os conflitos do modelo concebido pelo constituinte brasileiro revelam-se quando se garante uma igualdade legal, em uma sociedade de desiguais, não há equivalência de possibilidades de participação e aproveitamento das políticas públicas.

Costa (2006, p. 141) comenta que a construção de democracia no Brasil, após a transição do regime militar para o democrático, ocorreu sob “um clima de anseios pela igualdade”. Estes anseios foram representados pelos movimentos sociais, pela articulação política da classe trabalhadora e dos setores empresariais

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O ideal democrático instituído pela Constituição Federal de 1988 reflete que o conteúdo da legalidade exigido no Estado Democrático de Direito, assume a forma de busca efetiva da concretização da igualdade, não pela generalidade do comando normativo, mas pela realização, através dele, de intervenções que impliquem diretamente uma alteração na situação da comunidade. (MORAIS, 1996, p. 74).

em prol da igualdade social e da construção de um novo patamar de relações sociais.

O resultado desta situação foi a construção de “um novo pacto político assentado sobre a mesma velha estrutura social”, contudo, resultaram alguns pontos positivos, se considerar que “a sociedade pode voltar à cena com seus conflitos e anseios...”(COSTA, 2006, p. 143).

Este cenário pode ser visualizado pelo surgimento de uma administração pública de prestações dentro do Estado, não apenas com uma atuação esporádica e ocasional, mas complexa, planejada, regular e duradoura. Nas palavras de Pessoa (2003) aquela administração unificada e hierarquizada que existia no regime militar cede lugar para uma administração descentralizada e desconcentrada do Estado social, com o surgimento das autarquias, fundações, e outros entes com autonomia de atuação.

Pessoa (2003) avalia que isso reflete uma crise do Estado social, diminui o tamanho do Estado e surge a figura do Estado Regulador, na qual deixa de intervir diretamente nas ações de cunho social e econômico e passa a disciplinar a atuação dos particulares. O Estado passa a ser representado por uma atividade regulatória com expressiva centralidade propulsora da redefinição das relações entre as novas modalidades de relacionamento do público/privado, bem como de novas relações entre diferentes segmentos do aparelho do Estado.

Entre os aspectos que exigem do Estado contemporâneo exercer suas funções reguladoras destaca-se a implementação de políticas públicas, servindo como exemplo, àquelas relacionadas à preservação do meio ambiente

ecologicamente equilibrado, como determina o artigo 2259 da Constituição Federal

de 1988.

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Artigo 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético; III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção; IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização

Neste artigo o constituinte impôs ao Estado e à coletividade o dever de preservação e defesa do meio ambiente, com aplicação de medidas para que haja efetividade. Destaque-se que todas as normas contidas na Constituição Federal de 1988 implicam em um comando efetivo e que exige cumprimento. Mesmo no caso das normas constitucionais programáticas, entendidas como aquelas que estabelecem um programa de atuação do Estado, tem o condão de estabelecer uma diretriz, que embora dependa da atuação futura dos órgãos constituídos, possui automática eficácia jurídica. O que diferencia é o grau de eficácia entre as diferentes normas, que podem ser auto-aplicáveis, ou não, dependentes de regulamentação, conhecida como eficácia limitada.

Importante lembrar que em um Estado Democrático de Direito, as políticas públicas, uma vez normatizadas não são passíveis de abstenção, ou seja, não é permitido que a sua implementação submeta-se ao alvitre ou não daqueles a quem compete instituí-las. Impõe-se a obediência e observância pelos agentes detentores

da obrigação de sua implantação. São as chamadas normas pragmáticas10.

Reportando ao artigo 225 da Constituição Federal de 1988, verifica-se que ao mesmo tempo que declara o direito a todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, e que este bem é de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, impõe ao Poder Público e à própria coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo. Nos incisos do §1º assegura-se a efetividade desse direito, incumbindo ao poder público diversos aspectos de preservação e restauração dos processos ecológicos, tanto a respeito dos recursos naturais quando ao patrimônio genético.

pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade. § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. § 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.

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Silva (2009) que melhor classifica as normas constitucionais, entende que as de princípio programático são de eficácia limitada porque necessitam de regulamentação legislativa complementar, pois ao invés de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, o constituinte limita-se traçar os princípios a serem cumpridos pelos órgãos legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos, como programas das respectivas atuações, visando à realização dos fins sociais do Estado, o que representa apenas um programa de atuação estatal.

Nota-se que ao poder público é reservada a observância da norma, mas é conclamada a sociedade para a efetivação da norma.

Sob estas determinações o Estado brasileiro revela uma relação da sociedade com a gestão pública, sendo que esta última está associada à regulação. Ocorre assim uma descentralização e redefinição das funções do Estado, colocando a sociedade também como responsável pelo alcance do interesse público. Esta transferência de parte das tarefas sociais para os sujeitos privados não caracteriza o abandono das responsabilidades do Estado, mas uma transformação de Estado

executor para o regulador.

Neste sentido, pode-se entender que as regulamentações legais destinadas à criação de institutos e implementação de políticas públicas de recursos hídricos - tema da presente pesquisa - tem o condão de conferir a eficácia da norma constitucional de defesa ao meio-ambiente, projetando a idéia de um Estado de Direito que passou por profundas reformas no decorrer da história, tendo como a mais recente a que ocorreu na década de 1990.