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3 OS TRÊS ESTADOS DO CAPITAL JURÍDICO SEGUNDO A SOCIOLOGIA DO

3.4 O ESTADO INCORPORADO

O capital jurídico incorporado corresponde a um resultado de um processo de socialização mediante o qual os agentes jurídicos puderam adquirir determinadas características distintas que contribuem para defini-los, para utilizar um conceito da sociologia de Weber, como “grupo de status”,78 ou seja, como um grupo que, independentemente de os seus componentes estarem ou não organizados oficialmente em organização, define-se pelo pertencimento por parte dos seus componentes de determinadas propriedades, como a linguagem diferenciada,79 um sentido de honra distinto, por uma hexis corporal específica e por um modo diferenciado de perceber e construir cognitivamente o mundo.

78 WEBER, Max. Sociologia das religiões. Trad. Cláudio J. A. Rodrigues. 1. ed. São Paulo: Ícone, 2010. p. 46. 79 É preciso frisar que longe de ser uma questão estática e definida como os juristas devem falar ou escrever, ela corresponde a uma propriedade sempre posta em jogo pelos próprios envolvidos. Segue um vídeo onde um advogado, tentando responder a “como se tornar um advogado melhor”, questiona alguns termos empregados pelos advogados alegando que eles deveriam se ater aos termos que “existem em português”. Disponível em: http://www.migalhas.com.br/Gramatigalhas/10,MI225007,31047-Como+se+tornar+um+advogado+melhor. Acesso em: 20 abr. 2017.

Neste caso, a própria linguagem jurídica corresponde a um produto que está constantemente em jogo e que pode variar ao sabor da formação, da origem familiar e do habitus de classe. É assim que a tendência para intensificar a formalização no emprego dos termos ou para a atenuar pode variar consideravelmente. Seria preciso realizar essa pergunta “como se tornar um advogado melhor?” a vários advogados para então se ter uma ideia da quantidade de respostas que tendem a sobrevalorizar a questão da linguagem jurídica.

Considerando que a aquisição dessas características estilísticas80 que constituem o capital jurídico não corresponde a um resultado de um projeto plenamente consciente e estritamente pessoal ou individual, é preciso lembrar que ele corresponde a um produto, em grande medida, aquém de um projeto plenamente consciente de interiorização de uma determinada estrutura social. É assim que se pode afirmar, com Durkheim, que “nem nosso temperamento, nem as ideias e os hábitos que nos foram inculcados pela educação são obra pessoal.”81

E o processo de inculcação do capital jurídico se dá tanto através de todo um conjunto de conhecimentos e técnicas jurídicas apreendidos nas Faculdades de Direito, como também na própria prática forense, a partir da qual os agentes podem adquirir ou aprimorar o senso do jogo jurídico, essa espécie de “faro social” propriamente jurídico que permite que se saiba o tempo certo para agir. É assim que alguns escritores advogados podem colocar no sétimo lugar entre “os conselhos aos jovens advogados” a necessidade de aprender “a dominar a arte de saber o tempo certo”.82

Como um tipo de capital ao mesmo tempo cultural e simbólico, visto que o seu reconhecimento se apoia tanto no que diz respeito a um conjunto de conhecimentos e em um saber fazer jurídico, quanto na autoridade garantida pelo Estado que contribui para reproduzir a crença que os profanos podem ter na autoridade dos produtos jurídicos, essa forma de capital incorporado “é um ter que se tornou um ser, uma propriedade que se fez corpo e tronou-se parte integrante da ‘pessoa’ um habitus”.83

Enquanto habitus jurídico, esse capital designa também o resultado de um aprendizado pelo corpo, e não apenas mental. É assim que ele pode se mostrar como a expressão de uma postura referente a “princípios práticos do estilo de vida dominante”,84

visível, por exemplo, nas próprias gesticulações atreladas aos mais diversos discursos jurídicos, sejam eles apelativos ou acusativos. O emprego de uma linguagem protocolar atrelada ao uso de roupas propriamente formais que pode ser vista como uma extensão do trabalho de formalização jurídica não deixa de ser uma das formas mais expressas e características desse capital de tipo jurídico. A questão da formalização no que diz respeito ao modo de se vestir e se portar diante

80 Pode-se encontrar um extenso quadro satírico sobre a hexis corporal dos juristas e suas propriedades estilísticas no quadro intitulado les gens de justice de Honoré Daumier.

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DURKHEIM, Émile. A educação moral. Trad. Raquel Weiss. Petrópolis: Vozes, 2008. p. 237. 82

Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jun-03/doze-conselhos-jovens-advogados-atingirem- sucesso#author. Acesso em: 20 abr. 2017.

83 BOURDIEU, Pierre. Os três estados do capital cultural. Trad. Magali de Castro. In.: NOGUEIRA, Maria Alice e CATANI, Afrânio (Org.). Escritos de educação. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2013. p. 83.

84 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 2. ed. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 1998, p. 246.

de um Tribunal tendem a reproduzir as propriedades estilísticas características da classe dominante. A adoção de um modo de falar e de se vestir correspondem,85 em grande parte, a uma retradução do modo de vida dominante por parte da cultura jurídica e das exigências tácitas do campo jurídico.

O capital jurídico, nesse aspecto, pode ser tomado como uma forma eufemizada da cultura dominante, onde aqueles já inseridos em um ambiente familiar em que as propriedades estilísticas “elegantes”, “sóbrias” e “discretas” podem ser adquiridas de forma ainda precoce podem obter mais probabilidades de sucesso nos mais diversos rituais de apresentação de si típicos do universo jurídico.

O capital jurídico enquanto um tipo de reconstrução de uma cultura de classe, principalmente em matéria de emprego de uma linguagem reconhecida largamente como distinta e de um modo de falar e de se vestir que nada tem a opor ao modo de falar e de se

vestir da cultura dominante, pode ser compreendido como um exemplo indicador da tendência própria do campo jurídico “para universalizar o seu próprio estilo de vida, vivido e largamente reconhecido como exemplar, o qual é um dos efeitos do etnocentrismo dos dominantes”.86

Em verdade, quando se trata do capital de tipo jurídico em sua forma incorporada, se está tratando de um habitus específico, quer dizer, de um conjunto de categorias incorporadas a partir das quais os agentes engajados percebem, apreendem, constroem cognitivamente o mundo e nele atuam. O habitus é um conjunto de princípios incorporados, como uma moral realizada, que orienta as ações independentemente da consciência. É o princípio das “escolhas” que não é deliberadamente escolhido. Ele permite se “compreender a lógica de todas as ações que são razoáveis sem ser o produto de um plano razoável”.87

E é justamente esse capital jurídico na forma incorporada, enquanto um habitus, que constitui um grupo de

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Pode-se encontrar, em uma rápida pesquisa na internet, inúmeros sites e blogs sobre informações e dicas aos advogados iniciantes ou não de como se vestir. A definição do modo reconhecido pelos envolvidos como “apropriado” de se vestir, nesse caso, pode corresponder a um dos princípios mais visíveis de homogeneização entre os profissionais da formalização jurídica enquanto um grupo de status distinto. Os vários rituais de apresentação de si estão acompanhados de um conjunto de propriedades estilísticas que quase nada tem a opor ao estilo das classes dominantes. Pode-se encontrar um relato sobre como deve se vestir um advogado nas seguintes palavras: “A profissão que escolhemos exige trajes diferenciados. Não tem como fugir. A regra é se vestir com elegância, sobriedade e discrição. Prova disso é que se chega algum advogado um pouco fora do padrão, os outros ficam olhando e julgando sim. Se a primeira impressão é a que fica, deixe uma boa para o seu empregador, clientes, colegas de profissão e juízes.” Disponível em: http://www.manualdoadvogado.com.br/2015/11/como-um-advogado-deve-se-vestir.html. Acesso em: 20 ago. 2016. É preciso não se ignorar os efeitos de universalização de uma cultura de uma determinada classe como a expressão de um modo mais “elegante”, “sóbrio” e “discreto”. É nesse sentido onde se pode sustentar um efeito de homologia entre a cultura da classe dominante e algumas propriedades estilísticas de apresentação de si relativas ao capital jurídico.

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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad.: Fernando Tomaz. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 247.

agentes profissionais que, muito embora possam sustentar posições e opiniões diferentes ou opostas, comungam dos pressupostos jurídicos fundamentais para a permanência do universo onde acontecem as lutas de concorrência entre os juristas. Eles compartilham do ponto de honra que os definem como juristas, da doxa basilar do campo jurídico que é tomada como evidente e, por isso mesmo, não questionada pelos envolvidos e possuídos por aquilo que eles possuem, quer dizer, pelo capital jurídico. O habitus jurídico corresponde a um produto de uma história e dos efeitos das determinantes do mundo social que contribuem para moldas as práticas e o modo de pensar do agente social.

A padronização de uma formação jurídica acaba contribuindo para a produção de um habitus com um significativo nível de homogeneidade. O capital jurídico enquanto propriedade interiorizada no agente social corresponde a um senso prático, a um saber fazer que alia conhecimento teórico ou doutrinário, e a participação da formação acadêmica se mostra relevante no processo de aquisição desse conhecimento mais livresco, e prático, neste sentido a formação forense se mostra imprescindível para a formação de um “bom jurista”, como aquele que conhece os labirintos materiais e simbólicos do mundo burocrático e jurídico.