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3 OS TRÊS ESTADOS DO CAPITAL JURÍDICO SEGUNDO A SOCIOLOGIA DO

3.1 SOBRE O CAPITAL JURÍDICO

Na sociologia de Pierre Bourdieu pode-se afirmar que cada campo específico está relacionado a emergência de um determinado capital que foi e é fundamental para a produção e reprodução das relações de concorrência que existem em seu interior. Neste caso, a emergência dos mais diferentes campos está ligada a constituição de determinados tipos de “competências” que funcionam como alvo e arma nessas relações de concorrência que se desenrolam no campo. Cada campo específico está relacionado a um tipo determinado de capital a partir do qual se desenrolam as relações de força ora para transformar ora para conservar os processos de distribuição do capital específico do campo.

Uma das funções mais importantes dos campos é a ruptura com a dicotomia externo/interno (quer dizer, com a redução das relações próprias do campo a meros reflexos das relações econômicas ou políticas - externalismo - , ou com a redução das relações características do campo à relações puras, ou seja, totalmente alheias as pressões do mundo externo - internalismo ) os capitais específicos, assim, não correspondem a propriedades puras, nem mesmo a meros efeitos das macroestruturas heterônomas ao campo. Tanto os campos quanto os diferentes tipos de capitais específicos são relativamente autônomos. Isso quer dizer que muito embora eles sofram os efeitos das “pressões externas”581 eles possuem um certo nível de independência que corresponde, na verdade, ao somatório das conquistas históricas e simbólicas das próprias lutas para constituir um espaço específico de relações de força. O “capital jurídico”59,nesse caso, corresponde a uma propriedade específica que serve como instrumento de luta e como alvo no interior do “campo jurídico”.60

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58 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 212.

59 Ibid., p. 219. 60 Ibid., p. 212.

que tanto o campo jurídico quanto o capital jurídico possuem uma independência relativa frente as pressões econômicas e políticas é afirmar que eles não correspondem a entidades puras, muito embora possuam determinadas características que os distinguem de outros campos e de outras formas de capitais.61

Considerando que os campos e os seus respectivos capitais visam dar conta das diferentes formas do exercício do poder simbólico, para Bourdieu negar a consideração da “autonomia e a dependência relativas das relações simbólicas frente às relações de força resumir-se-ia a negar a possibilidade de uma ciência sociológica.”62 Quanto mais heterônomo for um campo, mais as pressões externas mostram-se enquanto tais como alvos e instrumentos com os quais os agentes podem triunfar. E quanto mais um campo e uma forma específica conseguirem triunfar, transformar a partir de sua própria lógica as pressões externas, mais autônomo ele será. No caso do capital jurídico, o seu nível de autonomia está relacionado a sua capacidade de transfigurar as forças políticas e econômicas que determinam as lutas reguladas entre os profissionais do direito. Na medida em que esse capital de tipo jurídico reflete em maior medida as lutas de classe, as pressões do mundo econômico e político, pode- se afirmar que ele possui um baixo nível de autonomia frente as pressões heterônomas.

O capital jurídico corresponde não apenas a um tipo de conhecimento específico exigido para integrar o quadro dos profissionais que constituem o “corpo dos juristas”63

como um conjunto de agentes “investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (...) um copus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social”64

mas também a uma linguagem específica, “a linguagem jurídica”65

de tipo protocolar, a “adoção de uma postura global”66 e a forma “incorporada do sistema de princípios de visão e de divisão”67

a partir do qual questões até mesmo mais viscerais da existência podem ser transformados em problemas ou questões

61 O capital cultural pode ser dividido na sociologia de Bourdieu, no mínimo, de duas maneiras no que diz respeito a sua forma de aquisição: os de origem propriamente escolar e os de origem não escolar, ou seja, familiar. O primeiro abrange todo um conjunto dos conhecimentos adquiridos e impostos de forma sistemática pela instância pedagógica. Enquanto o segundo corresponde ao conjunto de propriedades culturais e estilísticas (como o próprio gosto) adquiridas muito precocemente através da socialização familiar e fora da instituição escolar, tais como um conhecimento diferenciado e precoce sobre música clássica ou sobe obras de arte e cinema.

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BOURDIEU, Pierre e PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Trad.: Reynaldo Bairão; Rev.: Pedro Benjamin Garcia e Ana Maria Baeta. 3.ed. Petrópolis: Vozes, 2010. p. 25.

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BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 244.

64 Ibid., p. 212.

65 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. p. 226.

66 Ibid. 67 Ibid.

jurídicas e aptas para serem discutidas conforme os pressupostos do capital jurídico. Essa forma de capital também existe no estado objetivado nas estruturas sociais, nas arquiteturas opulentas dos grandes tribunais e das reconhecidas Faculdades de Direito, nas roupas e nos utensílios utilizados nos julgamentos, como as togas, o martelo, os livros doutrinários e os códigos jurídicos, verdadeiros pressupostos da própria discussão propriamente jurídica. Bem como também no estado institucionalizado nos diplomas, nos códigos da cultura jurídica garantidos pelo Estado através dessa espécie de título de crédito acadêmico que é tomado como pré-requisito para o ingresso nas lutas reguladas pelo direito. Esses três estados do capital jurídico coexistem não apenas nas relações do campo jurídico, mas tendem a engendrar efeitos de autoridade e de reconhecimento entre os profanos, quer dizer, entre aqueles que não o possuem, ou seja, a posse desse tipo de capital tende a exercer um efeito de autoridade que contribui para “a adesão dos profanos aos próprios fundamentos da ideologia profissional do corpo de juristas.”68 É neste sentido que o capital jurídico também exerce um efeito de violência simbólica, pois não se configura apenas e tão somente como um capital cultural ou de conhecimento, mas como um instrumento de poder. Os debates jurídicos que se desenrolam no campo jurídico não podem ser reduzidos a discussões intelectuais desprovidas das preocupações concernentes ao exercício de um efeito prático.