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5 PROJEÇÃO E HETERONOMIA

5.1 UM PERSISTENTE EFEITO DE REPRODUÇÃO SOCIAL

Diante do número de estudantes provenientes da escola privada nos quadros do corpo discente da FDR, pode-se entender o quanto “é digno de nota o fato de que as instituições de ensino mais elevadas tenham também o recrutamento mais aristocrático”232 e o quanto o vestibular, juntamente com o sistema escolar, tende a transfigurar diferenças baseadas no acesso desigual e não equitativo às propriedades reconhecidas como pertinentes pelo sistema educacional através de uma avaliação que pretende auferir o nível de conhecimento, quer dizer, o nível intelectual dos concorrentes sem considerar o quanto o conhecimento reconhecido como necessário ou suficiente para a aprovação pode estar baseado na diferença, ou melhor, na desigualdade de distribuição do capital cultural e escolar. Muito embora seja preciso reconhecer os efeitos da denominada “lei das cotas” (Lei 12.711. 2012), onde há a determinação de que cerca de 50% das vagas das universidades Federais e nos Institutos federais de educação sejam ocupadas por alunos que cursaram o ensino médio em escolas públicas, levando em consideração critérios relativos a cor da pele (a chamada cotas para negros) e a renda familiar (uma renda mensal de até 1,5 salários mínimos per capita), não se pode ignorar o quanto ainda a nota alcançada no ENEM determina a aprovação. Sobre isso, uma informação que consta no blog do ENEM chega a deixar claro o seguinte: “Mas, o que define quem entra quem fica fora, além de preencher os critérios básicos de renda familiar, cor de pele, ou de ter estudado em escola pública, é a nota do Enem.”233

E a considerável maioria dos alunos de direito da FDR provenientes de escola privada em comparação aos provenientes de escola pública constatados pela sondagem realizada com 264 alunos da instituição mencionada no primeiro semestre de 2016, corresponde a um forte

231 BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In.: NOGUEIRA, Maria Alice e CATANI, Afrânio. (Org.). Escritos de educação. 14. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 2013. p. 45. 232 Ibid.

indicador de que, mesmo sob o efeito da mencionada Lei, o acesso as instituições de maior prestígio em Pernambuco ainda está baseado em um critério aristocrático dissimulado por uma ideologia do mérito que baseia o processo de seleção para se ingressar no mundo universitário. Nestas circunstâncias, os alunos advindos das classes onde seus membros tendem a reconhecer com mais afinco o investimento em educação nos moldes de uma cultura de poupança, onde os recursos da família devem ser investidos com esforço e determinação, detêm as maiores chances de consagração escolar pelo vestibular. Tudo tende a demonstrar, caso contrário a própria lei mencionada (tomada por muitos como a solução do problema, como se um problema histórico, social econômico pudesse ser resolvido nos moldes de uma monocausalidade a partir de uma lei) não teria motivos para existir, que a posse de “um capital de informações sobre o cursus,”234 quer dizer, sobre a significação das escolas privadas, “sobre as carreiras futuras e sobre as orientações que normalmente conduzem a elas, sobre o funcionamento do sistema universitário”235 corresponde a um tipo de propriedade mais comum entre os mais favorecidos no espaço social.

A diferença quantitativa entre os estudantes de escolas privadas e os provenientes de escolas públicas, na medida em que a passagem por uma escola privada corresponde a um indicador de investimento cultural familiar, pode ser tomada como um forte indício de como “se opera a transmutação da herança social na herança escolar nas diferentes situações de classe.”236

Para se reforçar essa hipótese levou-se em conta, na sondagem realizada com os alunos da FDR, o fator relativo a existência ou não de algum parente na família que exerce alguma profissão jurídica. Dos 182 alunos provenientes de escola privada, 98 afirmaram ter algum parente (pais, irmãos, tios, primos ou avós) que exerce ou exerceu alguma profissão jurídica, 84 afirmaram não possuir.

Enquanto dos provenientes de escola pública, 46 afirmaram não ter parente que exerça ou exerceu alguma profissão jurídica, contra 16 que afirmaram possuir. E 5 alunos provenientes tanto de escola pública quanto privada afirmaram ter parentes que trabalham ou trabalharam com o direito, enquanto 11 afirmaram não ter. Sem falar nos 3 alunos ex-bolsistas em escola privada que afirmaram não ter parentes que exerceram ou exercem alguma profissão jurídica, nenhum ex-bolsista afirmou ter.

234 BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In.: NOGUEIRA, Maria Alice e CATANI, Afrânio. (Org.). Escritos de educação. 14. ed. Petrópolis, RJ.: Vozes, 2013. p. 49. 235 Ibid.

Neste caso, a maioria dos alunos provenientes de escola privada, por possuir algum parente que exerce alguma profissão jurídica, tem mais probabilidades de estarem mais informados sobre o mundo no qual pretendem ingressar, seja no universitário ou na vida forense. Pode-se observar que o capital de informação sobre como jogar as cartas tanto na vida escolar, quando as primeiras cartas podem ser determinantes para a futura vida acadêmica, quanto na vida acadêmica, onde se pode contar com o apoio de alguém que já trilhou uma trajetória relativamente equivalente (sem se ignorar os aspectos diferenciais da estrutura de relações de distribuição do capital informacional e das chances de sucesso na carreira jurídica que existiam anteriormente, ou seja, no momento em que os pais, os tios, os avós passaram pelo cursus em relação ao atual sistema de relações que contribui para determinar as chances de sucesso) segue um princípio de distribuição não-igualitário.

Também não se pode ignorar o capital social acumulado pelos parentes que passaram pela experiência de ter feito o curso de direito e de estarem de fato trabalhando em uma profissão jurídica. Com um capital social consideravelmente forte e acumulado pelos familiares tanto na vida acadêmica quanto na vida forense, ou seja, no traquejo diário dos profissionais do direito, esse tipo de propriedade pertinente constituída por toda uma rede de contato e de boas relações herdadas dos familiares pode contribuir para propiciar maiores chances de sucesso para os seus filhos, netos, sobrinhos advindos de um meio familiar onde a cultura jurídica e o capital social acumulado pelos parentes podem ser utilizados como ferramentas de herança nos mais diversos lances a partir dos quais os recém-formados em direito podem se valer para obter sucesso.

Observa-se como um capital social herdado da família como um tipo de pecúlio familiar acumulado pode contribuir para alavancar carreiras, propiciar maiores facilidades de estágio durante o transcorrer do curso, garantir consideravelmente o futuro promissor dos filhos através da integração deles, após o término do curso e a aprovação no exame da OAB, em um renomado escritório de advocacia gerido pela família há muito, ou até mesmo contribuir para facilitar uma eventual promoção aos parentes futuros formados em direito que conseguiram realizar o sonho da estabilidade financeira via aprovação em concurso público. Sem dúvidas, um caso limite e conhecido de como o capital social pode ser mobilizado como pecúlio acumulado pela família em prol do sucesso dos parentes próximos corresponde a nomeação da filha (36 anos) do ministro do STF para o cargo de desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.237

237 Disponível em: http://justificando.com/2016/03/08/aos-35-anos-filha-de-luiz-fux-e-nomeada-para-vaga-de- desembargadora/. Acesso em: 04 nov. 2016.

Mas é preciso não se ignorar as mudanças relativas as relações entre o universo acadêmico e o mercado de trabalho no decorrer do tempo. Em outras palavras, seria preciso levar em conta a diferença entre a relação de oferta e demanda do ensino jurídico e da ocupação de postos na vida forense existente no tempo em que os parentes cursavam direito com o atual estágio das relações entre demanda de ensino jurídico e de postos no campo jurídico bem como de suas ofertas.

A interpretação do atual estágio de relações de força entre o ensino jurídico e o mercado de trabalho a partir de um conjunto de categorias cognitivas adquiridas em um estágio passado dessas relações pode encontrar o seu caso limite na reação de Dom Quixote ao se deparar com os moinhos de vento, exemplar da bravura característica da nobreza de espada em um período em que ela não desfrutava mais da posição de prestígio e importância estatutária na hierarquização dos valores nobiliárquicos.

Com isto, não se pode ignorar os efeitos de probabilidades de sucesso na carreira jurídica para o qual o nascimento e o pertencimento a uma família composta por agentes que exercem alguma profissão jurídica pode contribuir.

É assim que, levando em conta que o objeto sociológico só pode ser rigorosamente construído levando-se em conta todo um conjunto de relações pertinentes que o define enquanto tal, que se pode sustentar que os “objetos construídos (...) não têm nada em comum com as unidades separadas pela percepção ingênua.”238

É assim que, para a aplicação de uma sondagem como a que foi aplicada para o desenvolvimento da presente tese, levou-se em conta, a partir das perguntas formuladas, aspectos multifatoriais, tais como a precedência escolar (escola pública ou privada), a idade (pois ela pode ser tomada como um fator determinante para a construção de expectativas sobre o curso), a composição jurídica da família (se há algum parente que exerce alguma profissão jurídica) e o período cursado (levando em conta a probabilidade de variações de expectativas em relação ao curso e em relação com a vinculação a períodos diferentes).

Entretanto, como foi dito mais acima em nota de rodapé (página 98), pela ausência de uma pergunta referente ao local da residência dos alunos, a sondagem encontra-se comprometida no que diz respeito a necessidade de uma pesquisa que toma o problema em termos relações, uma das condições para se pensar determinada problemática sociologicamente construída de uma forma não superficial.

238

BOURDIEU, Pierre; CHAMBOREDON, Jean-Claude; PASSERON, Jean-Claude. Ofício de Sociólogo: metodologia da pesquisa na sociologia. Trad.: Guilherme João de Freitas Teixeira. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 46.

Na medida em que a pergunta referente ao local de residência foi imprudentemente ignorada no desenrolar da pesquisa, a questão referente a maior probabilidade de um aluno do ensino médio residente na capital ( local onde há um considerável monopólio das condições de acesso ao capital cultural, social e econômico em comparação com as condições de acesso relativas as cidades do interior mais afastadas da capital recifense) ingressar por meio da aprovação no vestibular no curso de direito da UFPE foi ignorada.

Por se tratar de uma importante variável que deveria constar no questionário da sondagem multifatorial, pretende-se, tendo em vista um maior aprofundamento e uma construção mais completa do objeto e da problemática sociológica, futuramente incorporar essa questão sociologicamente pertinente, na medida em que ela contribui para se levar em conta o fato relativo ao nível em que o espaço social está hierarquicamente estruturado no sentido de o local da residência ser determinante para se ter um maior acesso aos programas culturais (como o cinema cult, o teatro, grandes bibliotecas, etc) e as oportunidades que não existem em um município distante da capital.

Em linhas gerais, essa questão contribui para se auferir em que nível o acesso aos postos de graduando em direito do curso de direito da UFPE está estruturalmente reservado ou não em sua maior parte aos estudantes residentes na capital recifense, nesse sentido, essa questão poderia contribuir para se determinar o quanto uma variável heterônoma as propriedades do mundo universitário pode ser determinante para a sua reprodução, e o quanto o exame do vestibular pode contribuir para a reprodução desse eventual (caso a questão constasse no questionário da sondagem aplicada) princípio de exclusão estrutural dos estudantes advindos dos lugares mais distantes da capital.