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Mapa 5 Conjunto atualizado de obras da Hidrelétrica de Belo Monte

2 REFLEXÕES TEÓRICAS: PODER SIMBÓLICO E ESTADO DE

2.1 O Estado segundo Pierre Bourdieu: além do monopólio da violência física

Segundo Pierre Bourdieu, o poder tem sua constituição mantida tanto por aqueles que estão a ele submetidos quanto pela crença existente por parte daqueles que o exercem. No âmbito do Estado, o autor pondera os méritos de algumas de suas definições canônicas, a saber: o monopólio da violência legítima (Weber), o fundamento da integração lógica e moral do mundo social (Durkheim), o aparelho de coerção a serviço da classe dominante (Marx) e, a partir disso, começa a explorar os domínios do simbólico em suas observações sobre o Estado (MICELI, 2014).

Para Miceli, Bourdieu mobiliza “as evidências e as razões capazes de deslindar o caráter e a eficácia dos poderes de violência simbólica exercidos pelo Estado”, qualificando isso como um metapoder que é objeto de luta dos grupos de interesse que pretendem estar ou estão aptos a duelar no campo político2 (MICELI, 2014, p. 21). Nesse sentido, Bourdieu, em referência a Weber, afirma que o Estado, além de ser o detentor do monopólio da violência legítima, é também o detentor da violência simbólica legítima. O primeiro estaria condicionado ao segundo, configurando a materialidade do simbólico no âmbito do Estado.

Para exemplificar sua abordagem, Bourdieu usa o calendário republicano para o qual, segundo o autor, não damos muita atenção, pois nós o aceitamos como o óbvio, já que nossa percepção de temporalidade está organizada em função das estruturas de um determinado tempo público:

Eis um belo exemplo de público no cerne mesmo do privado: no cerne mesmo de nossa memória encontramos o Estado, as festas cívicas, civis ou religiosas, e encontramos os calendários específicos das diferentes categorias, o calendário escolar ou o calendário religioso. Encontramos, portanto, todo um conjunto de estruturas da temporalidade social marcada por referências sociais e por atividades coletivas. Constatamos isso no coração mesmo de nossa consciência pessoal (BOURDIEU, 2014, p. 34).

Nossa relação com as horas do dia também vai na mesma linha de raciocínio proposta por Bourdieu e são coisas que, segundo ele, podem nos remeter ao poder do Estado em última análise. Nesse sentido, Bourdieu pensa o Estado como um dos princípios da ordem pública que

2 O campo político, segundo Bourdieu (2002, p. 246): “Réduit à un marché électoral, le champ politique n’est alors constitué que de “représentants” profitant de leurs positions dominantes et une masse d’agents hiérarchisés que les spécialistes des sondages – véritables ventriloques – font parler pour ajuster les demandes aux affres des entrepreneurs politiques”. O autor prossegue e detalha: “on peut décrire la politique par analogie avec un phénomène de marché, d’offre et de demande: un corps de profissionnels de la politique, défini comme détenteur du monopole de fait de la production de discours reconnus comme politiques, produit un ensemble de discours qui sont offerts à des gens dotes d’un goût politique, c’est-à-dire d’une capacite très inégale de discerner entre les discours offerts”.

não incluem somente polícia e exército, ou o monopólio da violência física como define Weber, mas inclui também um determinado princípio de consentimento em torno do tempo público. Isso quer dizer que o Estado não está somente dado por suas estruturas mais evidentes, mas também por suas formas simbólicas inconscientes, como as classificações sociais e codificações produzidas por ele através de seu complexo burocrático. Com isso, Bourdieu nomeia o Estado como uma “ilusão bem fundamentada”, que existe porque se acredita na sua existência:

Essa realidade ilusória, mas coletivamente validada pelo consenso, é o lugar para o qual somos remetidos quando regredimos a partir de certo número de fenômenos – diplomas escolares, títulos profissionais ou calendário. De regressão em regressão, chegamos a um lugar que é fundador de tudo isso. Essa realidade misteriosa existe por seus efeitos e pela crença coletiva na sua existência, que é o princípio desses efeitos (BOURDIEU, 2014, p. 38-39).

Isso nos remete ao poder simbólico que “é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 1989, p. 8).

Nesse sentido, vale lembrar o que Weber considera sobre a dominação, que, segundo ele, parte “[...] desde o hábito inconsciente até considerações puramente racionais, referindo-se a fins” (WEBER, 1997). Weber destaca que a dominação será possibilitada pela constante busca da legitimação dos conteúdos referentes à determinada ordem vigente. A isto, Bourdieu denomina Eficácia Simbólica, que é o que parte da acumulação do capital para a subordinação. A eficácia simbólica só ocorre quando há uma subordinação, onde a relação de dominação possui, necessariamente, dominantes e conteúdos dominantes, além dos subordinados. Destaca- se, aqui, que o processo de dominação depende de certos níveis de “[...] vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo ou interno) na obediência”. Neste contexto, ocorre uma operação em torno da definição de certos interesses universais.

Essa definição integra o que Bourdieu define como “Atos do Estado”, que são aqueles com os quais se pretende ter efeitos sobre o mundo social e sobre os quais repousa a ideia de “legitimidade”. Tais atos devem sua eficácia a essa legitimidade e a uma crença na existência de princípios que os fundamentam. A crença na autoridade do Estado é algo que reverbera socialmente em função de que ela, a autoridade, é conferida pelo próprio Estado a seus atos. E seus agentes são, portanto, dotados de uma autoridade simbólica e integrantes de uma “comunidade ilusória” (o Estado) baseada no consentimento em torno de princípios universais, ainda que se tenha a revolta. Reforça-se que essa autoridade simbólica não deve jamais ser abstraída de seu suporte burocrático, conforme nos orienta Weber, pois o poder de conferir autoridade a certos agentes através de atos como a nomeação, por exemplo, também é algo que

o Estado detém como um de seus recursos de dominação. Daí a importância da burocracia e da racionalização na estrutura dos Estados modernos.

A violência simbólica emerge nesse contexto de crença na autoridade dos atos do Estado, repousando sobre uma espécie de mística em torno da legitimidade desses atos, conforme havíamos antecipado no início do capítulo. Essa forma de ser e atuar do Estado reforça o seu ponto de vista entre os demais sobre o mundo social. Logo, a revolta, na forma de contestação da autoridade e legitimidade dos atos, pode ser considerada, então, como o embate contra o posicionamento do Estado como o absoluto, mesmo que ele se coloque como um ponto de vista neutro, que não se deixa influenciar por nenhum interesse que não seja o do bem- público. O que se dá como consequência é o solapamento dos outros mundos por essa tendência à universalização de uma compreensão que funciona como tática para exercer uma imposição de forma “naturalizada”.

A noção de Perspectivismo Ameríndio do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro nos ajuda a operar melhor essa compreensão. Inicialmente circunscrito a constatações etnográficas, o Perspectivismo Ameríndio avança à uma noção metafisica no sentido de ultrapassar as barreiras da representação para ganhar o corpo de um pensamento propriamente dito. Segundo Viveiros de Castro, o Perspectivismo Ameríndio consiste numa

[...] concepção, comum a muitos povos do continente, segundo a qual o mundo é habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não-humanas, que o apreendem segundo pontos de vista distintos (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 347).

Os povos ameríndios, desta maneira, atribuem sentido às ações de uma totalidade de sujeitos que estão entre aqueles que, segundo a compreensão ocidental, não tem capacidade de racionalidade, sendo, portanto, tidos como inferiores. Segundo Viveiros, as categorias de Natureza e Cultura, dentro de uma perspectiva ameríndia, desaparecem com os mesmos conteúdos, além de não possuir o mesmo estatuto de seus análogos ocidentais — elas não designam províncias ontológicas, mas apontam para contextos relacionais, perspectivas móveis, que são em suma, os pontos de vista.

Em resumo, para o Perspectivismo Ameríndio, é o ponto de vista que vai atribuir ao ser a qualidade de sujeito. Em outras palavras, a posição de sujeito estará onde estiver o seu ponto de vista. Segundo Viveiros, enquanto em nossa cosmologia construtivista “o ponto de vista cria o objeto”, na perspectiva ameríndia “o ponto de vista cria o sujeito”. Nesse sentido, o autor define que “a perspectiva é menos algo que se tem, que se possui, e muito mais algo que tem o sujeito, que o possui e o porta (no sentido do tenir francês), isto é, que o constitui como sujeito”

(VIVEIROS DE CASTRO, 2007, p. 118). Sendo assim, da perspectiva ameríndia deduz-se que todos os seres são sujeitos, ocupam a posição de sujeito, o que torna impossível o estabelecimento de um só mundo objetivo. A perspectiva ameríndia nos incita, assim, não à busca de uma reflexão sobre o outro, mas a uma reflexão do outro, estimulando-nos a repensar nossas próprias ontologias e epistemologias (SZTUTMAN, 2007).

Consecutivamente, a dimensão política da metafisica ameríndia começa a se expressar de forma mais consolidada, no sentido de ser potencialmente oposta ao pensamento ocidental- moderno que orienta todas as outras “visões” a partir da sua e as transforma em representações. Nesse sentido, Viveiros, ao refletir sobre o Estado, mostra como o perspectivismo colide- conecta (conjura-antecipa) com o Estado, que aparece como uma “[...] condição da relação das pessoas e das coisas entre si do ponto de vista de uma agência ou animação molecularmente distribuída por toda a paisagem do real” (VIVEIROS DE CASTRO 2007, p. 229). Viveiros reforça:

[...] não podemos escolher não “ter” Estado, pois o Estado é algo que está essencialmente antes e fora de nós. Pertencemos a um Estado, querendo ou não, a despeito de todo pacto, todo contrato, todo livre arbítrio, todo ideal democrático. Se não estivermos no Estado, imersos no elemento do Estado, não somos ninguém. Todo Estado é universal, aspira a ser um Estado universal.

Por estar distribuído e ser condição das relações como um todo em determinado espaço, o Estado não se posiciona como um ponto de vista qualquer:

Ele é o ponto de vista, jamais um ponto de vista. O Estado é, justamente, um absoluto. Os cidadãos podem ter pontos de vista, mas eles não podem ter um ponto de vista sobre o ponto de vista. Eles podem ter pontos de vista a partir do Estado, mas não podem ter pontos de vista sobre este ponto de vista, o Estado. Este ponto de vista não é negociável, a não ser em momentos rituais específicos, como na Constituinte (VIVEIROS DE CASTRO, 2007, p. 229, grifo nosso).

Se podemos, através do perspectivismo, exercitar nossa capacidade de refletir sobre mundos e pontos de vista que, necessariamente, divergem do pensamento ocidental-moderno conforme presumem outras ontologias e epistemologias, isso quer dizer que o estabelecimento de um ponto de vista absoluto na figura do Estado é arbitrário também quando da definição de

questões públicas universais, que representam tão somente os conteúdos referentes ao

desenvolvimento da civilização ocidental, em suma, o estabelecimento de um único mundo e a transformação dos demais mundos em visões de mundo, ou seja, representações que são estabelecidas sempre a partir de um mesmo mundo, o mundo ocidental.

A violência simbólica aí contida reside numa contradição insolúvel. Nela, o Estado moderno-ocidental, que almeja ser universal, o faz através da negação de uma serie de outros,

inviabilizando e exterminando esses outros a partir em seu ponto de vista absoluto, ao contrário do Perspectivismo Ameríndio. O Estado aqui é um Eu que nunca é Outro, ou seja, é o supra

ponto de vista, detentor de um poder político fundado na coerção e na obediência

(SZTUTMAN; MARRAS, 2007).

A faculdade de ser sujeito, que o Estado reivindica arbitrariamente somente para si enquanto organizador da realidade, dá-se pela subordinação de outros ao papel de indivíduos e pela sua autoafirmação como o grande sujeito, o ponto de vista dos pontos de vista, ou o “geometral de todas as perspectivas” (BOURDIEU, 2007). Pierre Bourdieu afirma que isso se dá como um processo de divinização, através do qual o Estado des-particulariza, através de suas instituições, todas as contingências, interesses e conflitos, teatralizando o oficial e o universal. O Estado, nesse sentido,

[...] deve dar o espetáculo do respeito público pelas verdades públicas, do respeito público pelas verdades oficiais em que a totalidade da sociedade supostamente deve se reconhecer. Deve dar o espetáculo do universal, aquilo sobre o que todos, em ultima análise, estão de acordo, aquilo sobre o que não pode haver desacordo porque está inscrito na ordem social em determinado momento do tempo (BOURDIEU, 2014, p. 61).

Nesse sentido, a violência simbólica é um dos mecanismos fundamentais de reprodução da dominação concentrada pelas instituições do Estado, uma vez que a obediência é o que está subtendido na ideia de “respeito público pelas verdades oficiais”.

O que isso quer dizer: a violência é entendida aqui como estrutura estruturada e estrutura estruturante, que serve à legitimação de uma ordem arbitrária, através da imposição de um mundo absoluto representado pelo que o Estado define como universal, e de atos que possuem certa autoridade e que estão concentrados em diversos elementos, dentre os quais destacamos o interesse nacional. A energia, por exemplo, dotada de um status de bem-público e como elemento primordial ao desenvolvimento “chancela” a atuação do Estado na definição de suas formas de produção que encontram sua legitimação através de uma serie de recursos discursivos e legais que são conformados como um saber ao longo dos anos. Todos esses recursos são sustentados pela visão técnica como elemento fundamental à validade dos atos do Estado.

E, finalmente, como estrutura estruturada, a violência serve à reprodução da estrutura das relações socioeconômicas, de forma transfigurada ou irreconhecível. E sendo estrutura estruturante, ela produz uma representação das relações socioeconômicas que passam a ser percebidas como naturais contribuindo para a conservação simbólica de forças vigentes (MICELI, 1992). Nesse sentido, apresentamos a violência como um fator constituinte do

desenvolvimento, sem a qual ele não seria possível. A violencia, portanto, viabiliza o desenvolvimento. Entretanto, é preciso afirmar que o mundo social é um espaço em disputa, ou seja, o fato de estarmos falando da capacidade do Estado em obter certa obediência por meio de seus atos não significa dizer que isso se dá de forma incontornável. Nesse sentido, temos a emergência dos conflitos e dos processos de enfrentamento em relação ao posicionamento do Estado como ponto de vista absoluto da realidade. A luta contra a hidrelétrica de Belo Monte é uma expressão desse processo.

É importante enfatizar aqui que o Estado em si também é um espaço em disputa, pois a sociedade está presente nele por intermédio dos sistemas de representação direta ou indireta que são construídos como forma de gerência do próprio Estado. Dessa maneira, diferentes grupos de interesse encontram-se presentes no Estado configurando-o, assim, como um espaço diverso, com medidas diferenciadas de força e capital político, que tem relação direta com o capital econômico de cada grupo presente no campo.

A própria noção de Estado de Exceção, de Giorgio Agamben, que será tratada a seguir, só terá sentido se levarmos a afirmativa acima em consideração, por conta das interseções entre esses diversos pontos de disputa no interior do Estado e de como esses diferentes pontos se organizam em torno de um sistema de poder.

Também através da tese de Agamben, concebemos a própria ideia de desenvolvimento como violência – ou seja, como um saber que pressupõe uma prática tecnificada. Nesse sentido, cabe a verificação de como os recursos simbólicos dessa violência possuem eficácia decisiva para que o Estado opere sua ideia de desenvolvimento para a Amazônia, tendo a energia como um de seus vetores fundamentais, conforme observamos nas políticas traçadas ao longo dos anos para essa região.

No limite, trabalharemos também a noção de espaço vazio de direitos (também segundo a perspectiva de Agamben), que representa a ideia de como a exceção ocorre e como ela transforma um espaço de disputa (por direitos) numa zona de anomia3 ou num espaço desprovido de uma organização política e jurídica lógica. E principalmente, um espaço de disputa sobre o qual se tem a ofensiva do Estado como um ponto de vista absoluto.

3 Zona de Anomia é um termo que serve para designar espaços não regulados ou espaços sem uma organização legal ou normativa.