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Mapa 5 Conjunto atualizado de obras da Hidrelétrica de Belo Monte

3 DESENVOLVIMENTO COMO VIOLÊNCIA: A PERSPECTIVA DAS

3.1 As condições promordiais das grandes intervenções estatais na

3.1.2 O desenvolvimento da Amazônia como um problema público oficial: civilização e

A Amazônia sempre foi uma reserva para o poder público no Brasil e sempre esteve em pauta por conta do que representavam suas fronteiras em termos de segurança nacional, conforme já preconizava Tavares Bastos em 1866, quando defendia uma nova politica administrativa para a Amazônia, tendo em vista que a sua presença nos quadros físicos do Brasil interessava aos destinos nacionais. Defendia, por isso, um verdadeiro programa de valorização regional, sobretudo em termos de transporte fluvial, comércio, produção e imigração (BOUHID,1960).

Com a alta da borracha no mercado internacional, a partir de meados de 1879, houve uma modernização dos grandes centros urbanos da Amazônia, como Belém e Manaus, sem que houvesse qualquer preocupação com a sustentabilidade desse circuito econômico que, à época, era a segunda maior contribuinte da economia nacional, atrás apenas do café. Somente com a ameaça crescente de perda desse mercado pela Amazônia é que começam a se traçar as primeiras iniciativas públicas de proteção da borracha, como a assistência aos setores de produção agrícola e o plantio racional de seringueiras. Tais iniciativas, porém, não foram adiante em razão de questões político-administrativas (BOUHID, 1960).

De certa forma, essa foi uma das primeiras tentativas de atuação de uma oficialidade sobre a economia da Amazônia. Mas é, de fato, a partir do primeiro governo Vargas, que começa a figurar uma forma mais racional de se pensar o planejamento dessa região com base no que estava definido para o restante do Brasil, conforme visto no tópico anterior. De que maneira a Amazônia é inserida nesse processo e quais os papéis por ela desempenhados são as questões que vamos tratar agora. O cuidado principal desse tópico é observar as orientações basilares do desenvolvimento e quais as visões/definições de Amazônia que se apresentam nessas políticas.

Podemos dizer que o grande mote inicial para o desenvolvimento do Brasil em termos regionais nos planos de Vargas foi a chamada Marcha para o Oeste, em que constava como principal objetivo a colonização das áreas centrais do Brasil (batizadas como Sertão do Brasil Central), partindo em direção à Amazônia. Essa expansão do povoamento era importante para as políticas de Vargas por um motivo fundamental: dar suporte à industrialização da região Sudeste que viria a crescer bastante no período correspondente ao Estado Novo. Esse suporte se daria, inicialmente, com o sentido de dispersar a imigração que estava se concentrando na região Sudeste e que poderia provocar o colapso dos grandes centros urbanos, sobretudo São Paulo; e também (e principalmente) para a produção de matérias-primas para subsidiar a industrialização e que seriam, então, deslocadas às regiões consideradas “vazias”. Como premissa da integração territorial do país, em 1940, foi dado início oficialmente à marcha, durante a inauguração da cidade de Goiânia-GO.

Segundo a FGV (2016), a Marcha para o Oeste retomava antigas tradições coloniais, além de fazer emergir novamente a figura do bandeirante (o sertanista), considerado por muitos como o grande herói nacional, sobretudo pelos poderes públicos oficiais, que depositaram nas cruzadas bandeirantes a grande responsabilidade de expandir um “espírito nacional aguerrido”. Em contrapartida, para outros, a figura dos bandeirantes precisa ser revelada como a de assassinos violentos que “conquistaram” o território nacional promovendo saques e verdadeiros genocídios, sobretudo, contra os povos indígenas que habitavam a região central do Brasil e também a Amazônia. Para Vargas (1940), a Marcha para o Oeste era uma retomada da campanha dos construtores da nacionalidade, os antigos sertanistas (FGV, 2016).

Oliveira (2013) afirma que a Marcha para o Oeste tinha dois sentidos fundamentais associados a ela: progresso e modernidade. Ambos estavam interligados ao projeto de Nação que Vargas pregava e que estava calcado numa espécie de liberdade indicada pelo próprio significado da palavra “marcha”. Segundo o próprio Vargas (1940): “O verdadeiro sentido da brasilidade é a marcha para o Oeste”, ou seja, a ideia de Brasil estaria dependente da expansão

de novas fronteiras, criando a possibilidade de existência de um país grande e independente, construído pela coragem dos que se lançaram nessa conquista. Esse sentido de brasilidade a que se refere Vargas ganha um reforço nas palavras de Manuel Duarte10, que afirma que a marcha para o Oeste expressa uma necessidade de se criar uma civilização brasileira, que teria caráter diferenciado daquela que começou a colonização porque seria uma tomada do Brasil pelo homem nacional e não mais pelas civilizações alienígenas de outrora. O termo alienígena servia para se referir tanto aos antigos colonizadores quanto aos inimigos estrangeiros que, segundo o que se debatia à época, cobiçavam ocupar justamente esses “espaços vazios” do país, a começar pela Amazônia. Observamos ser um termo bastante utilizado no campo da oficialidade da época.

O avanço para o Oeste seria, então, a possibilidade de se criar outro modelo de civilização cujo sentido primeiro era ainda domesticar os que estavam na condição de selvagens, só que agora no sentido de fazer avançar o capitalismo no Brasil. Eis as palavras do próprio Manuel Duarte:

Precisamos nos abrasileirarmos e isso só conseguiremos penetrando o ínvio sertão onde mora a raça primitiva, dona da terra e a ela ligada por traços milenares. Precisamos criar para a civilização brasileira uma base territorial que seja inteiramente nossa pela cultura, pelo chão agrícola e pelos hábitos de vida, modificada à feição da raça. A marcha para Oeste é, assim, a marcha significativa da nossa verdadeira independência econômica, o caminho natural em que deveremos fazer o percurso histórico que nos está destinado [...].

O caminho do Oeste, como bem disse o Presidente Getúlio Vargas, é o caminho do Brasil, o grande tronco que formará o eixo da civilização brasileira e por onde se expandirá em grandes conquistas, o gênio comercial, industrial, econômico, enfim, da raça. Encontraremos nesse fundo de sertão o espírito da nacionalidade, íntegro, coeso, capaz de inspirar grandes coisas ao pensamento nacional e dar grandes heróis à Pátria (DUARTE apud OLIVEIRA 2013, p. 152, grifos meus).

No discurso, percebe-se que a Marcha para o Oeste representaria uma espécie de “novo padrão de civilização”, agora brasileiro. No entanto, os sentidos essenciais dessa civilização brasileira guardavam traços similares do processo civilizatório levado a cabo pela Europa.

Os meios de violência na emergência do “Brasil Grande” residiam, também, na própria ideia de que haveria um padrão a ser seguido e imposto a qualquer custo. Independente se fosse “brasileiro” ou “ocidental”, ele consistiu na negação de múltiplas existências humanas e não- humanas que não correspondiam aos desígnios daquele projeto de nação que se desenhava. Logo, competiria à marcha, assim, não só a ocupação dos territórios do Centro-Oeste brasileiro,

como também a missão de transformar os selvagens improdutivos em civilizados aptos a cooperarem com essa grandeza do Brasil11.

Com isso, a chegada da civilização representaria uma saída gradativa dos povos originários de sua “situação de escassez técnica e miséria de vida”. Não cabia naquele momento uma discussão sobre os meios utilizados, o que, digamos, acabou definindo o Sudeste como o centro de um projeto de industrialização ao qual as demais regiões do Brasil deveriam dar suporte. Sendo assim, não se tratava de uma nova concepção de civilização, mas de um deslocamento relativo dos papeis de centro e periferia dentro de um sistema econômico nacional.

Todo esse aparato de sentidos envolvidos na Marcha para o Oeste baseava-se numa crença muito concreta construída ao longo de anos de que o eixo geográfico brasileiro que se iniciava no Centro-Oeste e chegava à Amazônia consistia num grande vazio demográfico, fator que serviria de oposição ao crescimento econômico dessa região. Portanto, o sentido da colonização que a Marcha para o Oeste inicia repousava na ideia de uma região “despovoada” e visava tanto o Centro-Oeste naquele momento quanto a Amazônia num momento posterior. Ou podemos dizer ainda que Centro-Oeste e Amazônia eram vistas como uma só região se ponderarmos o vazio como o ponto de referência da oficialidade.

Vargas, ao introduzir a necessidade de desenvolver a Amazônia, deixa claro que essa ideia de “vazio” o norteia de maneira muito forte. Remetendo-se ao que Euclides da Cunha produziu em seus ensaios sobre a Amazônia, sobretudo após a incursão ao Purus12, Vargas reforça as visões construídas ao longo dos anos e que ajudam a definir a forma como a Amazônia viria a ser inserida nas políticas nacionais de desenvolvimento. Colonizar aquele grande “deserto verde” era a via e tornou-se a principal preocupação de Vargas em se tratando de Amazônia.

Dois de seus discursos proferidos em viagens à Amazônia mostram claramente essa visão. O primeiro, pronunciado em Belém do Pará, em 27 de setembro de 1933, tinha o propósito de debater os problemas enfrentados pela exploração de recursos florestais, como a borracha, o caucho e a castanha-do-pará, que poderiam ser resolvidos, segundo ele, com uma exploração mais sedentária e racional, opondo-se à uma tradição nômade. Este teria sido um

11 “Como tornar prática a marcha para o Oeste”, Ildefonso ESCOBAR (Conselho Nacional de Geografia), publicado no Jornal O Estado do Mato Grosso, de 01 de dezembro de 1940.

12 Euclides da Cunha chefiou a Comissão Mista Brasileiro-Peruana de Reconhecimento do Alto Purus que partiu de Manaus no dia 13 de dezembro de 1904, e tinha como objetivo levantar dados para a demarcação das fronteiras entre Peru e Brasil.

dos fatores que provocaram a decadência da economia da borracha décadas anteriores, segundo o próprio governo federal. Para tal façanha, Vargas defendia que era necessário povoar a Amazônia, “colonizando-a, isto é, fixando o homem ao solo” (VARGAS, 1933). Nesse discurso, Vargas, ao citar alguns exemplos de exploração racional (sobretudo da borracha), reforçou que a empreitada da colonização da Amazônia poderia ser bem sucedida, suprindo, assim, a necessidade de povoamento dessa região e aproveitando os nacionais nesse processo de “integração” da região ao restante do Brasil.

O segundo discurso, conhecido como o “Discurso do Rio Amazonas”, foi proferido em Manaus, em 09 de outubro de 1940, e tornou-se célebre pela ênfase à necessidade de “entrada” da Amazônia no desenvolvimento do país. Novamente, Vargas enfatiza que o grande problema ao crescimento e à integração da Amazônia à economia do Brasil seria seus espaços muito extensos e despovoados. Nesse discurso, Vargas insiste que a ocupação da Amazônia deve se dar de forma mais concentrada e racional para vencer o maior inimigo do progresso

amazônico, o seu despovoamento. A empreitada de integrar fisicamente e economicamente a

Amazônia ao restante do país, desenvolvendo-a, consistiria em “[...] conquistar e dominar os vales das grandes torrentes equatoriais, transformando a sua força cega e a sua fertilidade extraordinária em energia disciplinada”, definindo-se, nas palavras do próprio Vargas, como “a mais alta tarefa do homem civilizado” (VARGAS, 1940, p. 80, grifos meus). Para “vencer” essas condições, seria necessário aliar a bravura e a juventude do homem nacional, a quem caberia a missão de “civilizar e povoar milhões de quilômetros quadrados” (VARGAS, 1940, p. 81).

A Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), criada em 1953, reflete substancialmente o que Vargas identificava como problema fundamental da região. Nas próprias palavras da SPVEA era necessário romper com as cadeias do

primitivismo e com a estagnação de forças produtivas, a fim de dinamizá-las e “colocá-las

ao nível das economias mais desenvolvidas do Centro-Sul do país” (SPVEA, 1960, p. 221). Para a SPVEA, os primeiros colonizadores já teriam dado um grande passo ao negar o conforto de seus lares para empenhar-se na “luta sobre-humana de vencer o meio” na Amazônia. Ao homem da Amazônia, a SPVEA reserva uma reflexão que remete ao nomadismo e à indolência que se revelam como traços herdados de seus “antepassados” indígenas. O indígena, para o pensamento oficial, sempre foi (e ainda o é) tratado como o passado, algo que precisava ser negado para fazer avançar a civilização.

A atuação da SPVEA é afetada, sobretudo, por problemas financeiros que dificultaram suas ações na região.

Embora Vargas tenha se empenhado em defender a fixação do homem à terra e a sedentarização da exploração dos recursos, o que aconteceu na prática foi o contrário, sobretudo com a eclosão da 2ª guerra mundial e a emergência de um novo ciclo econômico da borracha. Com o aumento da demanda por esse produto e para aproveitar essa importante chance econômica, não haveria tempo para racionalizar a extração e a ordem era aproveitar os seringais já existentes. Isso reforçou a cultura nômade da borracha e mesmo os novos trabalhadores que foram enviados à Amazônia na década de 1940 tiveram que se adaptar a esse modus operandi.

Para os seringais do Alto Amazonas e do território do Acre foram enviados cerca de 8 mil nordestinos (que ficaram conhecidos como os “soldados da borracha”) com o objetivo de atender a grande demanda de extração exigida durante a 2ª guerra (SECRETO, 2007). Ou seja, a chegada desses trabalhadores não significou de fato um projeto planejado de colonização desse território “vazio” nos moldes previstos, com garantias de acesso a terras cultiváveis e saneadas, pois a premissa de fixação à terra não faria sentido naquela realidade. O resultado foi a substituição do projeto de ocupação por famílias pelo recrutamento de mais trabalhadores, fato que se deu a partir de um enorme aparato publicitário nacional, principalmente voltado ao Nordeste. Esse aparato estava fortemente pautado em “salvar” o nordestino brasileiro da “seca extrema e desumanizante” através da “oportunidade” de ingresso em terra fértil, porém “vazia”, a Amazônia. A garantia à terra foi, no entanto, a primeira condição do pacto entre o Estado e os trabalhadores a ser quebrada.

A exploração da elite da borracha impôs grande sofrimento aos soldados, pois as demais garantias previstas pelo governo federal, além da terra, também não foram cumpridas e o nomadismo da atividade invisibilizou toda a violência praticada contra esses homens, cujas famílias e muitos dos próprios sobreviventes empreenderam grande luta pelo reconhecimento de toda a violação de direitos humanos sofrida durante os anos da 2ª guerra mundial. Ainda hoje, o Estado não reconheceu de forma devida a sua responsabilidade sobre as violências praticadas nessa empreitada e contesta os valores de indenizações exigidos por sobreviventes e famílias de sobreviventes dessa verdadeira “guerra amazônica”. Mesmo diante das evidências que atestam que as autoridades oficiais ocultaram informações sobre a precariedade tanto das condições de viagem quanto de vida que os esperava na floresta, o Estado brasileiro permanece irredutível em reconhecer as condições de escravidão e da miséria generalizada enfrentada por esses homens graças à forma de atuação do próprio Estado (LUIZ; MARIZ, 2009).

Muito do que veríamos na Amazônia mais tarde em termos de grandes intervenções estatais tem similaridades com essa experiência dos soldados da borracha em vários aspectos. Sobretudo, vale reforçar que a ideia da Amazônia como uma “terra sem homens” ganha força

a partir dessa época, passando então, a ser um dos princípios fundamentais dos programas oficiais posteriores ao de Vargas e viria a ser, claramente, a orientação das ações dos governos seguintes, sobretudo os militares, a partir do golpe de 1964. Mas é importante ressaltar que não se trata de uma benevolência do Estado em relação à Amazônia, mas sim da função econômica relevante que a região representava para os destinos da nação. Quebrar essa lógica de “isolamento” da região era necessário para começar efetivamente a explorar esse “potencial” verificado pelo poder público. É nesse intermédio, portanto, que grandes ações de infraestrutura começam a se dar para facilitar a integração física regional do Brasil. Essa seria uma das principais marcas do desenvolvimento dessa região nos anos seguintes.