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Mapa 5 Conjunto atualizado de obras da Hidrelétrica de Belo Monte

2 REFLEXÕES TEÓRICAS: PODER SIMBÓLICO E ESTADO DE

2.2 Giorgio Agamben: o Estado de Exceção como um paradigma de governo

2.2.3 O iustititum [justitium] e o vazio de direito

Iustitium é o instituto do direito romano que Agamben utiliza para operacionalizar sua teoria moderna do estado de exceção, servindo como um modelo em miniatura através do qual o autor tentar explicar as aporias que ela [a teoria] não consegue resolver. Corresponde à declaração de um estado de emergência. Era comum declarar-se iustitium após a morte de um governante, durante o atribulado período de interregnum (período entre reinados, ou entre papas), mas também em caso de invasão. Contudo, neste ultimo exemplo, não era necessário

haver uma invasão física de fato para que fosse declarada uma emergência. Uma notícia de ameaça, que poderia ser mera especulação, já bastava para que o senado em Roma evocasse o senatus consultum ultimum, que nada mais era do que um chamado à tomada de decisões para a defesa do Estado.

A declaração de uma emergência era baseada num decreto que tinha o poder de classificar alguma situação como tumultus, para, em seguida proclamar o iustitium. O tumultus representa “la césure par laquelle du point de vue du droit public se réalise la possibilité de mesures exceptionnelles” (AGAMBEN, 2003, p. 72). Quanto ao senatus consultum ultimum, atos como esse não devem ser considerados a partir de uma formalidade jurídica, pois é a necessidade que define o direito nesse caso. Os três atos são subsequentes e o estado de exceção é um resultado de sua aplicação nessa ordem: senatus consultum ultimum >> tumultus >> iustitium: o consultum pressupõe o tumultus e o tumultus é a única causa do iustitium. São categorias que não pertencem à esfera do direito penal, mas a do direito constitucional (NISSEN, 1877, apud AGAMBEN, 2004, p. 73).

Muitos sinais para se entender o que acabamos de falar sobre o iustitium podem ser extraídos de sua própria etimologia do latim. Neste sentido, o iustitium pode ser definido como uma espécie de “vacances des tribunaux, arrête des affaires des justice [ordin dans une calamite publique]: iustitium edicere, indicere. Fermer les tribunaux. Remittere. Reouvrir les tribunaux II. Suspension des affaires” 7. Segundo Agamben, ele é construído da mesma forma que o termo

solstitium (o sol “para” no solstício), logo iustitium significa literalmente “arrêt, suspension du droit”, “quand le droit s’arrête, comme le soleil au solstice” (AGAMBEN, 2003). Ou seja, o iustitium implica não somente na suspensão da administração da justiça, mas do direito como tal e consiste, portanto, na produção de um vazio jurídico. A partir dessa suspensão do direito, todas as prescrições jurídicas são postas de lado, ou fora do jogo. Trata-se, de fato, da neutralização do direito e seus efeitos através da produção de outros efeitos através dessa medida de suspensão.

Agamben recorre à Nissen na busca das características gerais do iustitium que servem de direção à uma teoria geral do estado de exceção. Em primeiro lugar, é necessário desassociar iustitium (e consequentemente o estado de exceção) da ideia de ditadura. Segundo Agamben, confundir estado de exceção com ditadura foi o que impediu Schmitt e outros autores de resolver as aporias do estado de exceção. Isso porque, segundo ele:

[...] era mais fácil justificar juridicamente o estado de exceção inscrevendo-o na tradição prestigiosa da ditadura romana do que restituindo-o ao seu autêntico, porém mais obscuro, paradigma genealógico no direito romano: o iustitium. Nessa perspectiva, o estado de exceção não se define, segundo o modelo ditatorial, como uma plenitude de poderes, um estado pleromatico do direito, mas, sim, como um estado kenomatico, um vazio e uma interrupção do direito (AGAMBEN, 2004, p. 75, grifo nosso).

Diferentemente do estado de exceção, a ditadura não suspende a validade da ordem normativa regular. Apesar disso, conforme elucida Romandini (2013, p. 250), “o ditador, sem suspender a ordem legal, pode se situar numa esfera em cujo interior encontra-se uma praxis que é independente do edifício jurídico”. O campo político, por exemplo, na medida em que aproximas seus habitus ao modus operandi do mercado (retomando a analogia de Bourdieu) , passa a ser regido mais por regras definidas nos moldes de concorrência e acumulação do que em regras de conduta ética dadas aprioristicamente como fundamentos da prática política.

Outra característica importante do iustitium é que ele coloca em questão a própria consistência do espaço público, ao mesmo tempo em que a consistência do espaço privado é neutralizada. Trata-se de uma questão paradoxal entre público e privado que revela a impossibilidade de pensar sobre o problema da natureza dos atos cometidos durante o iustitium, e do que seria uma prática humana integralmente entregue a um vazio jurídico. Isso inclui se questionar também sobre os atos cometidos durante o iustitium com a intenção de “salvar a res publica”. Mas esses contrastes só poderão ser elucidados quando se observa que, no caso de medidas que se produzem em um vazio jurídico, os atos cometidos durante o iustitium estão radicalmente subtraídos a toda determinação jurídica. A transgressão e/ou a inexecução da norma ficam inobserváveis nesse caso (AGAMBEN, 2004).

Com isso, podemos já trabalhar sobre algumas conclusões de Agamben para caracterizar o que ele chama de espaço vazio de direito, noção que, enfim, trabalhamos bastante durante toda a tese. Esse espaço, em primeiro lugar, pode ser definido como uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas e a distinção entre público e privado estão desativadas. O exercício de toda análise sobre o estado de exceção a partir das observações da tese de Agamben deve tentar abstraí-lo do direito enquanto doutrina, porque, muito embora a construção de um estado de exceção se dê em relação direta com o direito, não seria possível afirmar que há um equivalente exato a ele no interior da doutrina ou uma fonte jurídica originária, como muitos presumem ser o estado de necessidade, por exemplo. A necessidade, no entanto, é um dos elementos que compõe um estado de exceção e, ao contrário de uma ideia muito difundida, o estado de necessidade não corresponde a um "estado do direito", e sim a um espaço sem direito.

Para concluir, o espaço vazio de direito não se dá, de forma alguma, sem relação com a ordem jurídica, conforme já havia sido dito aqui. É, ao contrario, essencial à ordem jurídica. Tanto que, segundo Agamben, a própria ordem jurídica procura assegurar alguma relação com ele, pois seu próprio sentido de existência depende da anomia. Nesse sentido, o vazio possui relevância estratégica para a ordem jurídica.

A justiça prescinde da lei, que só tem força de prescrevê-la, ou seja, é com a força de um código apenas que a lei dita a justiça. Esse código orienta para a prática da justiça, mas não faz a justiça. Conclui-se que o justo é legítimo e não mais apenas legal. A justiça é a ação que tem na lei, enquanto código, o seu mero registro e só na ação a sua efetividade.

3 DESENVOLVIMENTO COMO VIOLÊNCIA: A PERSPECTIVA DAS