• Nenhum resultado encontrado

1. PERCURSOS E PERCALÇOS DA PESQUISA

1.2 A PEDRA NO CAMINHO? COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA COM SERES HUMANOS

1.3.3 Fundação Centro de Hematologia e Hemoterapia de Pernambuco HEMOPE

1.3.3.1 Estratégias metodológicas no hemocentro

Em meu projeto, na parte referente à metodologia, especificava que iria entrevistar, nesta unidade de saúde, os profissionais envolvidos no atendimento, os pacientes; e fazer observação direta do aconselhamento genético. Como não havia uma consulta/sessão específica para o AG, tive que criar outras estratégias. Minha ideia, então, era observar as consultas e, depois, entrevistar as pessoas ainda na unidade. Não tinha consciência da quantidade de atendimento destinado a esse segmento. Dessa maneira, senti na prática o

sentido de termos como: “doença genética mais prevalente no Brasil”, “doença falciforme: um problema de saúde pública”. Em média, cada hematologista atende entre 25 a 35 pacientes com problemas hematológico. Dentre estes, em torno de 10 são doentes falciformes. Recordo- me quando falei com a Drª. X, e ela me perguntou como eu iria fazer. “Primeiro entrevistar ou observar?” Falei para ela que, primeiro, gostaria de perceber a rotina, entender o fluxo dos procedimentos para, depois decidir o que seria melhor.

Imaginei que seria difícil conseguir traçar uma estratégia que fosse boa para os pacientes, profissionais e para mim. Conversar com João foi fundamental, porque ele me explicou como tudo ali funcionava. Os pacientes chegavam cedo, porque geralmente vinham pela parte da manhã para fazer os exames que apresentariam na consulta, à tarde. As consultas são marcadas com um mês de antecedência. O agendamento é feito por telefone ou diretamente na unidade em dia determinado. Se a volta está prevista para agosto, o paciente deverá marcar sua consulta em julho. Existem muitas reclamações referentes a esse sistema. Segundo João, se eu chegasse mais cedo, poderia entrevistar as pessoas e ainda aproveitaria o momento em que as salas de consultas estavam vazias. Já havia pedido autorização ao Dr. Y para utilizar as dependências da unidade. Este sinalizou que os consultórios- quando vazios- seriam uma boa alternativa. Existem cinco consultórios e sempre encontrei um vazio para realizar as entrevistas.

Pensava, então, como iria identificar as pessoas com doença falciforme para pedir autorização para observar a consulta e, se possível, entrevistá-las. João novamente me auxiliou, mostrando que havia uma agenda impressa com os atendimentos do dia e que eu poderia pedir uma cópia às recepcionistas. Ele gentilmente foi comigo pedir a agenda que, prontamente, foi cedida. Havia dias em que, quando eu chagava, João já se dirigia ao balcão e imprimia a minha cópia. Nessa agenda, vem anotado o número do prontuário, nome completo, idade e o código da doença (CID). O código para doença falciforme é D57.1, assim, ficava fácil localizar as pessoas. Com essa ficha em mãos, saía perguntando, discretamente, na sala de espera, quem era quem. Quando identificava a pessoa, explicava a pesquisa e lhe pedia autorização para observar a consulta e, se possível, depois, entrevistá-las. A princípio, não tive nenhuma recusa. Entretanto, o fator tempo me atrapalhou, pois, posterior às consultas as pessoas queriam ir embora, haja vista que já estarem ali há bastante tempo. Fiz várias observações de consultas, sem conseguir entrevistar as pessoas depois.

Consequentemente, precisava pensar em outra estratégia. Decidi usar o tempo a meu favor e mudei a ordem das coisas. Ao invés de entrevistar após a consulta passei a entrevistar antes aproveitando o fato das pessoas passarem muitas horas esperando pelo atendimento. O

processo começou a fluir e a cada dia eu chegava mais cedo à unidade. Vale ressaltar que a dinâmica dos atendimentos é intensa e muitas vezes eu precisava me adaptar ao contexto. Nem sempre conseguia fazer tudo como planejado, às vezes uma entrevista demorava muito, às vezes não entrevistava somente observava. Esta decisão era tomada na hora ao sentir o clima do dia e a disponibilidade das pessoas. Muitas vezes o consultório estava tão cheio com residentes, doutorandos e parentes dos pacientes que não cabia mais uma pessoa.

Esta estratégia não funcionou nos atendimentos pela manhã. Os pacientes geralmente realizavam os exames no dia anterior. Neste turno eu fazia da seguinte maneira, com a agenda em mãos procurava os/as últimas da fila. Às vezes tinha êxito, as vezes não, pois as pessoas ficavam preocupadas em perder o atendimento, mesmo eu explicando que João avisaria se ela/ele fosse chamada e interromperíamos a entrevista.

No total foram acompanhadas 50 consultas, 12 de homens e 38 de mulheres. Os procedimentos médicos eram muito semelhantes com cada paciente, assim considerei o número suficiente para meus objetivos. Obviamente se existisse uma consulta ou sessão específica para o AG/orientação genética teria facilitado meu trabalho e, talvez, conseguisse dados diretamente relacionados às questões que desejava abordar, raça e genética. No entanto, observando estas consultas percebi o quanto é complexa a doença falciforme, como os textos que eu lia estavam longe daquela realidade. A invisibilidade da doença não estava apenas no difícil diagnóstico, como veremos adiante, mas também na consequência desta nos corpos das pessoas, em suas vidas. Por isso, observando as lacunas dos trabalhos da área de ciências humanas que abordam a doença, resolvi fazer um capítulo sobre a doença falciforme em si mesma tentando mostrar o que de fato acontece no corpo, na mente das pessoas e como elas lidam com isso. A princípio poderia parecer que esse seria um capítulo descontextualizado dos objetivos da tese, porém, mostrou o quanto estão imbricadas as questões de raça, racismo, discriminação e genética, pois enquanto doença hereditária não diz respeito apenas à pessoa, mas a família.

As entrevistas, por outro lado, permitiram realizar perguntas específicas abordando questões referentes à dimensão racial e a importância da informação, orientação genética. Nestas afloraram relatos sobre a interface entre doença e discriminação racial, da difícil compreensão de assuntos sobre genética, da peregrinação em busca de diagnóstico, dos medos, dos riscos reprodutivos. Por questões práticas entrevistei apenas pessoas acima de 18 anos, consideradas legalmente responsáveis por suas ações. Foram realizadas 17 entrevistas, 13 com mulheres e 4 com homens.

Das entrevistadas, 8 terminaram o ensino médio e cinco possuem o ensino fundamental incompleto. Onze moram na região metropolitana e duas no interior do estado. A idade variou entre 20 e 55 anos. Nove recebem beneficio do governo e 4 estão empregadas como funcionária pública, auxiliar de enfermagem, auxiliar de farmácia e auxiliar de lavanderia. Quando indagadas sobre a sua raça/cor, oito se declararam “morenas”, duas pardas, duas negras e uma se declarou preta. Seis são casadas/união estável, uma viúva e cinco solteiras. Dos entrevistados, um se declarou “moreno”, outro pardo, um negro e outro branco. A idade variou entre 20 e 40 anos. Dois recebem beneficio do governo e dois trabalham, um como técnico em mecânica e o outro como operador de máquina de construção civil. Dois possuem o ensino fundamental incompleto e dois terminaram o ensino médio. Dois moram no Recife, um na região metropolitana e um no interior do estado.

O perfil socioeconômico das mulheres vai ao encontro de estudos realizados que apontam para baixa escolaridade, dependência de auxílios do governo, dificuldade de inserção no mercado de trabalho, principalmente para as homozigotas SS (GUEDES, 2006). É consenso entre os especialistas que as condições socioeconômicas desfavoráveis são um agravante a qualidade de vida, interferindo diretamente no quadro de morbimortalidade dos pacientes (homens e mulheres). A junção entre classe, raça e gênero, desencadeador de desigualdades na população brasileira, tem um fator a mais para as pessoas com falciforme, a sua condição genética.