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1. PERCURSOS E PERCALÇOS DA PESQUISA

1.2 A PEDRA NO CAMINHO? COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA COM SERES HUMANOS

1.3.2 Grupo de Trabalho Sobre Saúde da População Negra do Recife

O Programa de Anemia Falciforme no Recife (PAF) foi criado em 2001. Nesta ocasião, a gerência de saúde instituiu o Grupo de Trabalho de Anemia Falciforme, o GT-PAF, para discutir e estabelecer as diretrizes do programa. O GT funcionava como um fórum de representação interinstitucional da Secretaria Municipal de Saúde e contou com a participação do HEMOPE, do Movimento Negro, da APPAH. Posteriormente, outras secretarias se agregaram a ele, tais como a de Educação, Cultura, Assuntos Jurídicos, Direitos Humanos e Coordenadoria da Mulher. O GT decidia e organizava trabalhos, como capacitação de profissionais; implementava fluxos de atendimento e elaborava protocolos, materiais educativos. Ou seja, as ações realizadas pela gerência passavam necessariamente pela aprovação no GT, tornando-o uma instância de poder importante para a política.

Em 2004, novas conjunturas políticas reforçam as ações referentes à raça no Brasil; isso se refletiu no campo da saúde. A criação da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) deu fôlego para várias ações no combate ao racismo. No Recife, é criado o Programa de Combate ao Racismo Institucional. A questão racial sempre permeou o PAF, mas foi a partir desse contexto mais geral de mobilização política “negra” que reflexões sobre racismo, preconceito, e intolerância religiosa são incorporadas. Vale

ressalta que foi a partir desse momento que a Anemia Falciforme passa a ser abordada como Doença Falciforme.

Diante desse contexto, o GT-PAF é transformado em Grupo de Trabalho de Saúde da População Negra e amplia a discussão para além da doença falciforme, incorporando doenças como diabetes, hipertensão arterial, Aids, glaucoma e agravos advindos da violência. Incorporam-se ao GT representantes de comunidades de terreiros de matriz africana. A partir dessa participação, observa-se que as ações voltadas à saúde da população negra extrapola a esfera das instituições de saúde e entra em espaços como os terreiros de matriz africana, espaços simbolicamente importantes para parte da população negra e para o movimento negro. Iniciam-se campanhas de vacinação, oficinas de aleitamento materno, prevenção contra HIV-AIDS, transformando estes lugares em espaços promotores de saúde.

Atualmente o GT se reúne na primeira terça-feira de cada mês, no auditório do Centro Especializado em Saúde do Trabalhador Dr. Edson Haten, na rua Conde D’eu, no Bairro da Boa Vista. Conta com a participação das gestoras da Gerência, coordenadores dos GOAS, representantes dos Distritos Sanitários, Movimento Negro, representantes de terreiros, representantes de Secretarias e pessoas interessadas na temática.

Do GT-Saúde da População Negra, foi criado o GTzinho. A iniciativa partiu de Agentes Comunitários de Saúde (ACS) do Distrito Sanitário IV e III, sensibilizados pela “luta do Movimento Negro”. A ideia era descentralizar o GT, levando a discussão para a ponta, pois os ACS’s estão em contato direto com a população, e, à medida que eles se interessam pela divulgação da política de saúde da população negra, um número bem maior de pessoas é informada. O trabalho é de articulação entre a comunidade, a gerência de saúde dos distritos e a prefeitura. São responsáveis pela divulgação/organização de eventos nos terreiros e fiscalizam as ações nos distritos. Lembro-me de que, na primeira reunião a que fui, uma ACS denunciava uma Policlínica pelo o não atendimento de uma criança identificada com o traço falciforme.

Fui a quatro encontros do GT nos meses de junho, julho, agosto e setembro. Depois as reuniões foram suspensas por mudança na gestão da prefeitura. Existe uma pauta para cada reunião, que era conduzida por Miranete. O GT é um espaço de planejamento de trabalho. Todas as questões ligadas à saúde da população negra são tratadas neste espaço como mostram os trechos do diário de campo abaixo.

Estava apreensiva para minha primeira participação no GT. Por conta do trânsito, cheguei alguns minutos atrasada, mas a reunião acabara de começar.

Miranete ficou surpresa por me ver; acho que ela não esperava que eu fosse. Todos me olhavam, pois parecia que eu era a única pessoa desconhecida ali. Miranete pede que eu me apresente, e falo um pouco sobre o motivo da minha presença. Esclareço um pouco a pesquisa e peço colaboração, na medida do possível, das pessoas presentes. Elas estavam sentadas em círculo, e fico próxima às ACS do Distrito III. A reunião começa e a pauta é lida; dentre às questões estava a morte de uma paciente falciforme no parto. Esse assunto foi trazido para discussão, para se falar sobre negligencia no atendimento á gestante falciforme, considerada uma gravidez de alto risco. Segundo relato, o ginecologista que a acompanhava não havia tomado as devidas precauções no pré-natal da paciente. A ideia era acompanhar o caso que estava sendo avaliado pelo Comitê de Morte Materna. Falou-se de campanhas de vacinação nos terreiros. Sony, pessoa ligada ao movimento negro, fala sobre o relatório de mortalidade pela variável raça cor e chama a atenção do grupo para a violência que vem matando a população negra. Aprendi muito sobre organização do serviço nesse encontro. (Diário de Campo, Recife, 2011).

No meu segundo encontro, já me sentia mais à vontade. Havia conhecido pessoas chaves no GT como Inaldete, uma das fundadoras do Movimento Negro no Recife, militante atuante na área de saúde e educação. Ela é muito respeitada no grupo. Nesta reunião, observei um pouco a hierarquia do grupo. A gestão está no topo, depois os profissionais dos distritos, o movimento e, por último, o Gtzinho. Nessa ocasião também se discutiu sobre a representação de Miranete na Conferência Internacional sobre Doença Falciforme. Ela iria representar o Brasil, levando a experiência do modelo de atenção à doença falciforme desenvolvido no Recife. Esse evento é de grande importância, pois concentra pessoas de todo o mundo para se discutir sobre a doença. A empolgação era grande, e o evento foi motivo de orgulho para os recifenses presentes. Novamente falou-se sobre ações de saúde nos terreiros, do encontro de mulheres de terreiro, em que a gerência teria participação em uma mesa. Fiquei pensando sobre a relação direta feita pelo GT entre saúde-população negra- religião afro-brasileira. Para mim estava claro que havia um direcionamento do Movimento Negro para com as ações nos terreiros, perfeitamente legítimas diante da invisibilidade desses espaços como promotores de saúde. (Diário de Campo, Recife, 2011)

Nas duas reuniões seguintes, o assunto mais comentado foi a substituição de Miranete na Gerência, pois esta iria sair da Prefeitura. Ela foi convidada para ocupar um cargo como gestora no Governo do Estado de Pernambuco. Sua pretensão era levar a experiência bem sucedida da prefeitura para o Estado. Para seu lugar, o GT indicava Sony Santos, integrante da Diretoria de Vigilância a Saúde.