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1. PERCURSOS E PERCALÇOS DA PESQUISA

2.3 NOVOS PARADIGMAS RACIAIS E A ANEMIA FALCIFORME NO BRASIL

No prefácio do livro “Doença das Células Falciformes”, Paulo Cesar Naoum e Flávio Augusto Naoum, defendem o seguinte ponto de vista:

Foi justamente o negro africano que, ao padecer de uma enfermidade crônica e dolorosa, como a doença falciforme, contribuiu com sua dor, com seu sangue e com sua morte precoce para o conhecimento científico mais importante sobre a bioquímica, físico-química, genética e biologia

molecular das proteínas. A hemoglobina falciforme, ou Hb S, que teve

origem em pelo menos três regiões da África, há quase cem mil anos, deu ao negro uma das mais importantes fundamentações na história da ciência biológica. (NAOUM; NAOUM, 2004, grifo nosso)

Muitas pesquisas foram realizadas em laboratórios e hospitais de todo o mundo sobre a anemia falciforme. Em 1945, Linus Pauling tornava pública à ideia de que a anemia falciforme era uma doença da molécula da hemoglobina, uma doença molecular. Foi seu grupo de pesquisa, mais precisamente Harvey Itano, com o uso da técnica de eletroforese (utilizada até hoje para identificar a presença de células falciformes no sangue) que atribuiu a causa da doença a uma lesão de uma molécula. Linus Pauling se baseou na descoberta de James Neel- igual a de Jessé Accioly-. Com efeito, a partir da transmissão genética da doença, era possível prever, através das Leis de Mendel, a ocorrência da doença em uma família, a partir da presença do traço falciforme em um casal. Seus achados deram subsídio para à

criação do aconselhamento genético moderno, indicado para reduzir a incidência da doença (NAOUM; NAOUM, 2004; CAVALCANTI, 2007; PENA, 2009). Para Melbourne Tapper (1999), essa descoberta poderia ter minimizado a ênfase racial da doença, mas isso não ocorreu. Apesar da ênfase nas descobertas genéticas, a perspectiva da raça, em suas mais variadas interpretações, a biológica e a social, continuavam influenciando as discussões no meio médico e político.

Os anos 1950 foram marcados não só por profundas mudanças nos estudos das relações raciais no Brasil, mas também pela invisibilidade da doença entre os cientistas sociais e antropólogos, tanto nacionais como estrangeiros, que estudaram as questões raciais (perspectiva social e cultural). Para Melbourne Tapper (1999), nos anos 1950, a genética clínica e a antropologia biológica, no que se refere à anemia falciforme, representaram o surgimento de uma antropologia racista. Por outro lado, os anos de 1950 também representaram mudanças na realidade legal dos Estados Unidos no tratamento referente a questões raciais, forçadas pelos protestos negros. Segundo Skidmore (1976), em duas décadas depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tinham revirado de pernas para o ar todo o sistema de segregação racial; a Lei que foi usada para segregar agora era usada para integrar.

A realidade social era diferente dos anos de 1920, 30 e 40. A crítica à antropologia física e/ou biológica e, por sua vez, a qualquer indício de racismo estava presente nos pesquisadores estrangeiros que tomaram o Brasil como grande laboratório racial. Neste período, enfocaram-se as relações harmoniosas ou conflitantes entre brancos e pretos, as desigualdades sociais e econômicas, as mudanças sociais, mas não as diferenças biológicas já rechaçadas pela própria UNESCO, no pós-guerra. Questões ligadas à genética e à biologia são minimizadas para se enfatizarem questões culturais. Projetos de branqueamento estavam fora de moda nos anos de 1950. Raça e doença saíam de cena para dar espaço à raça/cor e a status sociais. Apesar de questões referentes à classificação estarem presentes em décadas anteriores, os trabalhos da UNESCO traziam novas questões, novos dados empíricos mostravam o quanto esta era uma esfera complexa (MAIO, 2000).

Apesar de as pesquisas médicas sobre anemia falciforme utilizarem-se dos estudos de antropólogos, chamando atenção para questões de miscigenação, aspectos sociais e culturais, o seu campo de atuação era a medicina, a intervenção médica. É certo que a antropologia brasileira deve muito aos médicos antropólogos, porém, nos anos de 1950, seus trabalhos estavam desacreditados, “os Tipos Antropológicos” não mais embasavam as pesquisas sobre negros no Brasil. Charles Wagley (1952) argumentava que as diferenças raciais não eram

definidas biologicamente, antes são baseadas socialmente, em termos culturais de diferenças, que pode ter pouco a ver com variações biológicas reais. Se os grupos se definiam e eram definidos por critérios como status sociais, nível educacional, status econômicos e costumes, fica fácil entender a confusão dos médicos quanto à classificação racial dos indivíduos. Alguns criticaram o uso dos dados censitários por não serem fiéis à realidade racial brasileira. Calcular o quantitativo de pessoas com anemia falciforme, baseando-se nos censos não era seguro, uma vez que as aparências enganavam e, ainda, enganam.

Se raça biológica assumia papel importante na compreensão das diferenças entre negros, brancos e índios no Brasil, e os testes de siclemia serviam para provar isso, com os estudos da UNESCO são os aspectos sociais, em que a classe assumia maior destaque, que eram enfatizados. Após os famosos estudos, especialmente, os estudos do grupo de Florestan Fernandes, as pesquisas sobre o negro passaram a enfatizar a persistência das desigualdades entre brancos e negros, prolongando-se até as décadas de 1970 e 80. De forma geral, o campo dos estudos sobre o negro apresentava uma divisão arbitrária, haja vista os antropólogos se dedicarem à diferença do negro, numa “perspectiva etnográfica da cultura negra; os sociólogos, baseados em estatísticas, privilegiarem a conexão entre a autodefinição racial e o lugar desigual na estrutura social” (PINHO, 2008, p. 12). Porém, a questão racial é mais complexa do que qualquer esquematização que possamos imaginar, pois, o que se observa hoje em dia são abordagens que integram esferas sociais e culturais, principalmente com as novas abordagens em torno do conceito de cultura e de biologia. Seja na abordagem sociológica ou cultural, o tema da anemia falciforme não ganha destaque nos estudos sobre raça. Esta doença e sua relação com raça só será retomada por antropólogos e sociólogos nos anos 1990, em meio a discussões sobre implantação de políticas diferenciadas para negros.

Houve mudança de paradigmas no campo das ciências sociais como um todo com a passagem da categoria raça à cultura. O conceito também sofreu modificações no campo da antropologia física, caudatária do conceito de raça biológica e modelos tipológicos, entretanto, ao invés de cultura, prevaleceu a noção de populações. Como demonstra Santos (1996), raça não foi abandonada, mais modelada para se adequar ao evolucionismo neodarwiano que reformulou a antropologia física. Este autor mostra como a declaração sobre raça da UNESCO, na década de 1950, privilegiou os aspectos sociais de raça, abandonando opiniões de antropólogos físicos e geneticistas. Sob críticas, a UNESCO se viu obrigada a reformular sua declaração, de forma que contemplasse esses segmentos. Raça foi considerado um conceito biologicamente válido, na perspectiva genética da época, ligada a estudos de cunho evolucionário (SANTOS, 1996).

Para Santos (1996), a antropologia física se fez presente no Brasil entre as décadas de 1950 e 80, a partir de duas vertentes. A primeira, representada pelo Museu Nacional, dedicou- se à medição de ossos de remanescentes humanos arqueológicos. A segunda consolidou-se nos departamentos de genética/biologia das universidades do Rio Grande do Sul, Bahia e Pará e centrou-se na genética de populações, distanciando-se da tradição oitocentista. E, é nesta vertente, que surgem os estudos de cunho genético sobre raça, no final dos anos de 1990 e início do século XXI, popularmente divulgados através dos estudos de geneticistas como Sérgio Pena, em “Retrato Molecular do Brasil”. Cabe ressaltar a influência dos avanços mundiais e nacionais em torno do genoma humano. Explicitarei essa questão adiante, em um tópico específico. Por enquanto, cabe ressaltar que a “doença falciforme” volta a aguçar o interesse de geneticistas e antropólogos na era genômica, depois de ter passado anos fora de foco desses pesquisadores.

Como verificado, os conceitos de raça, saúde, genética, sangue e anemia falciforme se fizeram presentes no Brasil através de diversos olhares. Esses conceitos ora foram abordados em conjunto, ora separados. Após os primeiros trabalhos, na década de 1930, a anemia falciforme - e sua interface com raça- desaparece do cenário, nas décadas de 1950 a 80. Podemos atribuir essa invisibilidade às mudanças que o conceito raça sofreu ao longo dessas décadas. Aspectos ligados à cultura e à sociedade tomaram proporções maiores para os intelectuais estrangeiros e brasileiros. A ratificação da UNESCO, considerando raça biológica um conceito útil para antropólogos físicos e geneticistas, não foi suficiente para chamar o interesse dos antropólogos e sociólogos que discutiam as relações raciais no Brasil, a partir da década de 1950. A meu ver, isso impediu um olhar mais sociocultural sobre a doença, principalmente, ao acompanhar as mudanças em sua compreensão, de doença das hemácias à doença genética. A doença, reconhecida por sua dimensão étnica/racial, ficou restrita ao campo biomédico, não alcançando os antropólogos que, ao estudarem as doenças em sua perspectiva social e cultural, não enfocaram a dimensão racial. Quando isso ocorreu, foi ligado a práticas das religiões afro-brasileiras.

Raça e saúde estiveram presentes nas discussões sobre saúde pública, visando à modernização do país, mesmo os higienistas e sanitarista pregando que não era a raça que fazia o povo brasileiro doente e sim aspectos estruturais de atraso econômico e a falta de educação. A raça, em sua perspectiva social e cultural, permeava a relação entre população brasileira e saúde. Para os antropólogos, a dimensão racial será retomada a partir da década de 90 do século XX, no bojo das discussões sobre direitos diferenciados para minorias no campo da saúde, em que, onde mais uma vez, invocam-se questões relativas à identidade nacional.

Em levantamento referente à produção antropológica sobre antropologia da saúde, Canesqui (1994) levanta várias questões abordadas nos estudos da década de 1980. Analisando 120 publicações, a autora traça o esboço abaixo:

A antropologia feita no Brasil nas últimas décadas, e particularmente na década de 80, tem produzido conhecimento sobre os temas alimentação, saúde, doença que aflige a classe trabalhadora ou alguns grupos minoritários. Tem também estudado os distintos saberes e práticas de cura, suas instituições e especialistas em diferentes regiões do país, adentrando os saberes e práticas da medicina oficial e as tentativas de reformulação dos modelos assistenciais tradicionais e asilares da loucura [....], ou as questões afeitas à extensão dos cuidados médicos e seu confronto ou complementaridade com outras práticas de cura, especialmente aquelas inscritas no campo religioso [...]. Na literatura mais recente também estão presentes temas relacionados às práticas corporais, a emergência de novas e antigas epidemias (aids e esquistossomose), à sexualidade e a reprodução. (CANESQUI, 1994, p.18)

Na década de 1980, no campo da saúde pública, pesquisadores já apontavam a doença falciforme como um problema de saúde pública, porém, não despertou o interesse dos antropólogos estudiosos da saúde e das relações raciais no Brasil. A dimensão racial vai aparecer nos estudos que abordam aspectos reprodutivos, principalmente, na denúncia das esterilizações em massa de mulheres negras.

2.4 OS ANOS 1990 DO SÉCULO XX E A PERSISTÊNCIA DA RAÇA NO BRASIL NO