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IMPROVISO E PÉ-DE-PAREDE

2 POR UMA POÉTICA DO IMPROVISO

2.4 ESTRUTURAS PERFORMÁTICAS: CORPO, VOZ E IMAGEM

Objetivando traçar uma pré-história da performance, Glusberg (2005) viaja para tempos longínquos e vai aterrissar no paraíso, apontando a nudez de Adão e Eva como o início de uma visão do corpo humano como sujeito, já que esta nudez passou a ser compreendida como pecado. Apresenta Yves Klein e o seu “Salto no Vazio”, realizado em 1962, como uma suposta iniciação do que hoje se entende como a arte da performance. Mais voltada para os aspectos artísticos, Goldberg (2006) destaca que a performance, como expressão artística, ganhou independência apenas nos anos 1970, ligada à arte conceitual. Apontada pela autora como “um catalisador da hist ria da arte no século XX” (p. 07), tem assim sua história resumida:

A história da performance no século XX é a história de um meio de expressão maleável e indeterminado, com infinitas variáveis, praticado por artistas impacientes com as limitações das formas mais estabelecidas e decididos a pôr sua arte em contato direto com o público. Por isso, sua base tem sido anarquista. Por sua própria natureza, a performance desafia uma definição fácil ou precisa, indo além da simples afirmação de que se trata de uma arte feita ao vivo pelos artistas. (GOLDBERG, 2006, p. IX)

Sua base anarquista deve-se à sua aplicação como alternativa aos meios de expressão predominantes à época, como a pintura e a escultura, exercendo, ainda conforme Goldberg (2006), uma grande influência na destruição das barreiras entre as belas-artes e a cultura popular. Além disso, sua expressiva aplicabilidade como forma de protesto, de exposição de ideias, veiculadas como contestação dos conceitos vigentes, deu ao corpo um

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lugar de destaque, deslocando o eixo que se encontrava centrado basicamente na palavra escrita. A valorização dos textos performatizados se dá mediante a presença de mais apelos de improvisação, fuga dos lugares-comuns de composição e impacto junto ao público, embora seja necessário destacar que, como toda nova proposta, inicialmente foi vítima do escárnio e da incredulidade dos que, céticos, não conseguiam vislumbrar outros modos de expressão, outros meios de exprimir sentimentos e colocá-los à disposição da apreciação alheia.

Segundo Cohen (1989), “Poderíamos dizer, numa classificação topol gica, que a performance se colocaria no limite das artes plásticas e das artes cênicas, sendo uma linguagem híbrida que guarda características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade.” (p. 30). Partindo dessa conceituação, o movimento performático precisa ser vislumbrado como um entre-lugar, como uma inovadora proposta interdisciplinar, indo de encontro aos ditames classificatórios e excludentes em voga.

Em 1896, Alfred Jarry colocou em cena seu “Ubu Rei”, expondo sua sátira e dispondo de esquemas próprios do teatro de marionetes, propondo uma aproximação entre formas teatrais até então afastadas, expondo um cenário único e apresentando “merdre” como palavra-chave, chocando os presentes e fazendo correr em torno um sopro desestruturante. Os objetos, até então figurativos, passaram a ocupar lugar de destaque, podendo ser atores principais, assim como o próprio cenário, em diálogo profundo com a iluminação. O silêncio, inquietante, também teve seu lugar, preenchendo espaços que, aparentemente vazios, estavam repletos de sentidos e prontos para serem experimentados.

Em 1909 eis que surge o Manifesto Futurista, publicado no jornal Le Figaro, de autoria de Filippo Tommaso Marinetti. A partir disso, as declamações passam a ser uma nova forma de dramaturgia e o anseio expresso é de que as palavras sejam libertadas, ganhem forma para além do escrito e do previsto, atinjam o público de maneira desconcertante, até o surgimento do Teatro de Variedades, capaz de articular música, cinema, dança, acrobacia, apresentações de palhaços e tudo o mais que os performers pudessem expor, instigando o público e o arrancando do seu confortável lugar de “voyeur estúpido”, conforme a descrição de Minaretti.

Em 1912, quando teve lugar o manifesto intitulado “Uma bofetada no gosto do público”, escrito por jovens artistas como Burliúk, Maiakovski, Livshits e Chlebnikov, as discussões voltavam-se contra os valores artísticos predominantes no passado, reivindicando novos modos de fazer e conceber a arte.

Ao destacar a importância da música, Sant’anna (2003) a inclui entre os elementos constituintes do universo, visto que sociedades fundantes, como a hindu e a grega,

consideravam-na a primazia fundadora, a ponto de Pitágoras descrever o universo como uma grande partitura musical. O que não se podia prever era que os acordes poderiam ser também formados por ruídos. Isto foi desvendado em 1913, quando Luigi Russolo escreveu o manifesto “A arte dos ruídos”, influenciado pela música de Balilla Pratella, passando a crer que os sons mecânicos eram “uma forma viável de música” (GOLDBERG, 2006, p. 11). No mesmo sentido, o manifesto da “Declamação dinâmica e sin ptica” propunha ações corporais que pudessem reproduzir os movimentos das máquinas, apresentando, ao olhar despreparado do grande público, uma nova estética.

Entendendo que, desde o princípio, a tríade formada por música, dança e palavra sempre esteve indissociável, o corpo, como mecanismo expansional, mantém-se como materialização da palavra, seja porque espalha a voz, seja porque porta a caneta, seja porque se movimenta em sintonia com os sons do mundo. A poesia, cuja capacidade agregadora é amplamente reconhecida, encontra-se, cada vez mais, diluída nas métricas da prosa e do silêncio, nem sempre recorrendo à rima e aos versos, o que antes lhes era apontado como marca indelével. Assim, Vitor Acconci, por volta de 1969, “[...] usou o ‘suporte’ de seu corpo como uma alternativa ao ‘suporte da página’, que ele utilizara quando poeta; segundo ele, era uma maneira de transpor o enfoque da palavra para ele pr prio como ‘imagem’”. (GOLDBERG, 2006, p. 146). A poética que se revelava em suas performances era resultado das diversas influências que ele agregava à sua obra como, por exemplo, a ideia de “campo de força”, utilizada pelo psicólogo Kurt Lewis, o que foi incorporado pelo autor como a necessidade de criar um campo capaz de envolver o público, tornando-o parte da performance, gerando obras como “Sementeira”, apresentada em 1971, na qual masturbava-se diante da observação dos presentes. Do mesmo modo, artistas como Dennis Oppenheim, Chris Burden Bruce Nauman e Klaus Rinke transpuseram para sua obra a noção de corpo como objeto, demonstrando suas relações com a escultura, “[...] explorando o corpo como um elemento no espaço.” (GOLDBERG, 2006, p. 149)

Enquanto na Europa e nos Estados Unidos a performance explodiu nos anos 1970, no Brasil começou a difundir-se a partir dos anos 1980, quando, conforme Cohen (1989), criou-se o Sesc Pompeia e o Centro Cultural São Paulo, no mesmo período, abrindo espaço para a produção de espetáculos e festivais cuja tônica pode ser denominada body art.23

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A ideia apresentada nesse momento difere do que atualmente denomina-se body art, como o uso do corpo de maneira ornamental, como um lugar de protestos, visto que, à época, o uso do corpo como objeto precisaria estar relacionado às artes cênicas, a demonstrações públicas, valendo-se de recursos aplicados também às artes plásticas.

As relações entre música, dança e poesia configuram um cenário ornamental nos estudos sobre as diversas culturas, entretanto, várias abordagens foram adotadas. Conforme Finnegan (2008), o conceito de canção costuma ser implementado a partir da combinação entre música e poesia, vistas como artes distintas, de modo que as pesquisas buscam apontar proximidades e diferenças. Entre as primeiras, estariam sua qualidade temporal e sequencial, seu emprego de ritmo e entonação; as segundas indicam uma maior concretude por parte da poesia, pensada como recurso escrito, enquanto a música seria considerada por seu caráter mais fluido, sendo mais palatável o seu estudo a partir de partituras. Ao questionar sobre a primazia da música, do texto ou da performance, a autora afirma:

Nesse momento encantado da performance, todos os elementos se aglutinam numa experiência única e talvez inefável, transcendendo a separação de seus componentes individuais. E nesse momento, o texto, a música e tudo o mais são todos facetas simultaneamente anteriores e superpostas de um ato performatizado que não pode ser dividido. (FINNEGAN, 2008, p. 24)

A performance se dá de fato quando coincidem no tempo e no espaço a produção, a execução e a recepção. Ao diferenciar texto e obra, Zumthor (2010) considera a obra apenas a partir da performatização do texto, da sua recepção, do seu alcance pelo ouvinte, de modo que sua afirmação como ato em execução aponta seu aspecto imensurável, temporal, circunstancial, na medida em que a impossibilidade de sua recorrência, de sua inviável repetição, nos atinge como a certeza de cada ato como único, de cada apresentação como especial, de cada instante como incapaz de ser retido. Para Zumthor (2007; 2000), a introdução das percepções sensoriais envolve a necessidade de rever os métodos até então adotados nos estudos sobre linguagem, visto que seu alcance não é suficiente para englobar a voz a partir de sua adoção como emanação do corpo e sua representação sonora. Ainda de acordo atual acerca do seu uso se dê em função da sua aplicação em inglês, visto que nos anos 1930 e 1940 foi tomada de empréstimo do universo da dramaturgia e espalhou-se pelos Estados Unidos. Peça chave nos estudos de diversos etnólogos, no tocante à comunicação oral,

as regras da performance − com efeito, regendo simultaneamente o tempo, o lugar, a finalidade da transmissão, a ação do locutor e, em ampla medida, a resposta do público − importam para a comunicação tanto ou ainda mais do que as regras textuais postas na obra na sequência das frases: destas, elas engendram o contexto real e determinam finalmente o alcance. (2007, p. 30)

Cada texto solicita de seus enunciadores uma performance diferente. Além disso, uma mesma produção permite que performances variadas sejam apresentadas, tudo visando a adequação do discurso à imagem que cada interlocutor produz e/ou tenta reforçar ou refutar. A relação de cumplicidade requerida por todo e qualquer processo enunciativo permite que, conforme as condições de produção disponíveis, os recursos utilizados voltem-se mais para o verbal ou para o gestual, de modo que todas as estratégias utilizadas apresentem-se como parte de uma grande teia que envolve falante e ouvinte numa mesma sintonia. No caso dos festivais de violeiros, tanto os elementos verbais quanto os não-verbais surgem como recursos para manter e/ou estabelecer uma relação de proximidade.

As concepções eleitas por uma sociedade logocêntrica, como costumam ser as ocidentais, elegem como textos aqueles cujo pressuposto é escrito, o que tende a reservar uma atenção tangenciada para quaisquer propostas que se arrisquem a enveredar por caminhos diferentes dos convencionalmente adotados.

É Finnegan (2008) quem nos aponta a abordagem que concebe a canção e a poesia como performances e não mais como apenas textos. Negligenciadas por tanto tempo, as marcas corporais atreladas às produções poéticas e musicais, seja no seu modo de apresentação ou no poeta/artista que lhe dá vida, o aspecto performático passou a ser considerado somente quando um sopro inovador trouxe à tona o aspecto transdisciplinar, voltando-se para “[...] a ideia de processo, de diálogo e de ação em detrimento da definição de objetos de estudo enquanto produtos, estruturas ou obras definitivas.” (FINNEGAN, p. 21). Se as produções passaram a serem consideradas não mais apenas como produtos finais e isolados, remetendo-se também a seu aspecto dialógico, essa mudança de perspectiva trouxe para a cena não apenas produtores, mas também receptores, vendo a obra em si como recurso performático, tendo em vista que “É na performance que se fixa, pelo tempo de uma audição, o ponto de integração de todos os elementos que constituem a “obra”; que se cria e recria sua única unidade vivida: a unidade desta presença, manifesta pelo som desta voz”. (ZUMTHOR, [1987] 1993, p. 163).

A capacidade de fixação no tempo e no espaço, dada pelos meios tecnológicos e suas possibilidades quase infinitas de romper limites e impor novos alcances, nos apresenta, ainda assim, seu caráter parcial, incompleto, uma vez que diante da dificuldade de retenção e reprodução de todos os elementos que colaboram para a configuração de cada performance exibem uma configuração fluida e imprevisível, apesar do suposto caráter reprodutivo inaugurado pela escrita.

As poéticas orais conseguem escapar, em parte, dos ditames impostos pelos princípios do grafocentrismo, do logocentrismo, valendo-se de sua capacidade de renovação e constituição complexa, pois a relação que estabelecem com a memória rompe os limites dos olhos, planando através de recursos auditivos, táteis, gustativos e olfativos, cuja amplitude não pode jamais ser capturada por lentes, canetas ou gravadores. A capacidade de armazenamento mnemônico se prende a lembranças, se alimenta de desejos e comunga da ideia do saber coletivo, buscando aproximar iguais e diferentes.

Ao tratar de poesia, Huizinga ([1938] 2008) reporta-se a uma definição que também pode ser atribuída ao jogo, pois “a ordenação rítmica ou simétrica da linguagem, a acentuação eficaz pela rima ou pela assonância, o disfarce deliberado do sentido, a construção sutil e artificial das frases, tudo isso poderia consistir-se em outras tantas manifestações do espírito lúdico.” (p. 147). Quanto ao jogo, então, o autor assim explica:

É uma atividade que se processa dentro de certos limites temporais e espaciais, segundo uma determinada ordem e um dado número de regras livremente aceitas e fora da esfera da necessidade ou da utilidade material. O ambiente em que se desenrola é de arrebatamento e entusiasmo, e torna-se sagrado ou festivo de acordo com a circunstância. A ação é acompanhada por um sentimento de exaltação e tensão, e seguida por um estado de alegria e de distensão. (p. 147)

Encaixando-se com perfeição na descrição ora feita, os festivais tendem a organizar e canalizar diversificadas demandas de uma indústria cultural que se apresenta, conforme Adorno (30), ainda como a indústria do divertimento, embora o seu poder sobre os consumidores se dê através de mecanismos que utilizam a diversão como uma pré-fabricação, cujos sentidos já estão dados, cabendo aos espectadores a apreciação e a adesão tácita ao que é ofertado, uma vez que “toda conexão l gica que exija talento intelectual é escrupulosamente evitada.” (p. 31). Ainda que concordemos com a l gica apresentada, torna-se necessário questionar acerca da configuração desse espectador, supostamente incapaz de interagir, supostamente incapaz de criar seus próprios conceitos e de escolher qual o recorte de mundo que melhor lhe convém, já que o que chega até os receptores, após o filtro parcial e politicamente situado dos media, nada mais é do que apenas uma possível interpretação que não deve, de modo algum, ser entendida como a única e verdadeira leitura. Será mesmo que essa inércia já paralisou por completo o espírito criador e criativo das massas ou é a exposição de um pessimismo mediado pela descrença na falta de alternativas que levem a soluções diferentes? Em se tratando de poesia, recorre-se, uma vez mais, a Zumthor ([1987] 1993):

É poesia aquilo que o público, leitores ou ouvintes, recebe como tal, percebendo e atribuindo a ela uma intenção não exclusivamente referencial: o poema é sentido como a manifestação particular, em certo tempo e lugar, de um vasto discurso que, globalmente, é uma metáfora dos discursos comuns mantidos no bojo do grupo social. Sinais mais ou menos codificados o alinham ou acompanham, revelando sua natureza figural. (p. 159)

Se aos ouvintes cabe a distinção do que é ou não poesia conforme o modo como são tocados por esta, não há mais espaço, na discussão aqui empreendida, para reservar ao público um lugar que se quer passivo.

Os lugares ocupados pela oralidade em cada cultura são elencados conforme as relações que esta estabelece com a escrita. Inicialmente apresentadas como oralidade primária − sem contatos com a escrita − e secundária − quando se encontra subordinada à escrita (ONG, [1982] 1998), sendo depois revistadas após o acréscimo de uma suposta oralidade mista (fase de transição a partir dos contatos iniciais com a escrita, incorporando, posteriormente uma oralidade mediatizada_ fruto da intervenção dos diferentes media_ (ZUMTHOR, [1983] 2010), cuja execução sofre alterações não apenas no seu volume, mas também na temporalidade que se estabelece entre a produção e a recepção.

Zumthor ([1990] 2000) apresenta as etapas pelas quais costumam passar as produções, sejam elas escritas ou orais, mas destaca que a performance se dá de fato quando coincidem no tempo e no espaço a produção, a execução e a recepção. Entre as poucas expressões que se encaixam nesse perfil, a cantoria de improviso é aqui considerada como aquela que traz a força da voz, visto que o instante de criação é evidenciado por seus receptores, cuja atuação não se dá apenas como espectadores, mas como co-partícipes, já que é o modo como reagem e como aderem às produções que norteia as escolhas feitas, estando essas limitadas, por um lado, a temas previamente determinados e, por outro, às estruturas requeridas para cada gênero, restando aos poetas a possibilidade de fazer surgir, por entre a forma, uma circunferência feita sob medida para aquele instante. Ainda que se façam presentes as fórmulas apontadas por Havelock ([1991] 1995), o poder de improviso as supera ou, ao menos, as deglute, incorporando-as conforme as demandas que se apresentem. As estruturas formulaicas, geralmente presentes e necessárias como suportes mnemônicos, funcionam como princípios norteadores para a construção do texto poético, todavia a qualidade que se espera dos cantadores, responsáveis pela lapidação dos versos, dá-se na medida que, ainda que submetidos aos moldes propostos, recorrem à criatividade que rege a força criadora e, embora disponham de uma liberdade vigiada, fazem escorrer beleza e novidade onde poderia emergir previsibilidade.

Pensar o universo da cantoria é expor-se à necessidade que se impõe, de maneira imperiosa, sobre um leque de possibilidades e recursos se não infinitos, ao menos imprevisíveis, na medida em que as alternativas dispostas pela língua precisam estar acessíveis ao poeta, o que se faz mais pelo seu contato com a linguagem do que propriamente pelo seu contato com a escrita. É verdade que esta, contemporaneamente, norteia os modos de produção, mas, ainda assim, tem limitado seu caráter intervencionista pela necessidade de moldar-se ao caminho pensante traçado pelo poeta, que não pode se desvencilhar das amarras das letras, mas que se vale delas para expor, de maneira mais abrangente, um pensamento até, possivelmente, circunscrito pelo aspecto volátil do tempo. Tal pensamento passa a ser manipulado a fim de possibilitar uma maior duração da cena de produção, ao menos aos olhos daqueles que, incapazes de participar das produções in loco, recorrem aos mecanismos que anseiam falsear o instante em que a boca entra em sintonia com o ouvido, sendo impossível escapar dos fluidos que ambos emanam.

A cantoria de viola, cuja disposição social sempre esteve mais atrelada ao campo que à cidade, encontrou no êxodo rural a necessidade de reinventar-se. Quando este se configurou como possibilidade de sobrevivência, a população, de modo praticamente coletivo, deslocou-se em busca de melhores condições de vida, impulsionada pelo sonho que se mostrava possível nas capitais, em torno de um mercado industrial. Mercado este que se estabelecia e acenava para uma esperança de empregos e fez com que grandes levas de famílias migrassem e passassem a ocupar localidades até então desconhecidas. O desconhecimento, que a princípio podia apresentar-se apenas em torno do lócus, passou a mostrar-se estranho também quanto às suas praticas sociais, haja vista que o contato com diferentes blocos humanos, vindos de áreas tão díspares, demandava um novo modo de lidar com o outro, gerando uma aprendizagem recíproca. Os símbolos de pertencimento, até então em vigor, já não tinham valor nessa babel de culturas. Mas, o que fazer para encontrar elementos que pudessem remeter a uma identidade cultural forjada, durante anos, na labuta com a terra e com seus terrenos, tanto humanos quanto físicos? Para Bauman (2005) e Hall (2006), as novas identidades se fazem urgentes em função do declínio dos parâmetros antigos, dos velhos princípios que forjavam pertencimentos por vezes inexplicáveis.

Para as novas demandas que ora se apresentam, é necessário, inicialmente um deslizamento quanto ao conceito de identidade. Tal conceito exige seu remanejamento do singular para o plural, uma vez que os elementos constituintes reclamam, de modo cada vez mais crescente, identidades que se formam como mosaicos, que se apresentam como vitrais, que não podem comungar da ideia de unicidade. Entretanto, para que esses conceitos passem