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FESTIVAIS: ENTRE ROTAS E ONDAS

4.2 TRAJETÓRIA DOS FESTIVAIS

Manifestações em torno de variadas expressões culturais sempre foram destaques nas sociedades. Aqui, no entanto, volta-se o olhar em direção a um movimento de organização posterior que deu início ao que se denomina festival. O termo festival é associado à festa e pode ser entendido como uma modalidade festiva que, ao se estruturar em torno de um conjunto de expressões de uma mesma área, teria o sufixo -al como indicador de uma coletividade. Entretanto, aponta-se também uma filiação ao termo estival, cujo sentido está ligado à ideia de verão ou aquilo que é próprio desse período, considerando que grande parte desses eventos costuma ser realizada nesta estação.

Ao propor cruzamentos dessas bases etimológicas, mesmo levando em conta os riscos que deles possam advir, pretende-se, nesse trabalho, romper com a possibilidade de assentamento de mais uma dicotomia. Nesse sentido, é possível pensar o mesmo termo como uma modalidade específica de festa, que ocorre quase sempre no verão, época que exerce forte atração para um público que, estimulado pelo sol e também por um período de férias, costuma deslocar-se para as regiões mais ensolaradas e que permitem um contato mais estreito com a natureza; no caso europeu, o mês de agosto. Para os frequentadores da festa/festival, o momento é importante e isto por conta de uma maior abertura, que se dá em espaços abertos e luminosos, seja por grupos que fazem piqueniques nos parques, seja por aqueles que buscam a prática de ações tão diferentes daquelas dos circuitos fechados. Ao dispor de dias cuja temperatura desobriga a prática de mãos nos bolsos e olhares baixos, as pessoas mostram-se mais dispostas a um contato mais direto com o outro, ficam mais receptivas e tornam-se mais lúdicas.

O primeiro evento denominado festival ocorreu no século XIX, em Bonn, na Alemanha, em 10 de agosto de 1845, intitulado Festival Beethoven, quando da inauguração de uma estátua em homenagem ao compositor, conforme indica Elwart (1860), e voltou-se, evidentemente, para a música erudita. No entanto, Poirrier (2012, p. 1) aponta que, entre os

anos 1830 e 1840, o movimento orpheônico55, de cunho popular, já desenvolvia elementos que o indicam como precursor quanto à forma de organização festivalesca.

No século XX, a primeira produção com esse formato foi o Salzburger Festspile, o Festival de Salzbourg, na Áustria, em 22 de agosto de 1920, em homenagem a Mozart. Figura 12 Festival de Salzbourg

Em seguida, surge o Festival de Veneza, de 06 a 21 de agosto de 1932, denominado Esposizione Internazionale d’Arte Cinematográfica.

55 Termo de difícil tradução, l’orphéon comumente é elencado ao lado de corais e fanfarras, aproximando-se do

que designamos como filarmônica. Conforme Escoffier (2003), o termo designa, de modo geral, desde um coral criado em 1850 até uma harmonia dos anos 1890, passando por uma fanfarra surgida entre as duas guerras. O olhar pouco atencioso dedicado a essa prática musical, tanto pelos etnomusicólogos quanto pelos historiadores, costuma fundamentar-se na sua pouca expressividade, o que parece estar diretamente relacionado à formação básica dos seus participantes e à classe social a qual costumam estar relacionados.

Figura 13 Festival de Veneza

Mas foram os anos 1940 que apresentaram ao mundo os festivais que são, contemporaneamente, os mais conhecidos: o Festival de Cannes, no período de 20 de setembro a 05 de outubro de 1946, e o Festival de Avignon, de 04 a 10 de setembro de 1947.

Figura 14 Festival de Cannes

Figura 15 Festival de Avignon

No Brasil, A noite da música popular ocorreu em 1940, enquanto o I Festival da

Velha Guarda56 aconteceu em 1954. A I Festa da Música Popular Brasileira, por sua vez, foi

aberta oficialmente pela TV Record em 1960, sob a inspiração do Festival da Canção

Italiana, em Sanremo, cuja primeira edição se deu em 1951, tornando-se um modelo.

Figura 16 I Festival Nacional de Música Popular Brasileira

56Coleção Revista da Música Popular. Rio de Janeiro: FUNARTE: Bentevi produções literárias, 2006. p. 357 e

Figura 17 II Festival da Velha Guarda

Figura 18 II Festival Internacional da Canção Popular

O Festival de Woodstock, realizado em agosto de 1969, na pequena cidade de Bethel, tornou-se um marco da contracultura, valendo-se da música, da dança e da poesia como meios de protesto e trazendo à cena temáticas cujo viés político-ideológico inaugurou o que Almeida (2010) aponta como politização da cultura e do cotidiano.

Muito usado no momento, compondo uma espécie de ‘festivalmania’, o termo festival encontra-se em processo contínuo de definição. Benito (2001, p. 8), preocupado com o conceito de festival, o aponta como um misto de critérios objetivos e subjetivos. Quanto aos primeiros, estes estariam relacionados a alguns aspectos: tempo curto, lugar limitado ou vários espaços de destaque de uma cidade, unidade de ação ou tema estritamente vinculado a uma área do fazer artístico. Os critérios subjetivos, por sua vez, referem-se ao estado de

espírito e celebração pública de uma expressão artística como a reunião de apaixonados, amadores e profissionais, “[...] um festival como uma quase-pelegrinagem57” (Benito, 2001,

p. 08), ou seja, uma espécie de peregrinação virtual. Além disso, deve haver uma programação definida por uma direção artística e apresentação de artistas para celebrar determinada arte a partir da escolha de representantes que gozam de notoriedade popular. Desse modo, ainda conforme o autor, “Um festival poderá por consequência se definir como uma forma de festa única, celebração pública de um gênero artístico em um espaço tempo reduzido.58” (2001, p. 08)

Ainda que apresentados a partir de denominações diferentes, como exposição internacional de arte contemporânea, semana de arte, festa ou, simplesmente, noite, evidencia- se, nesses eventos, a presença de características que lhes permitem o rótulo de festival.

Apresentada por Fabiani (2012) como um bom exemplo de laicização da cultura, a iniciativa de organização dos festivais seria, inicialmente, uma demanda da classe artística, que se responsabilizaria por sua produção, passando a ocupar espaços e fomentar discussões que não se mostravam motivadas por interesses estatais. Para Fabiani (2011), os festivais representam uma forma de politização da estética. Nesse sentido, o autor faz uma releitura de Walter Benjamin, e acaba, em verdade, subvertendo a ideia benjaminiana de estetização da política, uma vez que aponta o desenvolvimento dos festivais em torno de forças políticas que passam a requerer novos espaços de discussão e atuação. A estética passa a ser veículo de expressão política.

Podem ser apontadas algumas marcas que podem diferenciar festa e festival. A festa, em seu sentido estrito, está inscrita em espaços públicos e é gratuita, enquanto o festival, do mesmo modo, se assentaria em espaços fechados, cuja participação se daria através da aquisição de ingressos. Tais marcas, no entanto, não são suficientes para uma distinção mais pontual, visto que mudanças de formato passam a incorporar aspectos que identificam uma outra modalidade festiva. Entretanto, há de se destacar que um elemento que os aproxima é a presença da espetacularização, cuja relevância e abrangência tem se fortalecido em torno do crescimento do que se denomina cultura de massa.

Apontada como uma das heranças do processo globalizador, o desenvolvimento de práticas, que se voltam para a coletividade, não mais restritas a comunidades fechadas, mas dispostas a absorver influências, dificulta uma vã tentativa de indicar uma suposta origem, ao

57[…] un festival comme un quasi-pèlerinage.

58Un festival pourrait par consequente se definir comme une forme de fête unique, célebration publique d’un

mesmo tempo em que colabora para o fortalecimento da noção de fluxos, alimentados por fontes variadas ligadas em redes. Tais redes se articulam a partir de eixos distintos que confluem para uma mesma direção.

Indicados como prioritariamente voltados para públicos mais locais e regionais, exceto aqueles que já conquistaram uma abrangência internacional, os festivais podem surgir e/ou ser sustentados também por iniciativas municipais que o entendem como um modo de dar visibilidade a expressões locais, contribuindo diretamente para o fortalecimento da economia local. Faz-se necessário verificar as relações que tomam forma entre economia e cultura, com vistas ao desenvolvimento de elementos que indicam o surgimento de uma economia da cultura.

Para Garat (1980),

Os festivais constituem um espaço de difusão para as indústrias culturais pulsantes (músicas, edição…). Eles são igualmente integrados a uma oferta turística com o objetivo de tornar atrativas e fazer conhecidas as localidades. Esse contexto mercadológico explica a mudança, nesse decênio, do termo “festas” para festival. (p. 282)59

Embora, inicialmente, a produção de festivais não visasse, diretamente, o desenvolvimento de mais um nicho do setor cultural, paulatinamente, o formato tornou-se referencial para a configuração de um novo e diferente modo de expor e valorizar as produções artísticas, estejam elas relacionadas à música, ao cinema, ao teatro ou à dança, apenas para elencar alguns destaques do setor.

O público, um dos elementos centrais das produções festivalescas, pode ser indicado como corresponsável pelo sucesso dos eventos, como em Woodstock. Para Jean Villar, o idealizador do festival de Avignon, sua proposta de modelo previa uma plateia que deveria manter-se silenciosa, desempenhando o papel de mera receptora. Mas, sabe-se que, em 1968, a plateia decidiu agir, tomar a palavra; desde então, os festivais jamais foram os mesmos, inaugurando uma nova era com a efetiva interação do público.

Os festivais, envolvidos por uma engrenagem social que está sempre em vias de mudança, adaptam sua configuração a fim de adequar-se às novas demandas, sejam elas de mercado, ou ainda aquelas originadas por mudanças culturais e que requerem outros modos

59Les festivals constituent um lieu de diffusion pour des industries culturelles puissantes (musiques, edition...).

ils sont également intégrés à une offre touristique afin de faire connaître et de rendre attratctives les localités. Cet contexte marchand explique que des fêtes soient renommées ‘festival’ dans la décennie.

de inscrição no mundo. Essa movência, presente em contextos nos quais a performance atinge sua forma mais plena, conforme Zumthor (1990), quando os saberes circulam e se mantêm imunes a qualquer insinuação de clausura, encontra-se entranhada nas produções populares, onde a presença de uma lógica oral colabora para o delineamento de posturas mais fluidas, de trocas mais constantes, de identidades mais líquidas.

O papel desempenhado pelo público, a presença de critérios objetivos e subjetivos propostos por Benito (2001), o aspecto movente dos espetáculos, além do caráter seletivo e eletivo, compõem o traçado de um quadro teórico que ainda está em vias de modelação.

Embora saibamos que os festivais brasileiros de cantoria têm maior acolhida entre os Estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte, Piauí e Bahia, não há um levantamento preciso de dados para que possamos utilizar para a elaboração de um quadro distribucional dos eventos, a não ser o testemunho de cantadores, como Ivanildo Vila Nova:

Os Estados menos fortes na cantoria nordestina são: Maranhão, Piauí era, já não é mais, Sergipe, Bahia e Alagoas. Quer dizer, hoje o Piauí se encontra entre os Estados mais fortes da cantoria. Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Alagoas ainda na frente de Sergipe, de Maranhão, da Bahia. (2013, p. 11)

O poeta José Alves Sobrinho (1980) também apresenta o seu ponto de vista:

Os locais que mais abrigaram os festivais foram Paraíba do Norte, Campina Grande. O de Campina Grande tem sido um dos maiores congressos de cantadores. O primeiro foi realizado por Apolônio Cardoso, um ex-cantador, hoje advogado residente em Mossoró, foi que organizou o primeiro congresso. O segundo já fomos nós da associação que organizamos em 76. Zé Gonçalves era o presidente. Organizamos o terceiro e o quarto já foi na gestão de Ivanildo. O quarto e o quinto. E o resultado é que esse ano ele ainda não fez porque o quinto deu um prejuízo enorme que ele não teve cabeça. Fora da Paraíba, o Piauí já tem feito, já vai fazendo três congressos em Teresina. O doutor Pedro Bezerra, folclorista, já vai realizando com muito brilhantismo, no Piauí, congressos de cantadores. Mas, Edilene, somente Campina Grande é que tem um calendário fixo para congresso, embora esse ano não tenha sido no mesmo mês. João Pessoa já vai fazendo quatro congressos também, mas não tem calendário fixo. Pode ser em maio, pode ser em agosto. Aqui, na Bahia, tem Feira de Santana. Lá, já houve congressos, eu não tomei parte não. Se não me engano, já houve dois. (p. 07)

O que se pode esboçar é uma estimativa que contemple a realização dos festivais de acordo com as cidades onde eles acontecem e/ou aconteceram:

Gráfico 1 Distribuição dos eventos conforme as pesquisas empreendidas

O gráfico acima ajuda a compreender como os eventos se encontram distribuídos no Nordeste na atualidade, bem como perceber a dinâmica que se dá em sua elaboração. A pesquisa em curso indicou a presença de festivais em 15 cidades cearenses (Fortaleza, Bairro Alto, Juazeiro do Norte, Abaiara, Camocim, Iguatu, Quixadá, Quixeramobim, Aurora, Quixeré, Farias Brito, Maracanaú, Serra Branca, Tauá, Limoeiro do Norte), 14 cidades pernambucanas (Recife, Gravatá, Caruaru, São José do Egito, São José de Belmonte, Sertânia, Totirama, Serra Talhada, Flores, Tabira, Triunfo, Itapetim, Petrolina, Arcoverde), 14 cidades baianas (Salvador, Feira de Santana, Conceição do Coité, Serrinha, Valente, Cavunge, Riachão do Jacuípe, Ichú, Biritinga, Ipirá, Entre Rios, Vitória da Conquista, Camaçari, Santo Amaro da Purificação), 10 cidades paraibanas (João Pessoa, Campina Grande, Patos, Cajazeiras, Princesa Isabel, Guarabira, Bayeux, Imaculada, Sumé, Alagoa Grande), 06 cidades potiguares (Natal, Mossoró, Carnaúbas, Apodi, Vale do Açu, São Miguel), 02 cidades piauienses (Teresina, Picos), 02 cidades alagoanas (Arapiraca, Maceió), 02 cidades sergipanas (São Cristóvão, Aracaju) e 01 cidade maranhense (Timon).

Os mapas abaixo também colaboram para uma melhor visualização da distribuição dos festivais na região Nordeste:

Mapa 1 Distribuição dos festivais na região Nordeste

O Estado do Ceará, onde aconteceu o primeiro Congresso de Cantadores, em 1947, por iniciativa de Rogaciano Leite, seguindo a ideia de Suassuna de levar os cantadores para o teatro, surge como o espaço mais produtivo, mas, contrariando afirmações de que a região jaguaribana seria a mais poética, os festivais se espalham pelo Estado, embora os que obtenham maior destaque sejam o Festival Nacional de Viola e Poesia, em Juazeiro do Norte, em sua oitava edição, e o Festival Internacional de Trovadores e Repentistas, criado pelo cineasta Rosemberg Caryri, atualmente em sua sétima edição, que já foi sediado em Quixadá, Quixeramobim, Farias Brito, Senador Pompeu e, a partir da quarta edição, fixou-se em Limoeiro do Norte, já sob a coordenação do repentista Geraldo Amâncio. Além de contar com a representação histórica de nomes como Manoel Galdino Bandeira e Siqueira de Amorim, a região cearense tem como ilustre moradores três dos maiores cantadores da atualidade: Pedro Bandeira, Geraldo Amâncio e Sílvio Grangeiro. Graças ao seu poder de articulação e ao seu reconhecimento como mestres do improviso, conseguem trazer ao Estado colegas cujo prestígio agrega elementos suficientes para garantir grandes encontros, à medida em que

contribuem para que a arte do improviso seja estimulada e reverenciada localmente como uma das maiores representantes da cultura popular.

Pernambuco, por sua vez, foi o primeiro lugar a apresentar os cantadores em um contexto inusitado cantoria no teatro e, além de ter sediado o segundo congresso de cantadores, é amplamente reconhecido por sua diversidade cultural, que tem como maiores representantes o frevo, o maracatu e a cantoria. Sendo a terra dos irmãos Batista, Dimas, Otacílio e Lourival, São José do Egito é decantada como a terra da poesia em função de pertencer a uma região conhecida como Vale do Pajeú, onde se concentra a produção de festivais e eventos relacionados à cantoria.

A Paraíba é apontada como a ‘universidade dos cantadores’ por ter sido berço dos primeiros cantadores Agostinho Nunes da Costa e seus filhos Nicandro Nunes da Costa e Ugulino Nunes da Costa, conhecido como Ugulino do Sabugi todos da famosa Serra do Teixeira. A cidade de Campina Grande sediou eventos importantes e fundadores e se faz representar, principalmente, por um movimento cultural que sempre foi forte e dinâmico, tendo a feira como grande espaço de congregação, destacando-se a figura do cantador José Alves Sobrinho, cujo trabalho artístico e acadêmico contribuiu para o reconhecimento da poesia improvisada criada no município60. Nas terras paraibanas, o toque da viola e o estímulo para cantar se confundiam com as demandas do cotidiano:

[…] se dizia que cantador tinha que ser paraibano ou morar na Paraíba porque a Paraíba era uma espécie de universidade, o berço dos cantadores, inclusive lá a cantoria nasceu. E o cantador cearense não tinha muita credibilidade perante os cantadores paraibanos ou mesmo cantadores cearenses que moravam na Paraíba. E, sabendo disso, eu fui morar em Cajazeiras, na Paraíba […] (AMÂNCIO, 2012, p. 06)

O poeta e pesquisador José Alves Sobrinho (1980), por sua vez, apresenta informações que buscam delinear o contexto que propiciou o fortalecimento da palavra cantada na região:

O cantador do Brasil surgiu da tradição da glosa. Antes do cantador havia o hábito, no nordeste, especialmente de Caraíbas, Serra do Teixeira, Patos, Piancó, havia serões de glosa. Juntavam-se quatro ou cinco glosadores e passava um domingo ou uma noite de São João, de São Pedro, glosando nas casas e corria até a propina. Observe os glosadores como Nicandro Nunes da Costa, Bernardo Nogueira, Germano de Araújo Leitão, Germano de Alagoas,

60 Para maiores informações, ver a tese intitulada José Alves Sobrinho: un poète entre deux mondes, cuja autoria

Firmino da Jurema, José Martins, Silvino Pirauá Lima, eram glosadores profissionais, viviam da glosa. Bom, veio o reisado. O reisado a orquestra era viola e rabeca. Havia as loas dos Mateus, dos mascarados, e cantavam aquelas loas. E os cantadores nasceram dali. O próprio Ugulino do Sabugi foi de orquestra de reisado. Ele tinha viola e toca em orquestra de reisado. Manuel Caetano, negro velho, escravo, foi da orquestra de reisado. João Benedito, negro velho, não chegou a ser escravo, já nasceu quase livre. Bom, os cantadores sugiram daí. Glosavam, cantavam em quadras, depois Silvino Pirauá Lima criou a sextilha, isso início de setenta pra cá, século passado. (p.17) O testemunho do poeta indica que os poetas populares utilizam recursos presentes em várias expressões culturais, de modo que algumas características são constituintes da poesia oral improvisada e, por isso, permeiam o modo como os poetas fazem uso da linguagem em seu processo criativo.

A Bahia surge no discurso dos cantadores como uma terra pouco afeita à poesia improvisada:

O maior nome até hoje na Bahia é Bule-Bule. É um dos maiores artistas da viola de todos os tempos.Eu só sei é que ele é um grande artista. Ele é capaz de prender um público, não só com a cantoria, porque ele é polivalente, né? Ele canta embolada, ele canta o coco. Ele canta o samba, sabe? Então, eu acho ele a maior expressão poética popular da Bahia de todos os tempos: Bule-Bule que, inclusive, eu quero muito bem, né? A Bahia não tem grandes nomes não, nunca teve. É porque a Bahia não teve nenhuma tradição de cantoria. O meio também, sabe, colabora muito para isso. O Pernambuco é excelente, na Paraíba a cantoria nasceu. Porque a prática faz o grande poeta. A Bahia não é uma grande praça para cantoria, né? O Pernambuco sim, a Paraíba sim, o Ceará sim. O público é pouco, é pequeno. Muito escasso. Estou dizendo isso porque viajei o interior da Bahia com o próprio Bule- Bule, né? (AMÂNCIO, 2012, p. 26)

Ivanildo Vila Nova, repentista que já participou do festival realizado em Feira de Santana, acrescenta:

Na Bahia eu conheci Antônio Queiroz, que destacou-se bem e ouvi falar de Nadinho. E um ou outro. A Bahia nunca foi foco da cantoria, até mesmo pela pouca penetração dos cantadores daqui lá. Se tivesse havido uma invasão maior, teria sido produtiva. (2013, p. 11)

Miguelzinho, cantador baiano, diz o que falta:

Se nós na Bahia vivêssemos de poesia, com certeza, a Bahia também cantava igual à Paraíba. Mas não, todo mundo deixa o trabalho, canta por acaso. Como é que cresce? Entendeu? Deus disse “Usa, que sereis mestre” e sem usar, não pode ser mestre. Então, é isso que nos falta, inclusive a mim

mesmo. Se eu vivesse da poesia, tivesse condições de viver da poesia, eu estudaria também um pouco, eu lia, entendeu? Mas não. A gente tem que ir pros seus afazeres pela nossa sobrevivência e a poesia fica, como eu estou dizendo pra você “Por acaso, assim no festival”, por acaso alguém combinar