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FESTIVAIS: ENTRE ROTAS E ONDAS

4 FESTIVAIS REVISITADOS

4.1 UMA TRADIÇÃO DE ENCONTROS E CONGRESSOS

Recorrendo ao histórico apresentado por Tinhorão (2013), entende-se que variados gêneros rurais urbanizaram-se, de modo que

O aproveitamento, por parte dos compositores das cidades, de gêneros de músicas da zona rural, de caráter folclórico, remonta ao século XIX e tem sua origem no interesse que o tema dos costumes do campo começa a despertar no público urbano frequentador do teatro de revista. (p. 225)

O primeiro gênero rural a figurar como sucesso a música popular brasileira foi o corta-jaca, pano de fundo para dança do mesmo nome. Isso se deu a partir de uma estilização

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La literatura orale, aussi rich soit-elle, n’est plus une fin en soi, elle ne peut plus être étudiée pour elle seule indépendament du reste. Sa valeur culturelle dans une communauté ne peut être considerée que par rapport àl’ensemble des faits culturels observés dans cette comunauté, qu’il s’agisse de la vie matérielle ou spirituelle.

feita para o tango O gaúcho pela compositora e maestrina Chiquinha Gonzaga, em 1897 constituinte da parte musical da Zezinha Maxixe, de Machado Careca, levada ao Teatro Eden Lavradi, no Rio de Janeiro.47 A desilusão face aos percalços da vida urbana alimentava a lembrança nostálgica das paisagens do interior, dos prazeres ligados à vida campestre, favorecendo a recepção dessa temática. A migração, nesse período, tinha como rota de fuga o Rio de Janeiro, capital do país e também o maior parque industrial da época. As artes voltavam-se para o regionalismo, sendo a literatura e a música as grandes vitrines. Os gêneros considerados folclóricos foram introduzidos aos poucos e tiveram Catulo da Paixão Cearense48 e João Pernambuco49 como os mediadores mais destacados. Em 1913, a embolada Caboca de Caxangá virou sucesso e tornou-se grande destaque no carnaval de 1914, para desgosto de Catulo, seu criador, a quem pareceu “[…] uma prova de insensibilidade da gente da cidade […]” (TINHORÃO, 2013, p. 232) associar versos tão caros ao povo do sertão à transgressão carnavalesca. Em seguida, em 1915, Catulo emplaca, outra embolada, Luar do sertão, contribuindo decididamente para a abertura de um mercado para esse gênero e seus correlatos. Compreendendo que surgia uma nova forma musical, cuja atração se dava mais pelo ritmo que pela musicalidade poética dos versos, Eduardo das Neves50, já em 1901, lançou a coletânea Trovador de Esquina, onde incluiu seis versos que denominou Um improviso na viola. Em 1905, no livreto Mistérios do violão, o mesmo compositor incluiu o Desafio entre as composições destacadas, dando-lhe o subtítulo Ao som da viola, tendo em

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Virgínia Lessa (2012) aponta a importância inequívoca do teatro musicado para a consolidação de muitos gêneros musicais, dentre eles a canção popular brasileira, ainda que tenha se debruçado especificamente sobre o período de 1914 a 1934, em São Paulo. O que se pode inferir, entretanto, é que, naquele período, a cena teatral do Rio de Janeiro ‘ditava’ o modus operandi da época, tendo em vista o seu status de capital do país e sua importância enquanto polo industrial.

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Apesar de ter incorporado sua paixão pelo Ceará em seu nome artístico, nasceu no Maranhão e aos dez anos mudou-se com a família para o interior cearense. Poeta, compositor, cantor e teatrólogo, aos 17 anos mudou-se com a família para o Rio de Janeiro e lá conheceu os músicos Joaquim Calado, Viriato, Quincas Laranjeiras, o Cadete e o estudante de música Anacleto de Medeiros. Aprendeu a tocar violão com um estudante de medicina, abandonando seu interesse pela flauta. Conviveu com cantadores nordestinos durante parte de sua juventude, o que lhe rendeu uma forte influência em suas composições, chegando mesmo a escrever folhetos de cordel.

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João Teixeira Guimarães, conhecido como João Pernambuco, nasceu em Jatobá/PE e assim foi chamado por contar casos sobre sua terra natal. Analfabeto, era autodidata e possuía grande conhecimento sobre cultura popular em função do seu estreito contato com artistas populares, tendo aprendido a tocar violão com violeiros como o Cego Sinfrônio e Fabião das Queimadas, tornando-se violonista e compositor. Embora já convivesse com repentistas, violeiros e cantadores em Recife, sua inserção no cenário artístico se deu após sua mudança para o Rio de Janeiro, em 1904, quando conheceu figuras com Donga, Pixinguinha, Afonso Rinos e Catulo da Paixão Cearense, que se tornou seu parceiro. Após desempenhar as mais diversas funções, em 1922, a convite de Villas Lobos, passou a exercer a função de contínuo na Superintendência de Educação Musical e Artística.

50Eduardo Sebastião das Neves, conhecido como Eduardo das Neves, era um compositor e poeta carioca que

desde os anos 1985 apresentava-se em circos, também conhecido como Palhaço Negro por ser considerado um dos precursores do uso do humor na Música Popular Brasileira. Foi um dos primeiros artistas a gravar discos e organizou um dos marcos da Música Popular Brasileira: uma serenata em homenagem a Santos Dumont, realizada em 7 de setembro de 1903, para a qual convocou grandes artistas como Quincas Laranjeiras, Sátiro Bilhar, Irineu de Almeida, Mário Cavaquinho, Chico Borges, entre outros.

vista que, por se tratar de uma novidade para o público carioca, carecia de apresentação. (TINHORÃO, 2013). Gradativamente, foram inseridos gêneros como o cururu, o jongo, o bumba-meu-boi, o coco, o desafio, todos seguindo o caminho inaugurado pela embolada, aproveitando o interesse pela temática rural e seus encantos.

Se, inicialmente, os gêneros rurais foram introduzidos sob a alcunha de gênero folclórico, conquistaram um lugar de destaque, passando a ser recebidos como música popular, deslocando-se para um eixo de maior aceitação comercial, cujo retorno se deu partir pela consolidação, a partir dos anos 1930, das modas de viola e do surgimento das duplas caipiras, sendo a primeira Jararaca e Ratinho, em 1927. (TINHORÃO, 2013, p. 240). As mudanças que se davam a partir do crescimento das indústrias fonográfica e radiofônica alteraram as formações musicais em voga, assim

Bem mais prático e fácil de administrar que uma orquestra geralmente até dispensava o arranjo escrito , proliferou um tipo de conjunto musical que ganhou o nome de regional. Esses regionais eram simples continuadores dos pioneiros conjuntos de choro que, como foi dito, a partir do final do século XIX começaram a ser requisitados para acompanhar cantores de serenata. Até sua constituição básica era a mesma (um instrumento solista, dois violões e um cavaquinho), apenas acrescida de um pandeiro ou de outro instrumento leve de percussão. (SEVERIANO, 2008, p. 254)

Nesse momento, o país encontrava-se em grande efervescência e, em meio à controversa eleição do presidente Washington Luís, eis que se avoluma o movimento de revolta já em andamento, culminando com a histórica Revolução de 30, que promoveu a queda do então presidente e, a partir de um golpe de estado, a posse de Getúlio Vargas. Um movimento crescente, a partir do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais, iniciado no dia 03 de outubro, rapidamente ganhou fôlego na Paraíba e no Recife e eclodiu na Bahia, no dia 04, com a manifestação intitulada Quebra Bondes. Embora não haja, diretamente, elos entre esse ato e as atividades dos grupos revolucionários baianos, a tensão que se alastrava pelos quatro cantos do Brasil alimentava e estimulava atos revolucionários (SEVERIANO, 2008, p. 257). Nesse sentido,

A Revolução de 30 conforma mais uma tradição pelo alto; com rupturas e continuidades controladas. O novo regime representa um pacto de compromisso entre os novos atores e as velhas elites agrárias. Industrialização; urbanização; modernismo cultural; e construção do estado nacional centralizado, política e administrativamente são faces do renovado país. (RUBIM, 2007, p. 103)

Nesse período, inauguram-se as políticas culturais nacionais a partir da criação do Ministério da Educação e Saúde, em 1930, da forte presença de Mário de Andrade à frente do Departamento de Cultura da Prefeitura de São Paulo, entre 1935 e 1938, e da atuação de Gustavo Capanema junto ao referido ministério no período de 1934 a 1945.

Dentre os avanços empreendidos por Mário de Andrade, pode-se dizer que este inova ao:

1. estabelecer uma intervenção estatal sistemática abrangendo diferentes áreas da cultura; 2. pensar a cultura como algo “tão vital quanto o pão”; 3. propor uma definição ampla de cultura que extrapola as belas artes, sem desconsiderá-las, e que abarca, dentre outras, as culturas populares; 4. assumir o patrimônio como algo imaterial, intangível e pertinente aos diferentes estratos da sociedade; 5. patrocinar duas missões etnográficas às regiões amazônica e nordestina para pesquisar suas populações, deslocadas do eixo dinâmico do país e da sua jurisdição administrativa, mas possuidoras de significativos acervos culturais. (RUBIM, 2007, p. 103)

Ao ser indicado para o Departamento de Cultura, em 1935, logo após sua criação, Mário de Andrade deu início a uma série de investimentos voltados para o setor cultural. As pesquisas empreendidas por ele, pelo país, notadamente pelo Nordeste, denominadas Missão de Pesquisas Folclóricas, revelaram a existência de inúmeras práticas culturais até então conhecidas apenas em âmbito local, e trouxeram a público uma grande variedade de ritmos musicais, dando ênfase à valorização do patrimônio imaterial brasileiro. Longe de se preocupar apenas com o preciosismo de uma suposta pureza no que tange à identidade musical brasileira, Mário afirma:

Se fosse nacional apenas o que é ameríndio, também os italianos não podiam empregar o órgão que é egípcio, o violino que é árabe, o cantochão que é grecoebraico, a polifonia que é nórdica, anglosaxonia flamenga e o diabo. Os franceses não podiam usar a ópera que é italiana e muito menos a forma- de-sonata que é alemã. E como todos os povos da Europa são produto de migrações preistoricas (sic) se conclui que não existe arte europeia… (ANDRADE, 2006, p. 13/14) Enquanto a edição das Cadernetas de Campo, em 2010, deu acesso ao material escrito de suas pesquisas, o lançamento de uma caixa com 06 CDs, em 2006, revelou os registros orais das expressões orais recolhidas. Os CDs 01, 02, 03 e 04 trazem desafios entre repentistas como Lourival Baptista Patriota, Dimas Guedes Baptista Patriota, Berlamino Fernandes de França, Cesário José da Ponte, Manuel Felix da Silva, Evaristo Augusto de Oliveira, Josué de Oliveira Cruz, Vicente José de Souza e Manuel Galdino Bandeira. Realizadas em abril de 1938, as gravações evidenciam o lugar de destaque que essas

produções ocupavam em suas comunidades. Ainda que esse material tenha sido disponibilizado apenas muitos anos depois, a iniciativa do então secretário aponta para a urgência de considerar a cultura brasileira além dos muros que cercavam o eixo sul/sudeste do país, descortinando a riqueza própria da diversidade cultural brasileira. Essa ambientação era favorável, entretanto, caminhava ao lado da criação de instrumentos de controle que impunham a censura às artes, coibindo iniciativas e discursos que não estivessem alinhados com os interesses maiores do Estado.

Assim como outros gêneros, chegando à cidade, ao deslocar-se de fazendas, sítios e terreiros para bares, praças e feiras, a cantoria teve sua sistemática alterada. Os antigos apologistas, geralmente donos das fazendas, passaram a conviver com os novos promotores, grupo formado por donos de bares e agitadores culturais que atuavam como produtores culturais e eram responsáveis pela logística dos eventos. Assim, aos poucos, a bandeja passou a conviver com um cachê previamente acertado e a cantoria passou a ter horário para começar e para terminar, alterando a prática que rompia madrugadas e só parava quando os poetas não tinham mais condições de cantar, sendo vencidos pelo cansaço ou quando já pareciam faltar versos para ‘tirar das cacholas’.

Geraldo Amâncio (2012) aponta que mudanças fundamentais foram introduzidas já nos anos 1940 por Dimas Batista:

Primeiro, nós tivemos uma grande contribuição da geração que nos antecedeu, vamos dizer que a outra geração antes de Dimas Batista, essa geração toda cantou por bandeja, com bandeja. Dimas impôs aqui no Vale Jaguaribano, que continua sendo a região mais vocacionada para cantoria no Ceará, cercar a cantoria, fazer uma cerca, cobrar o ingresso, cada pessoa pagar x e com horário determinado para começar e para terminar. (p. 13)

Bráulio Tavares (2012), entretanto, indica que essas mudanças iniciais surgiram a partir de uma movimentação iniciada por Ivanildo Vila Nova, inaugurando o que Ramalho (2000) vai denominar “profissionalização da cantoria”, quando os cantadores começam a se organizar como categoria, e é explicitado no trecho abaixo:

[…] Ivanildo, além de ser um dos grandes poetas da geração dele, ele é um cara que ele sempre trabalhou pela união da classe, união profissional, ele dizia assim, “Olha todos brigamos com relação às nossas brigas pessoais. Eu dei uma surra em você numa cantoria não sei aonde, você me deu uma surra não sei aonde, estou com raiva de você e tal, mas na hora de defender a categoria dos cantadores a gente não tem que pensar em grupinhos, tem que pensar na classe”. E várias coisas que Ivanildo defendia na época e que, aos poucos, foram se impondo, que era de dizer assim: “Não usar a bandeja como

forma de pagamento, usar o cachê”, que ele dizia: “Por que é que um cantador de MPB cobra um cachê antecipado e o cantador não pode cobrar? Por que é que a gente tem que se submeter a botar uma bandeja e ter que ficar adulando as pessoas para que as pessoas paguem o nosso cachê? A gente tem que funcionar não com bandeja, tem que funcionar com cachê previamente combinado”. Então, isso é uma coisa importantíssima e a coisa do reconhecimento profissional da profissão de cantador que só saiu há pouco tempo, eu acho, uns quatro anos, mas já era uma coisa que se batalhava e que se defendia e que se dizia “N s temos que ser uma profissão reconhecida e tal e tal e tal”.51

(p. 05/06)

O próprio poeta Ivanildo Vila Nova (2013) discorre sobre sua contribuição para as mudanças que se deram na cantoria:

Não é só com a minha, né? Era uma geração de cantadores que fez com que a cantoria subisse de nível e teve aquele que tinha a cabeça mais aberta, quer dizer, uma mente mais coletiva, mais corporativista, menos individual, que batalhou. Eu fiz a minha parte, quer dizer, eu estive em congressos, eu estive fundando associações, eu participei de confederações, eu bati na porta de Ministério, eu fiz campanha em revistas e jornais, eu pedia onde eu cantava, quer dizer, eu fiz uma parte muito boa, quer dizer, que terminou quando se criou o primeiro projeto que regulamentava as profissões de cantador, de embolador e de escritor popular, que era o cordelista, né? Aí, de lá pra cá, o resto vem sendo consequências. (p. 03)

O reconhecimento da comunidade e a afirmação dos poetas como profissionais, trabalhadores e não malandros desocupados52 foram fundamentais para o estabelecimento de novos ares na cantoria improvisada. Dimas Batista, já preocupado com essas questões, critica:

Basta um cabra não ter disposição Pra viver só de serviço alugado, Pega numa viola e bota ao lado, Compra logo o “Romance do Pavão”, A “Peleja do Diabo e Riachão” E “A Hist ria de Pedro Malazarte”,

51Entrevista cedida em 16 de novembro de 2012, em João Pessoa/PB (APÊNDICE K). 52

Inicialmente, o repentista era pessoa non grata para as famílias, pois sua figura estava associada a uma ocupação que não era compreendida como séria num ambiente onde os homens viviam da lavoura, de modo que muitos cantadores conciliaram, durante algum tempo, o trabalho na agricultura e a prática da cantoria, haja vista, também, a impossibilidade de viver de sua arte. Andarilhos, saiam de fazenda em fazenda cantando com o objetivo de obter a renda necessária para prosseguir viagem. Boêmios, tinham o álcool como parceiro constante o que poderia causar, conforme o andamento da cantoria, desavenças durante a produção dos versos, visto que perdiam os limites, ofendiam seus desafiantes com versos repletos de fel e ironia e o embate verbal facilmente tornava-se um confronto físico, constrangendo os presentes e pondo fim ao tão esperado momento de confraternização. Atualmente, muitos cantadores sofrem ainda as consequências dos abusos realizados no passado e, após experiências traumáticas que tinham as bebidas alcóolicas como protagonistas, principalmente a aguardente, procuraram os Alc olicos Anônimos (AA) projeto desenvolvido pela igreja cat lica e permanecem abstêmios, satisfazendo-se com outros líquidos que os mantenham lúdicos e capazes de dispor de toda sua potência poética.

Sai no mundo a gabar-se em toda parte, A berrar por vintém no meio de feira, Parasitas assim desta maneira

É que têm relaxado a minha arte. (WILSON, 1986, p. 300)

Percebe-se que cada geração apresenta um representante que, não se sabe se planejadamente ou não, dá continuidade a projetos anteriores, que visam o fortalecimento da classe. Se Dimas Batista introduziu mudanças, Rodolfo Coelho Cavalcante fomentou uma discussão mais voltada para o estabelecimento de direitos da categoria, no que parece ter sido seguido por Ivanildo Vila Nova. Entretanto, cada geração, talvez em função da proximidade temporal e do desconhecimento de outras narrativas que versem sobre o desenvolvimento da cantoria, aponta como grande responsável algum membro da geração imediatamente anterior, que ainda goza de grande prestígio entre os pares, revelando uma mistura de consciência da fragilidade da profissão com falta de memória da luta.

Mudanças internas, aparentemente motivadas por estímulos externos e internos, estimularam o surgimento de novos formatos. A busca por uma nomenclatura que se encaixe com perfeição a um único modelo não encontra lugar no que tange aos eventos que se desenvolvem no universo da cantoria. Do mesmo modo, tentar fixá-los no tempo e no espaço são tarefas hercúleas, entretanto, é preciso recorrer a um leitura do contexto mais amplo, contemplando aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais para compreender o impacto de tais alterações.

As transformações que assolaram o universo agrícola, com a introdução de novos equipamentos e novas demandas destinadas à mão de obra, são o carro-chefe de um segmento denominado agronegócio, que ressignificou as relações na zona rural, motivando o êxodo rural. O processo de urbanização brasileira consolidou-se a partir dos anos 1940 e, ao se deslocarem rumo à cidade, as pessoas levavam suas memórias na bagagem e, com elas, suas práticas culturais, como lembra a canção Pau de arara, eternizada por Luiz Gonzaga:

Quando eu vim do sertão, seu môço, do meu Bodocó A malota era um saco e o cadeado era um nó Só trazia a coragem e a cara Viajando num pau-de-arara Eu penei, mas aqui cheguei (bis) Trouxe um triângulo, no matolão Trouxe um gonguê, no matolão

Xote, maracatu e baião

Tudo isso eu trouxe no meu matolão.

(Disponível em: http://www.vagalume.com.br/luiz-gonzaga/pau-de arara.html#ixzz2sTfQye4M)

Os encontros regados a rodas de violas e experiências partilhadas que preenchiam os momentos de lazer e de encontro foram, gradativamente, perdendo espaço à medida que se incorporavam a uma nova dinâmica, que demandava outros modos de lidar com o mundo, e se adaptavam a novos modos de sociabilidade. O sentimento provocado por esses deslocamentos é sintetizado por Rogaciano Leite, repentista famoso que se tornou literato:

O êxodo para as cidades não se restringiu às camadas humanas que vivem exclusivamente de trabalhar a terra. Ele afetou também a alma dos sertões, isto é, o conteúdo emocional de sua virginalidade, então emanada daquele espírito displicente, filosófico e sentimental dos homens rudes. Já não há o menor encanto numa noite de São João no interior; extinguiu-se aquela nota típica que marcava os “forr s” alumiados a candeeiro; morreu aquele romantismo que dominava os serões das casas de fazenda, onde se desafiavam, à luz da lua, as histórias de Trancoso e das Mil e uma noites. O sertão vai ficando deserto até mesmo de seus cantadores, que hoje estão completamente absorvidos pela cidade, onde se constata, a qualquer instante, uma espécie de invasão da musa campesina. As estradas vazaram os campos e os grandes centros os roubaram ao seu ambiente nativo.

(10 jan. 1956, p. 1)53 Esse lamento poético, de quem conhece a alma da poesia improvisada, retrata, com excessiva nostalgia e um certo tom de fatalidade, as dúvidas e incertezas quanto à nova paisagem a ser captada e quanto à sua acolhida em novas plagas. Marcados pelo espírito de sobreviventes, os cantadores valeram-se do que lhes cabe de camaleônicos e adaptaram às novas cores da paisagem. Pintaram com poesia o quadro que emolduraria novos versos. Para alguns, entretanto, as mudanças trazem perdas e geram um novo personagem, com diferenças que se estendem à pr pria performance e que comprometem a “pureza” dessa arte:

O ambiente da cidade modificou os temas, a poética sertaneja. São bem