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2 O USO DOS ESTUDOS CULTURAIS NA ANÁLISE DAS NARRATIVAS

2.1 Estudos culturais: origem e propagação

Mas afinal o que são os estudos culturais? Os estudos culturais surgiram no século XIX, quando a Inglaterra industrial viu desenvolver-se à época um debate original sobre a cultura. “A questão central era compreender como a cultura de um grupo, e inicialmente a das classes populares, funcionava como contestação da ordem social ou, contrariamente como modo de adesão às relações de poder” (MATTELART; NEVEU; 2004; p. 13). Surge então uma tradição conhecida pelo nome de “Culture and Society”, que, de acordo com Mattelart e Neveu (2004), era impulsionada pelas figuras intelectuais do humanismo romântico que tinham em comum o fato de denunciarem os estragos da vida mecanizada, como efeito da civilização moderna. “O campo deste estudo surge, de forma organizada, através do Centre

for Contemporary Cultural Studies (CCCS), diante da alteração dos valores tradicionais da classe operária da Inglaterra do pós-guerra” (ESCOSTEGUY, 2011, p. 151). Fundado em 1964 por Richard Hoggart, o centro estava ligado ao English Department da Universidade de Birmingham e tinha como eixo principal as relações entre a cultura contemporânea e a sociedade.

Três textos que surgiram no final dos anos 50 são identificados como as principais fontes dos estudos culturais: Richard Hoggart com The Uses of Literacy (1957), Raymond Williams com Culture and Society (1958) e E.P. Thompson com The making of the English

working Class (1963).

Hoggart estuda a influência da cultura difundida em meio à classe operária. A ideia central desenvolvida por ele é “que tendemos a superestimar a influência dos produtos da indústria cultural sobre as classes populares” (MATTELART; NEVEU; 2004; p. 42). Williams e Thompson estudam a questão das lutas sociais e a interação da cultura com a economia destacando que muitas formas de produção assumem também a forma de mercadorias capitalistas. É essa a principal relação entre os estudos culturais e o marxismo. De acordo com Escosteguy (2011), a visão marxista contribuiu para os estudos culturais no sentido de compreender a cultura na sua autonomia relativa, isto é, “ela não é dependente das relações econômicas, nem seu reflexo, mas tem influência e sofre consequências das relações

político-econômicas” (ESCOSTEGUY, 2011: p. 156). Ou seja, os estudos culturais não dizem respeito apenas à cultura, mas é com a visão do ponto de vista político e teórico que essa corrente de pesquisa deve ser analisada. Do ponto de vista político quando se refere aos movimentos sociais e do ponto de vista teórico, como resultado de uma insatisfação com os limites de algumas disciplinas, propondo então a inter/trans ou ainda antidisciplinaridade (ESCOSTEGUY, 2011).

A multiplicidade de objetos de investigação também caracteriza os Estudos Culturais. Isto resulta da convicção de que é impossível abstrair a análise da cultura das relações de poder e das estratégias de mudança social. A ausência de uma síntese completa sobre os períodos, enfrentamentos políticos e deslocamento teóricos contínuo de método e objetivo faz com que, de forma geral, e abrangente, o terreno de sua investigação circunscreva-se aos temas vinculados às culturas populares e aos meios de comunicação de massa e, posteriormente, a temáticas relacionadas com as identidades, sejam elas sexuais, de classe, étnicas, geracionais, etc. (ESCOSTEGUY, 2011, p. 160).

Ladeira Mota (2008) também afirma que “como bem define Hall (1980), os estudos culturais não configuram uma disciplina, mas uma área em que diferentes disciplinas interatuam, em busca de respostas para aspectos culturais da sociedade” (LADEIRA MOTA, 2008, p. 57). Ou seja, devido a sua complexidade e característica multidisciplinar, os estudos culturais não dizem respeito apenas à cultura, mas sim a questões políticas e teóricas. Completando a afirmação a respeito desta teoria, Mattelart e Neveu afirmam que os estudos culturais nascem de uma recusa do legitimismo, das hierarquias acadêmicas, dos objetos nobres e ignóbeis. Para os autores, estudar esta teoria é:

É perceber em um contexto dado, em que os sistemas de valores, as representações que eles encerram levam a estimular processos de resistência ou de aceitação do status quo, em que discursos e símbolos dão aos grupos populares uma consciência de sua identidade e de sua força, ou participam do registro alienante da aquiescência às ideias dominantes (MATTELART; NEVEU, 2004, p. 73).

No entanto, apesar de sua indefinição, os estudos culturais, que começaram com foco na temática de subculturas, como as análises das classes operárias, têm hoje entre seus compromissos principais a função de examinar a construção da identidade, a relação dos novos meios de comunicação com a globalização e o estudo sobre a comunicação de massa e sua relação com o poder.

Essa desconstrução de uma herança de pesquisa abre caminho para um último objetivo: compreender as metamorfoses da noção de cultura na última metade do século XX, questionar tanto os modos em que a cultura funciona na época da globalização como os riscos de uma visão da sociedade reduzida a um caleidoscópio de fluxos culturais que leve a esquecer que nossas sociedades também são regidas por relações econômicas, políticas, uma armadura social que não se reduz nem às

séries de televisão de grande sucesso, nem ao impacto dos reality shows (MATTELART; NEVEU, 2004, p.17).

Sobre a propagação desta teoria, Mattelart e Neveu (2004) destacam que pouco a pouco as pesquisas desta corrente ganham força. Uma primeira extensão vai se debruçar sobre a relação dos jovens dos meios populares e a academia, e depois os questionamentos dessa corrente se espalham para as mídias audiovisuais, seus programas de informação e entretenimento. Tem se então um dos pontos da decolagem desta teoria e “o questionamento sobre a cultura no cotidiano vai se espalhar concentricamente como mancha de óleo” (MATTELART; NEVEU; 2004; p. 66). De acordo com Mattelart e Neveu, trinta anos depois dos primeiros textos marcantes de Birmingham, a influência dessa corrente de pesquisa se estende cada vez mais. “Não há países onde não existam departamentos ou ensino de estudos culturais” (MATTELART; NEVEU, 2004, p. 127). De acordo com os autores, em 2002, um mecanismo de busca registrava na web mais de dois milhões e quinhentas mil referências distintas a partir do termo.

No entanto, os estudos culturais britânicos sofreram muitas críticas, principalmente no aspecto teórico metodológico. Para Kellner (2001), a própria terminologia e vocabulários, como “cultura de massa” e “cultura popular” estavam carregados de discursos ideológicos que deveriam ser evitados. Para o autor, a melhor expressão para evitar essa confusão ideológica seria adotar o termo “cultura da mídia”. “Acreditamos que, em vez de usar rótulos ideológicos como massa e popular, poderíamos simplesmente falar de cultura e comunicação, desenvolvendo um estudo cultural que abranja todo o espectro da mídia e da cultura” (KELLNER; 2001: p. 52). Segundo Kellner, uma possível medida a esta corrente multidisciplinar seria assumir a cultura em si como campo de estudo, sem divisões em superior e inferior, popular e elite e enxergar todas as formas de cultura da mídia e de comunicação como dignas de pesquisa e crítica.

A partir dos anos 70 os estudos culturais se difundem, passando pelos movimentos feministas, o trabalho em torno das diferenças de gêneros, raças e diversos tipos de práticas culturais. Com a globalização, o foco central passa a ser a reflexão sobre as novas condições de constituições de identidades sociais.

Questões como raça e etnia, o uso e a integração de novas tecnologias como vídeo e a TV, assim como seus produtos na constituição de identidades de gênero, de classe, bem como geracionais e culturais e as relações de poder nos contextos domésticos de recepção, continuam na agenda, principalmente, das análises de recepção. Destacam-se, como ênfases mais recentes neste tipo de estudo, os recortes étnicos e a incorporação de novas tecnologias (ESCOSTEGUY, 2011, p. 166).

Para Escosteguy (2011), se originalmente os estudos culturais podem ser considerados uma invenção britânica, hoje eles se espalharam por diversos países e tornaram-se “uma problemática teórica de repercussão internacional: descentrado geograficamente e múltiplo teoricamente”.

Wolf (2012) também afirma que a análise sobre a construção da identidade é uma das principais questões atuais desta corrente de pesquisa, sendo que os estudos culturais estão comprometidos com as análises de mudanças sociais a partir de uma postura crítica, tendo como objetivo o de compreender os processos culturais-ideológicos da mídia. Para Wolf, os estudos culturais reforçam a dialética contínua entre sistema, conflito e controle social.

A censura de algum tema, a ênfase obre outros, a presença de mensagens evasivas, a deslegitimação dos pontos de vistas marginais ou alternativos são alguns dos elementos que fazem dos meios de comunicação de massa um puro e simples instrumento de hegemonia e de conspiração da elite do poder (WOLF, 2012, p.105). Em relação à América Latina, a proposta dos estudos culturais também proporcionou uma contribuição importante, já que se refletia principalmente na luta de emancipação contra a hegemonia cultural da Europa e posteriormente dos Estados Unidos.

Mas, diferentemente dos estudos culturais britânicos, que foram inaugurados por pesquisadores provindos de uma esquerda em busca de um modelo alternativo de mudança social, os estudios culturales se estruturaram em uma América Latina ainda submetida aos anos de chumbo dos regimes autoritários, ou recém-saindo deles, para entrar nos anos cinza das transições democráticas, na confusão ou na desorientação das forças progressistas (MATTELART; NEVEU, 2004, p. 144). O fato é que as questões sobre o controle social e a ideologia nos conduzem a uma dimensão propriamente sócio-política do estudo da comunicação. Além disso, é importante destacar que o assunto ganha uma proporção ainda maior à medida que surgem novos meios de comunicação e o acesso a esses meios fica ainda mais fácil. Hoje, o espaço público é demarcado pela reordenação capitalista na qual a aceleração da inovação tecnológica fornece lastro para várias reestruturações que vêm se processando desde a formatação da esfera pública burguesa. Para pesquisadores como Thompson (2012), por exemplo, os novos meios de comunicação mudam as maneiras pelas quais os indivíduos se relacionam. “O desenvolvimento da mídia cria novos campos de ação e interação que envolve formas características de visibilidade e nos quais as relações de poder podem mudar de formas rápidas e imprevisíveis” (THOMPSON, 2012: 12).

Tudo o que foi discutido até aqui ganha então uma proporção ainda maior quando entramos na questão da globalização, que nos oferece cada vez mais uma comunicação intercultural. Na pós-modernidade, a propagação de diferentes culturas e ideologia pelos

meios de comunicação nos faz pensar sobre desafios ainda maiores no campo de análise dos efeitos que esses meios exercem sobre o público. Hoje, as pessoas estão cada vez mais pensando global e recebendo informações de todo o mundo. A distância não é mais um obstáculo e o fator tempo é cada vez mais ultrapassado. Qual a concepção de identidade em relação ao constante processo de hibridação cultural? Nesta análise da identidade entra a questão das narrativas, já que de acordo com Ladeira Mota (2012), a prática de construção de identidade se dá pela narrativa. Logo, se o jornalismo é uma prática de construção de significados sobre os acontecimentos, é por meio dele que se dá a reflexão sobre nosso tempo, nossas representações, práticas econômicas, sociais, ou seja, a base para a construção de nossa identidade:

Como discurso, a notícia é um ritual simbólico por meio do qual os membros de uma cultura trocam valores e significam o próprio mundo. Pode se considerar a notícia uma porta de entrada para a cultura, ou seja, para o mito, que vai alimentar crenças e ideais. Mas antes de ver como o texto cumpre este ritual simbólico, é preciso perceber o seu processo produtivo. Logo, o primeiro passo para examinar a notícia é analisar o processo pelo qual ela é construída discursivamente. Notícia é o produto de uma prática discursiva numa atividade social institucionalizada que é a atividade jornalística (LADEIRA MOTA, 2012, p, 207).

Desta forma, os estudos culturais servem como pontos de reflexão sobre as relações de poder que se estabelecem entre a notícia e o público. A mensagem, o sistema social, político e econômico, a cultura de massa, a ideologia, as representações... tudo se relaciona e entra no campo de pesquisa desta teoria. A ideia desta corrente é fomentar uma visão crítica da cultura oferecida pela mídia.

O foco de muitos pesquisadores que usam esta corrente de pesquisa hoje é possibilitar que os cidadãos entendam a cultura e a sociedade em que vivem, principalmente nesta era globalizada, em que as pessoas têm acesso a diferentes tipos de cultura o tempo todo. Que o público saiba ver além do produto midiático, compreendendo de fato o contexto em que a mensagem está inserida. Que o público saiba criticar os meios de comunicação e não apenas ser passível a qualquer tipo de dominação cultural, mas sim que produza sua própria identidade. Como destaca Kellner (2001), utilizar os estudos culturais hoje é fomentar uma pedagogia crítica da mídia, desenvolvendo conceitos e análises que capacitam os leitores a dissecar criticamente as produções dos meios de comunicação e da cultura de consumo contemporâneo.

Neste capítulo, serão estudados a seguir os conceitos de cultura, identidade e representações sociais usados neste trabalho. A proposta que segue é discutir como a narrativa trabalha estes conceitos na construção da identidade brasileira.