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2 O USO DOS ESTUDOS CULTURAIS NA ANÁLISE DAS NARRATIVAS

3.2 As narrativas transculturais

Ao propormos analisar a representação da identidade brasileira em jornais estrangeiros, estudamos textos jornalísticos construídos pelo olhar do outro. Neste campo de pesquisa, é importante discutir sobre essa narrativa que se forma tendo como viés a alteridade: o Brasil pensado de fora.

Como discutimos no capítulo dois deste estudo, a identidade é relacional e construída por meio das relações de diferenças. Sendo assim, “é apenas através do olhar de uma outra cultura que uma cultura estrangeira revela-se completamente” (BAKHTIN, apud STEVENS, 2000, p. 9). Mas é possível conhecer o novo sem levar na bagagem expectativas, preconceitos ou ideias pré-concebidas trazidas pelas representações e o imaginário? Como afirma Armstrong (2000), “é difícil, talvez impossível, o estudioso pensar a diferença e a criatividade de uma cultura sem recorrer a um sentimento subjetivo do que se sente como autêntico” (ARMSTRONG, 2000, p. 42). De acordo com o autor, a avaliação de outra cultura é na verdade um diálogo entre duas culturas, ou ainda, uma relação de semântica simbiótica entre duas posturas psicológicas.

Ao estudar as comunicações interculturais, Baptista (2008) destaca que na sequência das reflexões em torno da globalização versus lógicas locais, além de questões econômicas e

conflitos étnicos, a comunicação entre culturas diversas tornou-se recentemente incontornável. De acordo com o autor, compreender um objeto cultural a partir de outra cultura é admitir uma recriação, uma perspectiva que ensina a olhar a realidade de uma maneira nova e necessariamente diferente. Em suma, “trata-se sempre de uma interação entre semelhança (aquilo que culturalmente nos é familiar e próximo) e dissemelhança (o que é estranho e diverso), que exige uma atitude em grande parte recreativa e imaginária” (BAPTISTA, 2008, p. 174). Para o autor, compreender um objeto cultural alheio é sempre um desafio, sendo preciso sempre reconhecer o outro num movimento de pré-compreensão, que implica ao mesmo tempo distanciamento e pertencimento. Compreender, na concepção de Baptista (2008), é criar sentidos propostos por um objeto, o qual pode ser identificado e re- identificado por diferentes indivíduos, culturas e épocas.

A questão é que ao escrever ou ler uma história sobre um país, por exemplo, o estrangeiro ativa, mesmo que inconsciente, processos sócio-culturais de sua própria identidade para dar maior coerência à história que lê, vê ou escreve. “A coerência é obtida pela fusão de horizontes, sucessivas conexões significativas que o leitor faz procurando ligações entre fatos relatados com os seus próprios mundos possíveis e culturalmente referenciados, num processo de correferência” (MOTTA, 2013, p. 100).

Em relação ao Brasil, Schollhammer (2000) destaca que, ao chegar ao país pela primeira vez, o estrangeiro vem munido de preconceitos, desejos e temores. “Talvez ele esteja à procura de sensualidade, calor humano, liberdade e musicalidade ou tentando fugir da violência, poluição, corrupção e caos que também deve encontrar” (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 20). De acordo com o autor, para o recém-chegado, a vivência no país pode ser única, a ponto de modificar radicalmente suas expectativas e até mesmo personalidade. No entanto, “enquanto o visitante sempre tenta mobilizar registros interpretativos próprios para absorver as aparências, ele também percebe no contato brasileiro que é recebido por esquemas de identificação que não diferem muito dos clichês que ele próprio carrega” (SCHOLLHAMMER, 2000, p. 20).

É neste caminho que destacamos as narrativas transculturais. Elas são construídas a partir de uma posição de alteridade que não pertence integralmente a uma única cultura, mas sim entre mundos distintos. Essas narrativas vão além de uma comunicação entre culturas e se desdobram em um novo produto, ou seja, elas se deslocam da superfície do intercultural passando a ser incorporadas ou apropriadas pelo grupo. Nessas narrativas, o autor busca interpretar o outro, por meio de exemplificação ou por experimentação. No primeiro, ele integra discursivamente a alteridade, observada por comparação com o sistema cultural

predominante em sua civilização, no segundo caso, o narrador cede ao impulso de se entregar e experimentar o outro, explorando seus limites subjetivos (SCHOLLHAMMER, 2000).

Entre os exemplos dessas narrativas estão os relatos dos viajantes europeus sobre o Brasil, destacados no primeiro capítulo deste estudo. Ao escrever sobre a colônia, esses viajantes já usavam elementos de suas próprias culturas como referência, não só para interpretar, como também para influenciar a nossa. Na Carta de Pero Vaz de Caminha, a maneira como o narrador europeu se coloca no lugar dos nativos para compreender a vontade dos índios e depois a autorrepresentação dos brasileiros como país exótico e gigante, tal como descrito na Carta, são exemplos dessa intersecção cultural.

Neste sentido, a partir de uma hermenêutica do outro, o transcultural transforma, modifica e, por meio da apropriação, pode formar um novo produto. É o que também ocorreu quando músicos brasileiros interpretaram os arranjos do jazz americano no final dos anos 50. Ao tomar para si elementos musicais da cultura externa da época, os artistas brasileiros inventaram a Bossa Nova, criando um novo produto para a identidade brasileira.

É neste sentido que compreendemos as narrativas transculturais como algo que vai além do diálogo entre duas culturas. Por meio da hermenêutica, mesmo que haja um limite da capacidade do narrador de posicionar-se do ponto de vista de vista do outro e esse olhar seja parcial, essas relações transculturais modificam e transformam uma representação, mito, símbolos e identidade.

Entretanto, se as narrativas transculturais já existiam, e no Brasil ela dá início já com os primeiros relatos de viagens, no mundo pós-moderno, com a globalização e outras transformações sociais e políticas - como urbanismo, industrialização, democratização e inovações tecnológicas - essas narrativas tornam-se ainda mais comuns. Hoje, com a internet, a troca de culturas e informações entre habitantes de qualquer parte do mundo ocorre cada vez mais. Soma-se a isso a possibilidade de uma comunicação mais permanente e fluída com os lugares de origem, seja por parte dos imigrantes temporais, dos definitivos ou mesmo por parte daqueles que viajam a turismo ou a trabalho, fazendo com que a experiência da interculturalidade se produza contemporaneamente em dois principais cenários: a cidade e a indústria cultural (COGO, 2000).

Tais conflitos e dinâmicas multiculturais vão dando lugar a um rico e conflitivo diálogo a três vozes no contexto da globalização: a sociedade que pensa em si mesma como homogênea a partir de uma cultura que a sustenta (1), as vozes internas da diversidade (2) e a figura do outro/estranho/estrangeiro (3), tornando-se revelador das reconfigurações que atravessam os dois principais fundamentos da trajetória das sociedades ocidentais: a convivência com o Outro, cada vez mais homogêneo e a aceitação da mestiçagem enquanto requisitos essenciais para o

debate sobre a interculturalidade ou sobre as possibilidades de uma comunicação intercultural (COGO, 2000, p. 51-52).

Nesta concepção, Stevens (2007) observa que o que temos hoje é um movimento que se distancia cada vez mais da problemática unidade de nação e segue em direção a uma complexa articulação da diferença na construção de uma mundialização de cultura. Na análise da autora, como consequências do imperialismo europeu e efeitos pós-coloniais, os escritores contemporâneos se tornaram ao mesmo tempo criação e criadores dessa nova ordem transcultural, ocasionada por uma cultura internacional e que tem crescido a exaustão desde a última grande Guerra. O problema, de acordo com Stevens (2007), é que o autor dessas narrativas substitui a ilusão do universal pela precisão e profundidade de seu foco particular de visão. Neste caminho, além de explorar suas heranças culturais e suas especificidades históricas, o narrador trabalha intensamente com a problemática do espaço, do deslocamento, dos mitos de identidade e da autenticidade das identidades migrantes e híbridas.

As identidades culturais têm origem – elas têm história. E como tudo que é histórico, elas transformam-se constantemente, apesar de tentativas de fixação ou essencialização num passado mitificado. Esse processo dinâmico por sua vez está sujeito às influências da história, da cultura e, principalmente do poder. Na atmosfera multinacional do mundo contemporâneo, essa problemática da identidade, que pode ser caracterizada como aparentemente localizada, atinge uma dimensão de certa forma universal, uma vez que o mundo moderno é, também, migrante, híbrido; o público leitor é também diásporo, eclético. Neste mundo descentrado, o excêntrico hoje adquire novas posicionalidades (STEVENS, 2007, p. 53).

É, portanto, por meio das comunicações interculturais que chegamos à transcultural, quando o diálogo entre diferentes culturas é capaz de causar transformações. Nesta relação de poder, os grupos se apropriam de elementos um do outro, misturam suas experiências de mundo e produzem uma interpretação ao seu modo sobre o desconhecido. E neste campo de estudo, é fundamental analisar o papel do jornalista, já que, em seu lugar de fala, ele tem o poder de transformar a cultura e identidade de um povo por meio da comunicação. Logo, no cenário pós-moderno e globalizado, onde as informações estão cada vez mais rápidas, precisamos ficar atentos a essas narrativas construídas pelo lado de fora. Elas são importantes, tanto para refletirmos sobre esta realidade social que nos cerca, como para compreendermos quais elementos estão sendo transformados a partir dessas relações entre culturas. Relações estas cada vez mais dinâmicas e estreitas, devido, principalmente, as novas tecnologias.